quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Pepe Escobar: ....Saigonistão

Bem-vindos a Saigonistão



Pepe Escobar

04.Out.12 :: Outros autores

Pepe Escobar  Quando Washington nem sequer pode confiar nos “nativos” que deixa para trás para cobrir a sua saída – e isso nem sequer toma em consideração as famílias ampliadas das mulheres e crianças que se converteram em “dano colateral” dos ataques aéreos dos EUA/OTAN – existem todas as condições para uma repetição de Saigão.


Para o chefe do Pentágono, Leon Panetta, uma recente vaga de ataques “verde contra azul” (ou seja, a partir do interior) contra soldados dos EUA e da OTAN – quer dizer: a versão afegã de fogo amigo – é apenas o “último alento” de um montão de talibans frustrados.
A nós, recorda-nos os “resíduos” do regime de Saddam segundo Don Rumsfeld, que na altura própria se transformaram em duros guerrilheiros iraquianos sunitas e fizeram a vida negra à ocupação estado-unidense.
De regresso à realidade, até o chefe do Estado-Maior Conjunto dos EUA, general Martin Dempsey, teve que admitir que “alguma coisa tem que mudar”. Só em 2012, forças de segurança afegãs mataram 51 soldados da OTAN – e a conta soma e segue.
Pode ser que não seja muito em comparação com as numerosas vítimas civis, também chamadas “danos colaterais”, da tenebrosa guerra de drones da CIA contra as áreas tribais do Paquistão. Para não falar da recente incursão estado-unidense que matou oito mulheres e meninas afegãs que estavam envolvidas numa conspiração extremadamente subversiva para recolher lenha.
Oh sim – mas trata-se de “eles”, não de “nós”.
Em todo o caso, alguma coisa mudou. O novo discurso da OTAN sobre o “verde contra azul” tem directamente que ver com a escala da “redução”. A partir de agora, patrulhas conjuntas ou qualquer “interacção” com afegãos apenas terá lugar a nível de batalhão (que agrupa 500 ou mesmo 800 membros).
Tratou-se –¡surpresa!– de uma decisão unilateral do Pentágono. Nenhum sócio na OTAN e nem sequer os próprios afegãos foram consultados.
E o significado desta medida é bem claro – e só vem confirmar o que já se sabia:
É o miserável fracasso de todos os planos ocidentais no sentido de criar uma força combatente afegã na qual estado-unidenses e europeus estariam inseridos – e em seguida deixar que eles mesmos se encarreguassem da segurança. No estado em que as coisas estão, muito poucas unidades afegãs podem envolver-se independentemente em operações tácticas.
É a solene construção de um Muro de Desconfiança - que está muito longe de ser apenas uma imagem - entre “nós” e “eles”.
É o fim de uma massiva campanha de relações públicas – apresentada à opinião pública ocidental – que até chegou a formular o seu slogan em dari: shohna (“ombro com ombro”), como se se tratasse dos “bons” ocidentais combatendo lado a lado com afegãos contra os “malignos” talibans.
Para além disso, o que isto implica é que não há uma estratégia de saída suave para os EUA e a OTAN. Mais cedo do que tarde – neste caso em Dezembro de 2014 – cresce a ameaça de um “momento Saigão” no Hindu Kush.
Agarra a espingarda e escapa-te
Como era de prever, o duro secretário-geral da OTAN, Anders Fogh Rasmussen, disse que continua a existir o prazo no sentido da responsabilidade total afegã pela segurança nacional em finais de 2014; a “redução” é “prudente e temporária”.
Em termos de perda de credibilidade, Rasmussen e a OTAN possivelmente não podem aceitar uma derrota ignominiosa e desatar a correr para a porta de saída. Especialmente depois do chefe supremo dos talibans, Mullah Omar, ter declarado há mais de um mês que os talibans “se infiltraram com astucia nas filas do inimigo de acordo com o plano que lhes foi entregue no ano passado”.
Mas mesmo sem a rampante infiltração por parte dos talibans, a OTAN nunca teria conseguido examinar todos os 352.000 membros das forças do exército e da polícia do Afeganistão. Na sua maioria são tayikos, alguns são hazaras e uzbeques, mas há também pashtuns, que podem ou não ser simpatizantes talibans, mas que simplesmente se alistam porque assim podem receber um soldo regular.
No que diz respeito à polícia afegã, é amplamente desprezada como um bando que apenas serve para montar bloqueios de estrada, inspecionar veículos e extorquir dinheiro.
Apesar dos onze anos que já dura a guerra afegã, esta é praticamente invisível nos EUA, mesmo no decurso de uma retirada de 33.000 soldados estado-unidenses ordenada pelo presidente Obama para o final do mês (68.000 permanecerão no país). Uma maioria dos estado-unidenses desejaria que a guerra terminasse… ontem … por exemplo proclamando vitória, voltando à estaca zero, e pondo-se a andar.
