sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Líbia 2012: O flagelo das quadrilhas da OTAN



11/02/201206h00

Disputa de poder entre milícias paralisa Líbia pós-Gaddafi
Comentários 1

Anthony Shadid
The New York Times Em Trípoli (Líbia)
No entender dos milicianos, eles tinham a melhor das intenções. Na última quarta-feira (8), eles atacaram outra milícia em uma base à beira-mar de Trípoli para resgatar uma mulher que tinha sido sequestrada. Quando as armas silenciaram, brevemente, a cena que se desdobrou parecia tão caótica quanto a revolução da Líbia no momento –um governo cuja autoridade não vai muito além de seus gabinetes, milícias cuja bravata vem das armas abundantes e cidadãos cuja paciência desaparece a cada troca de tiros à noite.

Disputa entre milícias desafia Líbia pós-Gaddafi


  •                       

Foto 5 de 10 - Ruínas em Bab al-Aziziya, fortaleza do ex-ditador Muammar Gaddafi em Trípoli, capital da Líbia. O país que viveu a mais radical revolução do mundo árabe está paralisado pela disputa de poder entre milícias Jehad Nga/The New York Times
A mulher logo foi libertada. A base era deles. E a pilhagem teve início.
“Que nada seja levado para fora!” bradou um dos milicianos, tentando impor ordem.
Mas de nada adiantou: uma caixa de granadas, metralhadoras pesadas enferrujadas, cinturões de munição, lançadores de granada, caixas de água mineral e um aquário equilibrado de modo improvável em uma lambreta. Integrantes de meia dúzia de milícias levavam os bens, ocasionalmente atirando para o ar. Eles brigavam por carros roubados, e então atiravam neles quando não conseguiam o que queriam.
“Isto é destruição!” disse Nouri Ftais, um comandante de 51 anos, que ofereceu uma rara e ignorada voz de razão. “Nós estamos destruindo a Líbia com nossas próprias mãos.”
O país que testemunhou a revolução mais completa no mundo árabe está afundando. Assim como sua capital, onde um aspecto de normalidade voltou após os dias caóticos da tomada de Trípoli pelos rebeldes, em agosto. Mas ninguém consideraria normal uma cidade onde milicianos torturaram até a morte um ex-diplomata duas semanas atrás, onde centenas de refugiados considerados leais ao coronel Muammar Gaddafi aguardavam em desespero em um campo, e onde uma autoridade do governo reconheceu que “a liberdade é um problema”. Muita coisa naquela cena na quarta-feira era lamentável, talvez pela discórdia ser tão comum.
“Parte dela é realmente opressiva”, disse Ashur Shamis, um conselheiro do primeiro-ministro interino da Líbia, Abdurrahim el Keib. “Mas de alguma forma nós temos esta noção louca de que podemos superá-la.”
Ainda há otimismo em Trípoli, até porque o país conta com abundância de petróleo. Mas o governo de Keib, formado em 28 de novembro, se viu virtualmente paralisado pelas rivalidades que o forçaram a dividir o poder de acordo com regiões e personalidades, pelas expectativas impossíveis de que a queda de Gaddafi traria prosperidade, e uma ausência de poder tão acentuada que o exército nacional passou a ser tratado como se fosse outra milícia.
O governo pôde fazer pouco enquanto as queixas locais resultaram no mês passado em confrontos em Bani Walid, antes uma fortaleza de Gaddafi, e entre as cidades nos Montes Nafusah, onde combatentes rivais, cada um reivindicando representar a revolução, entram em choque com armas, granadas e artilharia.
“É um governo para uma crise”, disse Shamis, em um gabinete cheio de vidro e cromo. “É um governo de crise. É impossível fazer tudo.”
Pichações em Trípoli ainda brincam com o discurso mais memorável de Gaddafi no ano passado, quando prometeu lutar de casa em casa, de rua em rua.
“Quem são vocês?” ele zombou, aparentemente fazendo sua melhor interpretação de Tony Montana em “Scarface”.
