domingo, 20 de março de 2016

Cesar Mangolin / ‘O discurso de combate à corrupção não é sério’

‘O discurso de combate à corrupção não é sério’

Cientista político e professor universitário, Cesar Mangolin, analisa o cenário político atual

por Daniela Origuela

"A possibilidade do impeachment está ligada à capacidade de organização e mobilização dos que se batem contra e a favor do governo" (Foto: Arquivo Pessoal)

O Brasil passa por mais um período delicado de sua história. Nas ruas movimentos contra e pró-governo. As ‘torcidas’ têm cores: verde e amarelo e vermelho. De um lado o coro é pelo fim da corrupção e da era petista. Do outro o discurso é contra o golpe. Os ânimos estão acirrados e muitos falam em guerra civil. Há quem aposte na certeza do impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT). A crise econômica, até então com grande destaque, deu lugar a uma intensa crise política. O futuro ainda é incerto.
Diário do Litoral conversou com o cientista político e professor universitário Cesar Mangolin. O docente, que é doutorando em Filosofia, na Unicamp, fez, neste Papo de Domingo, uma breve análise de temas abordados nos últimos dias como impeachment, golpe de estado, governabilidade, guerra civil e discurso do ódio.
Diário do Litoral - O momento político que o Brasil enfrenta é um dos mais delicados pós redemocratização. As manifestações populares também ficaram mais intensas. Como você avalia este período?
Cesar Mangolin - Nenhuma pergunta sobre esse período é fácil de ser respondida, tampouco é possível fazê-lo em pouco espaço. Mas é necessário ir para além do discurso e das aparências para entender essa conjuntura, que vem se desenhando desde as manifestações de 2013. Na verdade o que temos é um conjunto de contradições e forças sociais que se encontram numa unidade, que proporciona força política para saídas à direita, ainda que essas forças sociais, frações de classes, grupos de interesse não possuam exatamente os mesmos objetivos e as mesmas motivações. O que tem conseguido dar unidade aparente a esses setores é o discurso do combate à corrupção, que não é levado a sério, de fato, por nenhuma dessas forças.
DL - A possibilidade de impeachment da presidente Dilma Roussef (PT) ganha força. Você acredita que isso possa ocorrer? Por quê?
Cesar Mangolin - O processo de impeachment que tramita no Congresso Nacional tem como base um suposto crime de responsabilidade cometido pelas chamadas “pedaladas fiscais”. Esses procedimentos assim chamados não são novidade em governos brasileiros, sendo praticados, pelo menos, desde o ano 2000, ainda no segundo mandato de FHC. Penso ser difícil que o processo tenha seguimento caso seja analisado apenas “tecnicamente” e não politicamente. Nesse caso, a comissão instalada nesta semana pela Câmara rejeitaria o processo e a coisa terminaria ali. Mas será o alto grau de politização que dará o tom do prosseguimento do processo. Isso significa que não bastam as forças dentro da comissão da Câmara dos Deputados e muito menos uma análise qualificada dos supostos crimes de responsabilidade. A possibilidade do impeachment está ligada à capacidade de organização e mobilização dos que se batem contra e a favor do governo.
DL - Caso o governo consiga se manter, na sua opinião o que ele terá de fazer para garantir a governabilidade diante de um país ‘dividido’ e sem o apoio do Legislativo?
Cesar Mangolin - Sem apoio do Legislativo isso não vai ocorrer. A decisão está nas mãos do Legislativo agora, que é quem decide sobre o processo de impeachment. Nem acredito que o país esteja dividido. Essa ideia foi gerada pela votação presidencial das eleições de 2014, mas não é tão simples acreditar que todos os que votaram em um dos dois candidatos assumem integralmente a posição deles nesse momento. Por exemplo, tenho certeza de que uma grande parte dos eleitores de Aécio Neves e do PSDB discorda do golpismo e dos procedimentos de baixo nível adotados por eles. Dentro do próprio PSDB há defecções: parlamentares que mudaram de partido, quadros históricos que saíram do partido. Não acredito, portanto, que a votação sirva de critério para concluir por uma divisão do país. A continuidade do governo exigirá a conformação de uma base de sustentação. Acredito que a presidente tenderá a conciliar e conceder mais às frações mais agressivas do grande capital. O mais provável é que a continuidade do governo o conduza mais ao centro, embora não devamos descartar a possibilidade de avanços sociais em alguns setores específicos, tanto no sentido do combate aos efeitos da crise, quanto no da continuidade do projeto desse ciclo de governos, que chamamos de neodesenvolvimentista.
DL – Há políticos que defendem o parlamentarismo no país com a justificativa de ‘preservação do governo e equilíbrio do poder’. O Brasil está preparado para esse regime?
