As consequências fatais da queda do muro de Berlim– A anexação da RDA e o desaparecimento do campo socialista abriu uma extraordinária avenida para os poderosos
por Pierre Levy [*]
O ministro das Relações Exteriores alemão, num destaque publicado pelo Le Monde em 04/11/2019, falsifica e instrumentaliza a história a serviço da "unificação europeia".
[NT] CAC 40, Cotation Assistée en Continu, é um índice bolsista que reúne as 40 maiores empresas cotadas em França.O trigésimo aniversário da queda do Muro de Berlim, em particular na França, gerou uma profusão de homenagens emocionais, glorificação enfática e elogios de satisfação. Neste concerto a uma voz, merece destaque a contribuição do ministro das Relações Exteriores da Alemanha, publicada pelo Le Monde. É provável que Heiko Mass não se atrevesse a publicar esse texto no seu próprio país. Começa com uma afirmação ousada: em 9 de novembro, "nós, alemães (...), celebramos a união da Europa, que está hoje felizmente reunida", porque "essa felicidade devemos a centenas de milhares de alemães orientais que saíram às ruas" e mais geralmente a cidadãos da Europa central e oriental" que, sedentos de liberdade, derrubaram os muros arrancado a sua liberdade". E continua o ministro, "devemos (também) aos nossos amigos e parceiros da NATO", bem como a François Mitterrand e Mikhaïl Gorbachev. Assim, para o líder social-democrata, os cidadãos que desceram em 1989 às ruas de Berlim Oriental, Dresden e outros lugares tiveram um sonho em mente: alcançar a "unificação da Europa" (e por que não também colocar Ursula Von der Leyen à frente da Comissão de Bruxelas, tal como está agora?). Não tenho certeza de que uma tese tão grotesca pudesse ter sido publicada em Berlim. Mas, ao dirigir-se ao público francês, talvez Maas esperasse poder disfarçar a realidade com impunidade. Porque uma grande maioria dos cidadãos da RDA que protestaram durante meses em 1989 estavam a fazê-lo na esperança de reformar profundamente esse país, mas não com o objetivo de abolir o socialismo, muito menos de vir a ser anexado pela República Federal. E foi apenas nos últimos momentos por iniciativa de Helmut Kohl da CDU (agora comprovada), o slogan "Nós somos o povo" (aspiração por mais democracia no quadro do socialismo), passou para "Somos um povo", que visava abertamente a unificação. Mas para o ministro, não importa a realidade histórica. A única coisa que conta é o objetivo: "É para nós (os líderes alemães?) uma obrigação concluir a unificação da Europa". Esta reescrita da história tem pelo menos um mérito: o de ilustrar o estado de espírito que impulsiona as elites ocidentais, em particular a alemã. E esse estado de espírito lembra o famoso comentário do multimilionário americano Warren Buffet em 2005: "Há uma guerra de classes, é um facto, mas é a minha classe, a classe dos ricos, que lidera esta guerra e que a vence. Basta aqui generalizar, substituindo "classe" por "campo", e a frase ilustra perfeitamente o sentimento de triunfo experimentado pelos líderes ocidentais contra os países que tinham implementado um sistema – ainda que imperfeito – em que o CAC 40 [NT] e os dividendos pagos aos acionistas foram substituídos pela propriedade pública. E onde recessões sociais incessantes não constituíam o horizonte insuperável das sociedades. Esse estado de espírito triunfante – que marcou os dez ou quinze anos após a queda do muro e o desaparecimento da URSS – não durou, no entanto, a eternidade sonhada pelos teóricos do fim da história e feliz globalização. Maas e os seus amigos, agora estão a perder as ilusões: "o (laborioso) resgate do euro, as intermináveis discussões sobre o acolhimento e repartição de refugiados, tudo isso criou novas lacunas na Europa". Pior, lamenta o ministro, "com o Brexit, estamos testemunhando pela primeira vez a saída