Para Anita Leocádia Prestes, só revisão da Lei de Anistia e punição
de culpados por crimes podem fazer do golpe de 64 uma página virada no
País
Rio de Janeiro – Somente a revisão da Lei de Anistia promulgada em 1979 e
a punição dos culpados pelos crimes cometidos à sombra do Estado
durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985) poderão fazer com que o
golpe que tirou do poder o então presidente João Goulart, ocorrido há
50 anos, possa se tornar de fato uma página virada da história
nacional.
Essa é a opinião da historiadora Anita Leocádia Prestes que, durante um
debate sobre a ditadura militar promovido na terça-feira (31) pelo
Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon) na sede da Associação
Brasileira de Imprensa (ABI) no Rio de Janeiro, também criticou a Rede
Globo e outros setores conservadores da sociedade por estarem
aproveitando o aniversário do golpe para tentar construir novas teses e
narrativas que justifiquem em certa medida a derrubada de Jango.
“A Lei de Anistia é um absurdo, um escândalo. No continente
latino-americano, os nossos vizinhos estão há muito tempo processando e
condenando esses torturadores, como é o caso da Argentina, onde até
ex-presidentes ditadores foram condenados à prisão perpétua. No Brasil,
os criminosos da ditadura estão morrendo de velhice, de morte natural,
sem sequer serem processados”, afirmou a filha do histórico líder
comunista Luís Carlos Prestes.
Anita Leocádia, que é professora da UFRJ e tem vários livros publicados,
lamenta o espaço dado pela grande mídia aos militares da reserva que
têm vindo a público “para dizer que fariam tudo de novo” e critica o
trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV) criada pelo governo
federal: “Somente 40 anos depois do golpe se cria uma Comissão Nacional
da Verdade extremamente limitada, frente a qual os torturadores estão
aí, soltos e se gabando dos crimes que cometeram sem que nada lhes
aconteça. Eles depõem na Comissão e depois vão tranquilamente para casa
viver suas vidas”, diz.
Apesar da defesa que faz da revisão da Lei de Anistia, Anita Leocádia
diz não acreditar que ela se concretize, a menos que ocorra uma intensa
pressão popular: “A lei reflete a correlação de forças e o fato de que o
processo de transição da ditadura para a democracia aqui no Brasil se
deu de forma muito restrita e liderada pela burguesia liberal, com quase
nenhuma participação popular.
Enquanto não houver um forte movimento popular apoiando, não vai sair
essa revisão da Lei de Anistia. Tanto é que, recentemente, o Supremo
Tribunal Federal (STF) reafirmou a justeza dessa anistia para ambos os
lados”, diz. A historiadora, no entanto, afirma que “essa é uma luta que
tem de ser travada” pelos movimentos sociais: “Os escrachos feitos
pelos jovens nas portas dos torturadores é uma forma de pressionar, mas
isso tem que ser intensificado”, diz.
Outros presentes ao debate realizado na ABI também defendem a revisão da
Lei de Anistia. O jornalista e professor Arthur Poerner, que teve seus
direitos políticos cassados pela ditadura aos 26 anos, citou o recente
depoimento do coronel reformado Paulo Malhães à CNV: “A questão da
anistia deveria ser rediscutida e mudada, inclusive com a incorporação
dessa evolução jurídica que passou a considerar a tortura como um crime
que não prescreve. Isso deveria ser modernizado no Brasil, pois o mundo
inteiro aceita a nova versão e nós ainda estamos com a versão antiga. Há
poucos dias, tivemos uma confissão espantosa do Malhães, contando as
atrocidades que cometeu, as torturas e assassinatos, tudo, e não vai lhe
acontecer nada. Isso é um choque para a população e fere todo um
conceito de justiça nacional. Tem que haver necessariamente uma mudança
na Lei de Anistia”, diz.