“Quem sou eu?” respondias as palavras escritas sobre seu retrato cartunesco.
Em frente ao gabinete de Shamis apareceu um novo slogan.
“Onde estão vocês?”
A pergunta destaca a questão da legitimidade, que permanece a mais urgente na Líbia revolucionária. As autoridades esperam que as eleições em maio ou junho possam fazer o que fizeram no Egito e na Tunísia: dar autoridade a um corpo eleito que possa alegar representar a vontade popular. Mas o Iraque continua sendo um contraponto. Lá, as eleições após a invasão norte-americana aumentaram tão perigosamente as divisões que ajudaram a provocar uma guerra civil.
Um senso de entropia paira aqui. Alguns funcionários públicos não recebem salário há um ano e Shamis reconheceu que o governo não tem ideia de como canalizar dinheiro suficiente para a economia, para que sua ação possa ser sentida nas ruas. Os moradores de Trípoli se queixam de falta de transparência nas decisões do governo. Os ministros ainda parecem paralisados pela tendência, instilada durante a ditadura, de deixar toda decisão ser tomada pelo topo.
“Eles ficam sentados em suas cadeiras, bebendo café, e elaboram projetos que permanecerão no reino da imaginação”, disse Israa Ahwass, uma estudante de farmácia de 20 anos da Universidade de Trípoli.
“Como é possível mudar as pessoas da noite para o dia?” interrompeu sua amiga, Neima Mohammed, que também estuda farmácia. “Foram 42 anos de ignorância.”
“Eles não estão fazendo nada”, respondeu Ahwass.
Como a Tunísia a oeste e o Egito ao leste, a Líbia está confrontando uma diversidade que Gaddafi se esforçava muito para negar, a ponto de tentar convencer a minoria berbere que ela era, na verdade, árabe. A revolução conta com sua variação desse tema, apelos que espelham os temores de racha social.
“Não à discórdia” e “Não ao tribalismo”, declaram slogans que adornam as ruas.
Tudo isso aponta para a verdade que o escritor líbio Hisham Matar evocou em seu primeiro romance, “No País dos Homens”, quando escreveu: “O nacionalismo é tão fino como um fio, talvez o motivo para tantos sentirem que ele precisa ser ansiosamente guardado”. A autoridade aqui mais parece uma cebola, imposta por militares exibindo o selo de cidades no oeste, de bairros na capital, até mesmo de suas ruas.
“Onde está o Estado de direito?” perguntou Ashraf al Kiki, um vendedor que foi até uma delegacia de polícia, o Conselho Militar de Trípoli e uma milícia de Zintan, em busca de indenização pelos buracos de bala feitos por milicianos em seu carro. O cheiro do kebab preparado na grelha por ele tomava o ar enquanto alto-falantes tocavam o hino nacional.
“Este é o Estado da força, não um Estado de direito.”
A força no aeroporto de Trípoli é a poderosa milícia de Zintan, uma cidade montanhosa ao sul da capital, que teve um papel na queda de Trípoli e ainda mantém prisioneiro o filho mais proeminente de Gaddafi, Seif al Islam. Segundo a milícia, ela conta com 1.000 homens no aeroporto e um de seus comandantes, Abdel Mawla Bilaid, um homem fardado de 50 anos, imitava os pronunciamentos do governo que ele ajudou a derrubar: “Tudo está 100% bem”.
Shamis, o conselheiro do primeiro-ministro, reconheceu a incapacidade do governo de fazer algo a respeito da presença da milícia: “Deixe estar por ora”.
Essa também era a sensação do comandante: “Não há motivo para partirmos”, disse Bilaid. “O povo líbio deseja nossa permanência.”
As milícias estão provando ser o flagelo do pós-revolução. Apesar de terem desmontado grande parte de seus postos de controle na capital, elas permanecem uma força, aqui e em toda parte. Um pesquisador do Human Rights Watch estimou que existam 250 milícias diferentes na cidade costeira de Misrata, cenário daquela que talvez tenha sido a batalha mais feroz da revolução. Nos últimos meses, essas milícias se tornaram as mais odiadas do país.

