quarta-feira, 20 de novembro de 2019

O argumento da competitividade


– A presente análise acerca do livre comércio é válida para a generalidade dos países, não apenas para a Índia

por Prabhat Patnaik [*]
Com o governo forçado a retirar-se do acordo RCEP [NT] , surgiu um argumento:   se a Índia não é competitiva com outros países na produção de todo um conjunto de bens, razão principal pela qual os produtores de tais bens dentro do país objectam ao acordo, então por que deveriam continuar a produzi-los? E um argumento relacionado declara: ao proteger produtores não competitivos, o país está a penalizar consumidores que caso contrário teriam acesso a bens importados mais baratos. Isto não é injusto?

A resposta imediata e óbvia à primeira pergunta (iremos à segunda depois) é que o que aparece como competitividade em preço é habitualmente o reflexo de uma estratégia mercantilista agressiva de capturar mercados estrangeiros prosseguida por Estados através da instituição de subsídios ou de uma taxa de câmbio subavaliada. Isto é verdadeiro na agricultura (nomeadamente na Europa e nos EUA onde são dados enormes subsídios, embora estes países não façam parte do RCEP). O conceito de competitividade de preço é portanto enganoso; a competitividade aparente dos preços de qualquer país está invariavelmente abrigada dentro de uma pletora de políticas orçamentais e de taxas de câmbio ali instituídas. Deixar produtores indianos à mercê do "mercado" de onde acabam por ser expulsos por importações mais baratas devido aos subsídios providenciados por Estados estrangeiros é portanto claramente odioso.

Contudo, além disso há uma questão de princípio envolvida que muitas vezes não é discutida mas deveria sê-lo. Esta relaciona-se com o facto de que o argumento habitual sobre o livre comércio está baseado numa fraude: ele assume que todas as economias, depois de se terem aberto ao livre comércio, alcançam um equilíbrio de pleno emprego (onde todos os seus recursos, incluindo o trabalho, são plenamente utilizados). Por outras palavras, o argumento do livre comércio exclui por hipótese qualquer possibilidade de o livre comércio gerar desemprego. Isto é uma suposição que nega claramente a nossa experiência de desindustrialização colonial, a qual é o pai da nossa moderna pobreza em massa.

Se no mundo como um todo (ou dentro de um grupo de países preso a um acordo de livre comércio) existisse alguma autoridade que pudesse permanentemente pressionar o aumento da procura agregada até que todos os recursos em todos os países fossem plenamente utilizados (ou subissem até um nível mínimo do exército de reserva do trabalho, uma vez que o pleno emprego é impossível sob o capitalismo por outras razões bem conhecida), então não haveria qualquer desemprego (além deste mínimo). Mas não há tal autoridade que assegure a ausência de uma deficiência da procura. Portanto um nível de desemprego (para além do exército de reserva do trabalho) existe sempre. O que faz um acordo de livre comércio é mudar este desemprego de alguns países para as costas de outros.

Mesmo supondo que a competitividade de preços entre países seja inteiramente reflectida nas diferenças de produtividade do trabalho às taxas de câmbio e salários monetários predominantes, isto é, que não há dumping ou subsídios envolvidos, segue-se que o livre comércio simplesmente expulsa muitos trabalhadores do trabalho no país de baixa produtividade.

Duas questões se levantam de imediato: primeiro, por que o país de baixa produtividade não pode reduzir sua taxa de câmbio até que ela se torne competitiva e assim livrar-se do desemprego? Uma vez que a depreciação da taxa de câmbio necessariamente reduz a taxa de salário real, isto equivale a sugerir que o país de produtividade mais baixa deveria assegurar que seus salários reais são adequadamente reduzidos, de modo a tornar-se "competitivo" e portanto evitar ser assolado pelo desemprego em massa.

Contudo, trata-se de uma ideia errada: reduzir salários reais no país em causa não aumenta a procura agregada em todos os países tomados em conjunto. Consequentemente, a iniciativa de depreciar a taxa de câmbio num país pode reduzir a taxa de desemprego dentro das suas próprias fronteiras só pelo aumento do desemprego alhures, isto é, pela "exportação" do desemprego. Entretanto, tal "exportação" necessariamente convidará à retaliação por parte de outros países, de modo que todos ficariam empenhados numa guerra de taxas de câmbio que implica efectivamente uma corrida para o fundo quanto a salários reais. Isto portanto não é solução para o problema do desemprego gerado pelo livre comércio dentro de qualquer país.

Além disso, considerando a hegemonia das finanças que caracteriza o mundo de hoje, qualquer depreciação da taxa de câmbio, ou mesmo uma expectativa de depreciação da taxa de câmbio (que é expectável que seja iniciada por um governo preocupado com o desemprego causado pelo livre comércio) provocaria fluxos financeiros de saída que podem ser maciçamente desestabilizadores. Portanto uma depreciação da taxa de câmbio dificilmente será uma saída para uma situação de desemprego gerado pelo livre comércio.