Agora, com a nova benção da OTAN, é razoável assumir que a maior parte das tropas ocidentais – e os potentados que açambarcaram os contratos – se irão no final do próximo ano.
No que diz respeito à obsessão do Pentágono em manter Forças Especiais no terreno até pelo menos 2024 – como instrumento útil para monitorar a Rússia e a China – depende de um Acordo de Estatuto de Forças (SOFA) que o Pentágono tem de convencer o governo de Hamid Karzai a assinar.
Faz agora dez anos, em Paris, perguntei a Hamid Karzai em pessoa como poderia constituir um exército afegão com uma tendência sectária – na sua maioria tayikos - e sem incluir a maioria pashtun. Interrompeu-me, e insistiu em que seria um êxito. Agora o Mullah Omar deu resposta à minha pergunta.
Depois de saquear o país durante mais de uma década, juntamente com o seu defunto irmão Ahmed Wali, o resultado mais provável é que Karzai já tenha reservado a sua saída em helicóptero ao estilo de Saigão, levantando voo de um telhado da base de Bagram.
Ou então poderia imitar Nouri al-Maliki no Iraque: não assinar o SOFA, e portanto despachar para sempre para os seus países o dispositivo dos EUA e da OTAN. Como Karzai não passa de uma marioneta dos EUA, é pouco provável.
No Iraque – e como parte de um plano maquiavélico imaginado pelo comandante Qassem Suleimani da Fuerza Quds iraniana – Maliki fez com que o Pentágono acreditasse que gostaria de um SOFA semelhante ao da Coreia do Sul. Mas depois, à última da hora, Maliki agregou uma cláusula ao tratado: os soldados/contratistas dos EUA estariam sujeitos à lei iraquiana. O acordo colapsou.
Sem um SOFA, existe também a questão do que fazer com todo o equipamento. Só os EUA têm pelo menos 100.000 contendores no Afeganistão. Grande parte do equipamento será vendido – ou “doado”– a aliados. Esse impecável democrata, o ditador do Uzbequistão Islam Karimov, por exemplo, ficaria encantado com receber a maior parte do espólio para as suas forças armadas.
Encontramo-nos no cemiterio
Quando Washington nem sequer pode confiar nos “nativos” que deixa para trás para cobrir a sua saída – e isso nem sequer toma em consideração as famílias ampliadas das mulheres e crianças que se converteram em “dano colateral” dos ataques aéreos dos EUA/OTAN – existem todas as condições para uma repetição de Saigão.
Até há pouco o debate era se os talibans aceitariam não atacar as tropas dos EUA/OTAN se o prazo para uma retirada total se mantivesse inalterável. Agora os talibans nem sequer necessitam de um acordo.
E no que diz respeito às ironias históricas, poucas poderão superar a de que a Rússia venha a preencher o vazio dos EUA/OTAN – anos-luz depois de a URSS se ter retirado do Afeganistão pela infausta ponte sobre o rio Amu Darya em Fevereiro de 1989.
O Afeganistão não regressará a uma sangrenta guerra civil como na primeira parte dos anos noventa – antes de Islamabad ter lançado a sua arma secreta, os talibans. Desta vez, o resultado mais provável é uma repartição do país entre os talibans e senhores da guerra locais, e que o Paquistão, Irão, India e Rússia se posicionem como os árbitros finais.
Sempre continuará a existir o problemático ângulo de que a última aventura afegã do Ocidente tenha que ver com a heroína – o que implica os imensos lucros da lavagem de dinheiro dos bancos privados. Falemos de um volumoso exército ocidental que assegure a segurança de senhores da guerra globais. Os precedentes abundam – como por exemplo as Guerras do Ópio.
Pero seja qual for ângulo de abordagem, o facto é que a esmagadora maioria dos afegãos – qualquer que seja a sua etnia– o que quer é que os invasores estrangeiros se vão embora. Para começar, nunca conquistaram os seus corações e as suas mentes; depois, e em resumo, os invasores nem sequer conseguiram chegar a falar pashtun ou dari.
E consideremos o seguinte:
“Uma guerra começada sem nenhum propósito sensato, realizada com uma estranha mistura de imprudência e timidez, terminada após sofrimentos e desastres sem que o governo que a dirigiu, ou as numerosas tropas que a travaram, tenham alcançado muita gloria. Nenhuma vantagem, política ou militar, foi adquirida com esta guerra. A nossa imagem final no país parecia-se com a retirada de um exército derrotado.”
¿Um comandante da OTAN? Não, o capelão do exército britânico, reverendo GR Gleig, escrevendo sobre a primeira guerra anglo-afegã. O ano: 1843.
Estamos a falar de um cemitério de impérios.

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