Mantendo a lei e a ordem

Os cidadãos dizem que alguns dos combatentes têm buscado manter a lei e a ordem em meio ao desamparo do governo. Milícias de Benghazi e Zintan estão tentando proteger um campo de refugiados, que abriga 1.500 pessoas expulsas de seus lares em Tawergha por combatentes de Misrata, que as acusam de terem ajudado no ataque de Gaddafi contra sua cidade.
Desde que os tawerghanos chegaram ao campo, que antes abrigava os operários de construção turcos em Trípoli, os milicianos de Misrata realizaram cinco ou seis incursões, apesar da presença de outras milícias, detendo dezenas de pessoas, muitas delas ainda mantidas sob custódia.
“Ninguém impede os misratanos”, disse Jumaa Ageela, um ancião de Tawergha.
Bashir Brebesh disse o mesmo a respeito das milícias em Trípoli. Em 19 de janeiro, seu pai de Omar, 62, um ex-diplomata líbio em Paris, foi chamado para interrogatório pelos milicianos de Zintan. No dia seguinte, a família encontrou seu corpo em um hospital em Zintan. Seu nariz estava quebrado, assim como suas costelas. As unhas foram arrancadas dos dedos de seus pés, eles disseram. Seu corpo exibia sinais de queimaduras de ponta de cigarro e uma fratura no crânio.
A milícia disse à família que os responsáveis foram presos, uma garantia que Brebesh disse oferecer pouco consolo. “Nós sentimos que estamos por conta própria”.
“Eles assumiram o papel de policiais, juízes e executores”, disse Brebesh, 32, residente de neurologia no Canadá, que voltou para casa após saber da morte de seu pai. “Eles não tiveram dignidade suficiente para simplesmente lhe darem um tiro na cabeça?” perguntou. “É tão monstruoso. Eles apreciaram ouvi-lo gritar?”
O governo reconheceu a tortura e detenções, mas admitiu que a polícia e o Ministério da Justiça não estão à altura da tarefa de detê-las. Na terça-feira, ele enviou uma mensagem de texto pelos celulares, implorando para que as milícias parem.
“Pessoas sob custódia estão aparecendo mortas em uma taxa alarmante”, disse Peter Bouckaert, diretor de emergências do Human Rights Watch, que estava compilando evidências na Líbia no mês passado. “Se isso estivesse acontecendo sob qualquer ditadura árabe, haveria protestos.”
Na base à beira-mar, a pilhagem acabou antes da meia-noite de quarta. Não restou muita coisa no local, que antes pertencia a Saadi, filho de Gaddafi –uma boina vermelha, uma bateria de carro, um estojo de munição enferrujado e uma garrafa vazia de vinho tunisiano.
Mas, como na maioria das noites, as milícias voltaram para disputar outros pontos na cidade, demarcando seu território. Como uma tempestade de inverno, seus disparos trovejavam madrugada adentro sobre o litoral mediterrâneo. No escuro, ninguém podia ler os slogans na Praça Quds.
“Como o preço foi o sangue de nossos filhos, vamos nos unir, vamos mostrar tolerância e vamos conviver juntos”, dizia um. No escuro, ninguém sabia quem estava atirando.
“O que há de errado com eles?” perguntou Mahmoud Mgairish.
Ele permaneceu próximo à praça na manhã seguinte, enquanto o sol parecia lavar as ruas. “Eu não sei em que direção este país está seguindo”, prosseguiu. “Eu juro por Deus, isso nunca vai se desembaraçar.”
Tradutor: George El Khouri Andolfato



Anterior Proxima Inicio

0 comentários:

Postar um comentário