terça-feira, 27 de outubro de 2020

Os multimilionários e a pandemia

Os multimilionários e a pandemia por Prabhat Patnaik [*] Pirâmide da riqueza global, 2018.Os dados relativos à distribuição de riqueza são notoriamente difíceis de interpretar. Isto acontece porque variações nos preços das acções afectam a distribuição de riqueza, de modo que um boom no mercado de acções subitamente faz com que os ricos pareçam muito mais ricos, ao passo que um colapso do mercado de acções torna a distribuição de riqueza menos desigual da noite para o dia. Por outras palavras, o facto de que os ricos mantêm uma parte da sua riqueza na forma de acções torna difícil estimar a sua riqueza total a qual agora tem uma componente durável e outra que é potencialmente evanescente. Entretanto, há certas ocasiões em que se pode dizer algo definitivo acerca da distribuição de riqueza – o período da pandemia tem sido uma destas ocasiões. Há poucas dúvidas de que mesmo durante os meses da pandemia, enquanto milhões de trabalhadores de todo o mundo sofriam de modo agudo com a perda de emprego e de rendimento, os multimilionários do mundo aumentaram enormemente a sua riqueza. E isto certamente significa um aumento na desigualdade de riqueza no mundo. Segundo um relatório do banco suíço UBS, mencionado no Guardian de 7 de Outubro , a riqueza dos multimilionários do mundo aumentou em 27,5 por cento entre Abril e Julho deste ano, o período em que a pandemia estava no seu pico. A sua riqueza no fim de Julho havia atingido uma altura recorde de US$10,2 milhões de milhões (trillion) ou £7,8 milhões de milhões. O pico anterior da riqueza dos multimilionários era de US$8,9 milhões de milhões no fim de 2017. Desde então, enquanto o número de multimilionários aumentava ligeiramente de 2158 para 2189, a sua riqueza aumentou consideravelmente. De facto, entre o fim de 2017 e o fim de Julho de 2020 a riqueza per capita dos multimilionários aumentou em 13 por cento. O facto entretanto é que este aumento é o resultado líquido de dois movimentos contraditórios: uma queda até Abril de 2020 e uma ascensão drástica de 27,5 por cento desde então até o fim de Julho. Esta ascensão tem uma significância particular. Uma vez que grandes massas do povo dificilmente possuem qualquer riqueza e o pouco que elas possuem não flutua muito em valor, ao contrário dos preços no mercado de acções, um aumento nos preços das acções ipso facto aumenta a desigualdade de riqueza na sociedade e, inversamente, uma redução nos preços das acções reduz a desigualdade de riqueza. Uma conclusão sólida, como vimos, acerca da magnitude da mudança na desigualdade de riqueza torna-se difícil de traçar. Contudo, o aumento na desigualdade de riqueza depois de Abril é totalmente diferente. Segundo um porta-voz do UBS, quando os preços das acções estavam em queda antes de Abril de 2020 os multimilionários não só não liquidavam suas acções em pânico mas realmente compravam acções de possuidores mais pequenos que estavam empenhados no pânico da venda. Em consequência, quando os preços das acções aumentaram depois de Abril eles obtiveram enormes ganhos de capital. Estes ganhos decorrem essencialmente do facto de que pequenos possuidores de acções não têm a capacidade de reter suas acções. Portanto o aumento na concentração de riqueza durante a pandemia não foi apenas em relação aos muito pobres que de qualquer modo não têm riqueza, mas também em relação aos pequenos possuidores de riqueza. Não foi apenas o efeito espontâneo de uma ascensão geral nos preços das acções; foi um acto específico do que Marx chamou de centralização do capital. Em Imperialismo Lenine disse que toda crise sob o capitalismo, seja económica ou política, torna-se uma ocasião para a centralização do capital. É preciso acrescentar as crises médicas à lista de Lenine, na verdade toda a espécie possível de crises. O mecanismo habitual para a centralização é a ruína que visita os pequenos produtores capitalistas durante uma crise (ela também visita os micro produtores, mas a sua dizimação é encoberta sob a expressão acumulação primitiva de capital, ao invés de centralização) e portanto aqueles, tipicamente bancos mais pequenos ou agências de crédito, que os financiaram. Todos estes são capturados por companhias maiores, ou simplesmente afundam, deixando o campo livre para companhias maiores invadirem o espaço até então ocupado por eles. Além deste mecanismo de centralização, há também a simples fusão de capitais, o agrupamento conjunto de vastas massas de pequenos capitais nuns poucos muito grandes, tais como o que os bancos ou mercado de acções promove. Isto constitui outro mecanismo, muito poderoso, de centralização. O que temos assistido durante a pandemia é ainda outro mecanismo de centralização, diferente dos dois acima, decorrente da incapacidade de pequenos possuidores de riqueza enfrentarem os colapsos de preços de acções que os multimilionários podem aguentar. Este poder