Cesar Mangolin - Esse parlamentarismo hoje é apenas um recurso golpista no mesmo sentido da derrubada da presidente eleita pelo voto direto em 2014. É bom lembrar que em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros e a tentativa de impedir a posse de João Goulart, apareceu um parlamentarismo à toque de caixa, que tinha na verdade a função de neutralizar o presidente. Não é o presidencialismo ou o parlamentarismo que estão em questão e, por si sós, resolveriam o problema. É a disputa de distintos projetos de país, dentro da sociabilidade burguesa e numa conjuntura de crise. E é necessário insistir nesse detalhe: não estamos, ao contrário do que pensam alguns setores mais histéricos da direita, diante de uma “ameaça comunista”. Os governos do PT não são e nem nunca o próprio PT foi empenhado diretamente e em bloco no projeto socialista. Estamos diante de projetos distintos da própria sociabilidade burguesa, que atendem prioritariamente a frações distintas do grande capital, que disputam entre si a hegemonia no bloco no poder num contexto de crise mundial do capitalismo, que é o que explica essencialmente a crise interna.
DL – A palavra golpe está em evidência. O pedido de intervenção militar chama a atenção nas manifestações, inclusive partindo de muitos jovens. Assim como em 1964, quando os militares assumiram o poder e teve início o período de ditadura no país, há possibilidade da história se repetir? Existem semelhanças nos movimentos realizados naquele período e atualmente?
Cesar Mangolin - Não acredito que haja condições nessa conjuntura e nem razão para que algo como a ditadura civil-militar (de triste e lamentável memória) que persistiu de 1964 a 1985 se repita. Falo do tempo de duração. Mas o que chamam de impeachment ou a defesa da intervenção militar hoje são, claramente, golpe de Estado. Não há outro termo para caracterizar a tentativa de derrubar a presidente que foi eleita diretamente e pelo voto popular. A mesma história se repetiu em mais de dois momentos e sempre que duas características foram reunidas. Todas as vezes que governos colocaram em movimento projetos que contrariaram alguns interesses do grande capital estrangeiro e, ao mesmo tempo, adotaram medidas que visavam o desenvolvimento social, ou mais concretamente, políticas sociais que visavam a melhoria das condições de vida dos trabalhadores. Isso ocorreu, por exemplo, nas crises de 1954 e 1964, a primeira com o desfecho no suicídio de Vargas e a segunda com o início da ditadura militar. Vivemos algo semelhante nesse momento, portanto. Vale insistir nessas duas características, que têm relação com a nossa formação histórica. A primeira é o papel subordinado do Brasil nas relações internacionais e o fato de sermos, desde muito tempo, um país que sofre a intervenção e exploração de suas riquezas por parte dos países do centro do sistema. Todas as vezes que ousamos pôr em prática políticas que contrariam essa nossa vocação à genuflexão diante dos interesses do imperialismo, a crise aparece. De outro lado, a secular miséria de grandes parcelas da população brasileira e uma dada percepção sobre os trabalhadores que ainda é derivada do nosso passado escravista (historicamente, aliás, muito recente) provoca dois movimentos. O primeiro é a insatisfação de parcelas do grande capital, acostumadas a uma exploração brutal dos trabalhadores e, segundo, a melhoria das condições de vida dos trabalhadores ameaça os canais de manutenção e justificação dos setores médios. Nesse sentido, infelizmente, a história tem se repetido várias vezes.
DL – O discurso de ódio e a intolerância estão acirrados nas ruas e nas redes sociais. Há, inclusive, a preocupação do início de uma guerra civil no país. Caminhamos para isso?
Cesar Mangolin - Ninguém que seja sério na análise desse momento pode cair em duas tentações: a de reduzir essa movimentação a um simples jogo de torcidas organizadas e a de tentar prever o futuro. É próprio da ciência fazer a análise concreta e objetiva da realidade e até definir as probabilidades, mas não a previsão. O que podemos perceber é que há, principalmente do lado dos que querem a derrubada do governo, um nível absurdo de desinformação. As pessoas não sabem para e pelo que estão nas ruas ou agredindo as outras. Não conseguem racionalizar o ódio que expressam ao governo, a Lula, ao PT ou à esquerda. No geral, nem sabem exatamente o que significa qualquer coisa dessas. Chamo isso de histeria coletiva desde 2013. Esse estado de ânimo é sempre, tendencialmente, violento. O que vai definir o resultado dessa crise é, em grande parte, a capacidade de mobilização dos dois lados e o fôlego de permanecer nas ruas dos dois grupos. Mas o componente novo é que não me parece que dessa vez um golpe passará sem uma resistência massiva, organizada e imediata. É bom lembrar que o discurso de ódio e a pregação e prática da violência está partindo por enquanto apenas dos grupos contrários ao governo, envenenados pelos discursos fáceis e pela manipulação da grande imprensa e movidos por esses preconceitos seculares que falávamos antes. Mas há uma militância organizada e responsável, que tem memória histórica tanto da situação econômica anterior a esse ciclo de governos, quanto da tragédia da ditadura militar, que está disposta a defender não apenas o governo, mas as liberdades democráticas.
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