Anistia possível
Doutor em História Social e presidente do Modecon, Lincoln de Abreu
Penna analisa a questão sob uma perspectiva histórica: “É preciso
entender que essa anistia que vigora até hoje no Brasil foi possível em
uma conjuntura completamente diferente desta em que estamos vivendo
agora. Não basta apenas ousadia, vontade, valentia e determinação se a
correlação de forças não permitir avanços significativos. Na época, a
anistia conquistada foi a anistia possível, uma anistia recíproca que
representa o que se passou naquele instante final da década de 70. Hoje,
certamente ela terá que ser revista. A própria Comissão da Verdade tem
provocado a necessidade dessa revisão”, diz.
Penna diz acreditar que esteja em curso dentro do governo federal um
embate no que diz respeito a uma possível revisão da lei: “Outro dia, o
ministro da Justiça fez uma declaração solene pedindo desculpas pelas
barbaridades perpetradas pelo Estado brasileiro durante a ditadura. Por
outro lado, as Forças Armadas até hoje silenciam. O comando militar,
toda vez que é indagado, diz que não tem nada a declarar à Comissão da
Verdade”, lamenta. Ele também afirma que somente a mobilização popular
pode alterar o quadro atual: “A revisão da Lei de Anistia vai depender
da correlação de forças”.
Mentira sem tamanho
Durante o debate na ABI, Anita Leocádia Prestes citou o editorial publicado no mesmo dia pelo jornal O Globo
como uma “autocrítica meio canhestra” e exemplo das “teses contrárias
aos interesses dos trabalhadores” que estão sendo veiculadas na grande
mídia por “intelectuais a serviço dos donos do poder que estiveram
interessados no golpe e agora querem justificar o golpe”.
Entre as falsas teses mais comumente apresentadas por esses
setores, segundo a historiadora, estão: a) dizer que houve violência
após o golpe, mas, em compensação, o Brasil se desenvolveu
economicamente durante a ditadura; b) que a chamada “revolução de 64”
teria sido uma continuidade dos ideais do tenentismo; c) que a esquerda
também se preparava para dar um golpe, o que igualmente levaria o país a
uma ditadura, só que ainda mais “autoritária”; d) que a sociedade
brasileira sempre foi conservadora e queria o golpe.
“Essas teses interessam a quem? Elas não são ideologicamente neutras,
são mentiras que não têm tamanho”, diz a filha de Prestes, antes de
rebater uma a uma as teses da direita: “É verdade que o Brasil cresceu
no período da ditadura, mas com terrível concentração de renda e aumento
da corrupção do Estado. Durante o tenentismo, aqueles jovens militares
que se rebelaram na década de 20 tinham ideais de liberdade. Houve sim,
no movimento pelo golpe em 64, alguns antigos traidores do tenentismo,
como, por exemplo, Costa e Silva. Também interessa aos defensores do
status quo a ideia de que havia o perigo de dois golpes em 64. Quem
viveu aquela época sabe que isso é outra mentira, pois não havia nenhum
golpe de esquerda em preparação, mas sim uma preparação de longa data
para um golpe de direita apoiado pelo alto empresariado capitalista
nacional e estrangeiro”, diz.
Sustentar a tese de que o povo brasileiro apoiou o golpe, do ponto de
vista de um historiador, segundo Anita Leocádia, é uma
irresponsabilidade: “Sem dúvida, havia uma parte da classe média que foi
ganha pela mídia e pelos setores mais reacionários da Igreja para as
marchas de rua com a família, etc. Mas, isso não quer dizer que a
sociedade brasileira toda estivesse a favor do golpe. Pelo contrário,
naquele período a mobilização dos mais variados setores era a favor de
se avançar no caminho das reformas de base e do apoio ao governo de João
Goulart. Esses historiadores cumprem o papel de intelectuais orgânicos a
serviço dos interesses dominantes. Essas teses, como já não conseguem
mais negar a violência, as torturas, a repressão, os desaparecimentos,
procuram mostrar aspectos positivos da ditadura e jogar a culpa pelo
golpe sobre a sociedade brasileira”. (Com Carta Maior-Grifos meus, José Carlos Alexandre)
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