dos multimilionários não tem nada a ver com qualquer "coragem", ou "determinação" ou "empreendedorismo" ou qualquer daquelas supostas virtudes que a mitologia do capitalismo lhe atribui. Ele simplesmente tem a ver com o facto de que eles são grandes. Como eles são grandes podem permitir-se aguentar flutuações dos preços das acções na sua caminhada e até mesmo efectuar ganhos maciços com a incapacidade dos pequenos possuidores de riqueza para assim fazer. De facto, ironicamente sua capacidade para aguentar flutuações dos preços das acções decorre não de serem "tomadores de risco" mas sim de serem precisamente o oposto, ou seja, avessos à tomada de riscos. A sua riqueza implica que se podem dar ao luxo de não correr riscos, ou seja, o luxo da "segurança". Daí que detenham a sua riqueza de uma forma diversificada para minimizar o risco e as acções são apenas uma das formas em que detêm a sua riqueza. Quando os preços das acções caem a um nível invulgar, como acontece com qualquer crise sem precedentes, podem permanecer imperturbáveis, ao passo que os detentores de riqueza mais pequenos são apanhados desprevenidos. Os grandes detentores de riqueza aproveitam esta oportunidade para obterem ganhos com os males dos pequenos detentores de acções que começam a vender acções em desespero. Um exemplo tornará este ponto mais claro. Se eu tiver 100 rupias de riqueza, então gostaria de mantê-la numa forma que me dê um rendimento suficientemente grande, mesmo que haja o perigo de incorrer em perdas de capital. A minha preferência não é por gostar de correr riscos, mas porque preciso desesperadamente do rendimento. Por isso, por exemplo, colocarei toda a minha riqueza em acções. Se, pelo contrário, se eu tiver 1 milhão de rupias, então já tenho um rendimento amplo de qualquer forma e posso dar-me ao luxo de reter apenas metade da minha riqueza sob a forma de acções e a outra metade sob a forma de saldos bancários que dificilmente me dão qualquer rendimento. Se houver uma queda de 10% nos preços das acções, então enquanto o pequeno detentor de acções perde 10% da sua riqueza, o grande detentor de acções perde apenas 5% (ou seja, 10% sobre metade da sua riqueza). O último pode portanto permitir-se suportar a queda na sua trajectória, ao passo que o primeiro não pode. E quando em desespero, para evitar novas perdas, o primeiro começa a vender acções, o segundo, ou seja, o grande detentor de acções, compra essas acções e mantém-nas até o mercado se tornar mais favorável. As flutuações no mercado de acções são comuns sob o capitalismo; mas as quedas são muito mais drásticas durante as crises, não importam como sejam causadas. E este é precisamente o período em que grandes possuidores de riqueza fazem uma matança a expensas dos pequenos. A centralização ocorre com uma vingança durante tais períodos. Todo este processo, embora executado em relação aos pequenos detentores de riqueza, faz lembrar a acumulação primitiva de capital infligida aos micro produtores. Se os grandes detentores de riqueza compram acções no valor (genuinamente) de Rs 100 aos mais pequenos a Rs 100, então não há ganho líquido para eles. Para pagar esta compra, têm de reduzir os seus saldos de caixa ou pedir emprestado aos bancos ou vender algum outro activo que possuam. Em todos estes casos não há aumento do activo líquido que possuem (ou do seu "património líquido"). Mas se comprarem acções no valor de Rs 100 por apenas Rs 50 devido a uma queda nos preços das acções, e, digamos, tomarem emprestado este montante junto a um banco, então quando os preços das acções recuperarem para o seu verdadeiro valor, eles teriam expandido o seu património líquido em Rs 50. Neste caso, os maiores detentores de acções teriam enriquecido à custa dos mais pequenos em Rs 50, o que é análogo à acumulação primitiva de capital. O porta-voz do UBS alegou que o aumento da concentração da riqueza durante a pandemia era um fenómeno estranho ao capitalismo. Ele não podia estar mais errado. Está inteiramente em conformidade com a lógica do capitalismo; na realidade, é inevitável sob o capitalismo que toda tragédia humana que desencadeie uma crise neste sistema se torne uma ocasião para um aumento da concentração da riqueza através do mecanismo que acaba de ser esboçado. Este aumento na concentração da riqueza tem ocorrido país após país, incluindo mesmo na Índia, onde, de acordo com a mesma fonte, a riqueza dos multimilionários indianos aumentou 35% no mesmo período para US$423 mil milhões de dólares ( The Wire, 16 de Outubro). Ao longo deste período, a produção contraiu-se em quase um quarto, tal como o emprego. Este contraste dá uma ideia do modus operandi do capitalismo. 25/Outubro/2020 [*] Economista, indiano, ver Wikipedia O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2020/1025_pd/billionaires-and-pandemic Tradução de JF. Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ .
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