de um país da UE. E em muitos países europeus, aqueles que querem que acreditemos que menos Europa é melhor, vão de vento em popa”. Mas, é claro, o que não funcionou com a Europa funcionará ... com ainda mais a Europa: "uma coisa é certa, para sobreviver neste mundo, os europeus devem permanecer soldados", insiste Heiko Maas. A propósito, observe-se o uso da palavra "soldado". Ele poderia ter escrito "unidos" ou "juntos". Não sabemos se o seu texto foi escrito diretamente na lingua de Molière, mas o termo usado implicitamente refere-se a partes que são mantidas juntas por uma operação artificial forçada... Uma confissão inconsciente? A realidade é que a queda do Muro de Berlim realmente criou dois tipos principais de consequências: sociais e geopolíticas. E neste ponto o autor está certo: muito além das fronteiras alemãs. Os anos 90 desencadearam, por um lado, a maior onda de recuos sociais na Europa e no mundo. Na França, na Alemanha, na Europa Oriental e, na realidade, em todos os continentes, o que houve não foi apenas uma "reforma" imposta pela oligarquia dominante, possível apenas pela inversão cataclísmica do equilíbrio de poder a favor do capital em detrimento dos povos – privatizações, cortes na proteção social, um aumento fenomenal da desigualdade e da pobreza, limitações drásticas nos direitos dos assalariados e dos sindicatos – mas também pondo de parte a democracia (por exemplo na inversão do resultado de referendos sobre a integração europeia). Porque o desaparecimento do campo socialista abriu uma via extraordinária para os poderosos. Numerosos sindicalistas da Alemanha ocidental (mesmo os mais anticomunistas) disseram recentemente o seguinte: antes da queda da Alemanha Oriental, a existência desta obrigava o patronato da RFA a manter um alto nível de benefícios sociais a fim de impedir que o sistema em vigor na RDA constituísse um exemplo. A anexação deste país levantou essa hipoteca e abriu as comportas do rompimento social, começando com o questionamento dos acordos coletivos. O desaparecimento do campo socialista teve o mesmo papel no nível mundial. Quanto ao equilíbrio geopolítico de poder, não há necessidade de fazer um desenho. Da Jugoslávia ao Iraque, da Líbia à Síria via Iémen, Venezuela ou Costa do Marfim, as forças conhecidas como imperialistas não mais reconheceram limites. Mas o período agora é novamente mais difícil para ambições hegemónicas. Nem a Rússia nem a China querem submeter-se a elas. Portanto, diz Maas, "precisamos de uma verdadeira união europeia de defesa, além da NATO, que possa agir de forma autónoma onde quer que seja necessária". "Defesa"? Trata-se, por exemplo, como sugerido pelo futuro Alto Reponsável da UE para a Política Externa, o atual colega espanhol (também socialista) de Maas, Josep Borrell, de ativar os “agrupamentos táticos”? Porque o ministro não hesita em escrever: "juntos, devemos lutar pela manutenção da ordem internacional e tornar-nos o núcleo de uma aliança para o multilateralismo". Talvez seja mais preciso falar sobre uma Aliança para o multiliberalismo... Quanto ao "policiamento" internacional, a fórmula fala por si, Heiko Maas afirma que "a paz depende dessa ordem, também na Europa". Uma ameaça? E se tudo ainda não estava ainda suficientemente claro, o autor conclui exaltando a força "que anima os europeus" quando "eles agem" como em 1989, incluindo "a força para ir além dos muros" e fronteiras, “a força para fazer respeitar os nossos valores e os nossos interesses num mundo cada vez mais autoritário". Fazer respeitar os "valores europeus" em todo o mundo ... Decididamente, somos levados a lamentar a queda do muro. [*] Redator chefe do mensário Ruptures O original encontra-se em www.legrandsoir.info/... Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ . |
0 comentários:
Postar um comentário