Mas aqui se levanta a segunda questão: o que, pode-se perguntar, está errado em ter produtores de alto custo deslocados através do livre comércio? Uma vez que eles são de alto custo, não merecem manter-se a produzir. A resposta aqui é simples: se aqueles deslocados através do encerramento de algumas actividades pudessem ser absorvidos alhures, em outras actividades, então tal deslocamento não causa muita preocupação. Mas desde que isto não aconteça não há absolutamente nenhum argumento para assinar um acordo de livre comércio que cause desemprego. Por outras palavras, um país deve impor tais restrições comerciais quando são necessárias para o emprego; e os produtores estão perfeitamente justificados ao pedirem tais restrições.

Isto à primeira vista pode parecer que vai contra o argumento da "eficiência", que a produção deveria ocorrer só onde é empreendida mais "eficientemente". Mas "eficiência" é um argumento válido só no seguinte sentido: se, com a plena utilização de todos os recursos disponíveis, um país pode ganhar acesso a um maior lote de bens pela especialização na produção só em certos bens e o abandono da produção de outros, os quais são ao invés obtidos através de importações, então deveria fazê-lo. O argumento da "eficiência" do livre comércio, por outras palavras, pressupõe a plena utilização de todos os recursos. Quando isto não acontece, apoiar o encerramento de todo um conjunto de actividades produtivas com base na "eficiência" é absurdo.

Mas aqui levantar-se-ia a pergunta: por que se deveria pedir aos consumidores para pagarem mais impedindo a entrada de importações mais baratas a fim de escorar um grupo de produtores locais de alto custo? Este argumento, que à primeira vista parece ter alguma pertinência, baseia-se contudo numa distinção ilícita entre produtores e consumidores.

Ele postula que mesmo quando um grupo de produtores (trabalhadores e camponeses) perde seus rendimentos devido a importações baratas há um outro grupo de pessoas, os consumidores, que não obstante ficariam melhor por causa destas importações baratas. Dito de modo diferente, o argumento pressupõe que os rendimentos destes consumidores não seriam afectados mesmo quando os rendimentos de produtores vão abaixo por causa do livre comércio.

Isto, contudo, é erróneo. A redução de rendimentos de produtores também reduz os rendimentos dos consumidores, mesmo de consumidores que são distintos daqueles produtores cujos rendimentos vão abaixo em primeiro lugar. Isto acontece por causa das consequências macroeconómicas do deslocamento inicial de alguns produtores. O exemplo da Índia colonial esclarecerá este ponto.

A destruição do artesanato deveu-se à importação de bens manufacturados britânicos fabricados com máquinas. Apesar de ter produzido desemprego e pobreza em massa, parecia em primeira instância trazer bens mais baratos para o consumo dos camponeses que não eram directamente afectados pelo deslocamento dos artesãos. Mas, ao longo do tempo, quando artesãos deslocados inundaram o mercado de trabalho rural, os salários reais caíram e as rendas aumentaram, os quais afectaram os rendimentos dos próprios camponeses que inicialmente se supunha terem sido beneficiados devido a importações mais baratas. Os efeitos da desindustrialização no rendimento propagam-se portanto em ondulação, afectando em última análise o povo trabalhador como um todo. A única beneficiária da desindustrialização colonial terá sido provavelmente a classe dos latifundiários, numericamente minúscula, a qual foi criada pelos britânicos como um baluarte de apoio à dominação colonial.

Por conseguinte, apoio a um acordo de livre comércio que cria desemprego, ou rendimentos mais baixos para o campesinato não pode ser justificado em quaisquer circunstâncias; e o povo estava certo ao reivindicar que o governo deveria abandonar o RCEP.

O presente discurso intelectual no país tornou-se tão hegemonizado pelo capitalismo que a própria ideia de pleno emprego parece ser um sonho impossível. O que é esquecido é que a União Soviética e os países socialistas da Europa do Leste não só tiveram pleno emprego mas foram realmente economias com escassez de mão-de-obra.

De facto, se um grupo de pessoas simplesmente consome e investe o que produz entre si próprios, então não há razão para esperar qualquer subida do desemprego. Uma grande razão para o desemprego é que alguns no grupo não queiram comprar o que outros no grupo produzem, mas querem ao invés comprar o que pessoas de fora do grupo produzem, muito embora aqueles de fora não queiram comprar o que as pessoas dentro do grupo produzem. Tal desemprego, que é o que o RCEP teria gerado, deve ser impedido.
17/Novembro/2019

[NT] Parceria Económica Regional Abrangente ( RCEP ). A Índia retirou-se do RCEP em 2019.

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2019/1117_pd/argument-about-competitiveness
. Tradução de JF.



Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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