quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Alfredo Rada Vélez / “Sem movimentos sociais não há processo de mudança”

Entrevista a Alfredo Rada Vélez

“Sem movimentos sociais não há processo de mudança”

Rider Mollinedo
01.Out.15 :: Outros autores
Os movimentos de massas bolivianos (sindicatos operários, movimentos das populações, dos camponeses, dos indígenas) não constituem apenas a base de apoio – ainda que com fortes contradições internas - do processo de transformação. Assumem iniciativa política, e o governo reconhece, estimula, e considera decisivo o seu papel dirigente.


Quando o presidente Evo Morales concluir o seu presente mandato, em 22 de Janeiro de 2020, terá sido o homem que mais anos governou a Bolívia de forma contínua. Este facto não é de nenhuma forma irrelevante ou fortuito. Evidencia a liderança histórica de uma pessoa que, com virtudes e erros, concentra as esperanças de um melhor amanhã para imensas maiorias dos que habitam o território pátrio no momento presente.
Na quinta-feira 17 de Setembro de 2015 os representantes de diversas organizações sociais aglutinadas em torno da Coordinadora Nacional por el Cambio (CONALCAM), após uma multitudinária marcha, entregaram aos representantes da Assembleia Legislativa Plurinacional de Bolívia um projecto para a reforma da Constituição Política do Estado, com o objectivo de conseguir a candidatura a um novo mandato tanto do primeiro mandatário do país como do segundo, Álvaro García Linera, nas eleições nacionais de 2019, para que completem assim o que tem vindo a ser denominado a Agenda Patriótica em prol do desenvolvimento nacional. Sobre este e outros importantes temas o semanário La Época entrevistou Alfredo Rada, vice-ministro de Coordenação com os Movimentos Sociais e Sociedade Civil, inegável defensor do processo de mudança.
Rider Mollinedo (RM).- À maneira de preâmbulo, ¿quanto mudou Bolívia nos últimos 10 anos em comparação com as décadas anteriores?
Alfredo Rada (AR).- O processo constituinte encabeçado pelos movimentos sociais indígenas, operários e populares mudou o Estado boliviano, que passou da velha forma republicana monocultural e centralista a um Estado plurinacional, comunitário e com autonomias. Deve esclarecer-se que se trata de um novo Estado Plurinacional que está a ser construído, com dificuldade, a partir dos alicerces fixados pela última Assembleia Constituinte.
Também a economia foi transformada, pelo processo de nacionalização de vários sectores estratégicos. A nacionalização dos hidrocarbonetos em 2006 gerou um enorme fluxo de receitas para o país, em resultado da retenção do excedente económico originado neste sector. O Estado, pela via de nacionalizações do capital transnacional, estatizações do capital privado nacional e da apertura de novas empresas públicas produtivas, fortaleceu-se e hoje controla 35% do produto interno bruto do país. Dessa forma deixámos para trás o modelo neoliberal em que, como sabemos, quanto menos Estado melhor para os capitalistas; passámos a um modelo com decisiva presença reguladora e redistributiva estatal, embora ainda dentro do sistema capitalista.
Creio que radicam aqui as tarefas, no plano económico, que devem levar-nos ao aprofundamento deste processo: continuar fortalecendo o Estado com novas nacionalizações, ao mesmo tempo que potenciamos o sector social e comunitário da economia transferindo para ele uma parte do excedente recuperado. Esta será a via para sair do capitalismo e começar a construção de um novo socialismo comunitário e do Viver Bem.
No que diz respeito ao processo democrático, estamos a passar de um regime formal e representativo, para um regime democrático participativo em que, com a acção unitária dos movimentos sociais, poderá construir-se um novo tipo de poder, o poder social comunitário.
RM.- ¿Qual o valor da luta empreendida pelos movimentos sociais nesta última década?
AR.- Respondo-lhe com uma frase: sem movimentos sociais não há processo de mudança, e isto explico-o em dois sentidos: o primeiro, é que foi a sua luta organizada que derrotou o neoliberalismo e abriu este processo; o segundo, é que no momento em que os movimentos sociais retrocedam, se burocratizem, se corrompam ou se fracturem, este processo de mudança atingirá o ponto de estancamento e de reversão.
Não faltaram alguns intelectuais que apoiaram o processo por algum tempo e depois se declararam dissidentes, que pensaram que quando do “gasolinazo” (1) de 2010 ou do conflito pelo TIPNIS de 2011 tínhamos chegado a esse ponto de inflexão e se apressaram a pronunciar o epitáfio do processo de mudança. Hoje vemo-los ao lado da direita ou, os mais honestos, totalmente à margem da acção de massas.
RM.- ¿Quais são as falhas que afectam as organizações que acompanham o processo de mudança?
AR.- Entre as falhas há que destacar que durante vários anos as organizações sociais descuidaram o debate ideológico e a iniciativa política. Notei que recentemente, quando reencontro entre a Central Obrera Boliviana (COB) e o Governo de Novembro de 2013, e particularmente, desde a Cimeira Anti-imperialista realizada em Cochabamba em Junho de 2014, regressaram ao interior das organizações os debates estratégicos, em especial das operárias.
A corrupção e o que denomino de processo de degradação interna são também males que atingiram e provocaram danos em algumas organizações, e isto podemos constatá-lo com o vergonhoso caso do Fundo Indígena, cuja nefasta consequência é o facto de que as organizações camponesas e indígenas que configuraram o Pacto de Unidade em 2004 se debilitaram e perderam autoridade política perante o resto da sociedade. Recuperá-la levará anos e exigirá uma limpeza de dirigentes, em que os cargos seja assumidos por dirigentes jovens que não tenham sido contaminados por más práticas.
RM.- Até à data, ¿que papel tem desempenhado o presidente Evo Morales, como líder histórico dos movimentos sociais, na construção do Estado Plurinacional?
AR.- Evo é uma referência de unidade das forças populares, indígenas e operárias. O seu grande mérito consiste em ter-se mantido fiel aos princípios anti-imperialistas, anticolonialistas e anticapitalistas.
Evo nunca pronunciou qualquer discurso em que elogie o “modelo capitalista cruceño” ou fale do “capitalismo andino”; nunca o ouvimos apresentar um “terceiro sistema” como, por exemplo, faz hoje o novo Governador do departamento de La Paz, Félix Patzi, para se posicionar como o representante da nova burguesia aymara. Creio que essa coerência de Evo explica que os movimentos sociais no seio da CONALCAM o continuem a apoiar como liderança revolucionária e procurem a sua reeleição.
A multitudinária marcha (quinta-feira 17 de Setembro) com que a CONALCAM fez entrega à Assembleia Legislativa Plurinacional da sua proposta de modificar a Constituição para o referido efeito de reeleição, realizando um referendo para que o povo soberano decida nas urnas, foi uma nova expressão da democracia participativa, da acção de massas que irrompe na sede dos poderes públicos, neste caso enchendo o edifício da Vice-presidência do Estado, para consagrar unitariamente a sua vontade de impedir qualquer possibilidade de retorno da direita.
RM.- Considera que a CONALCAM é o gabinete dos movimentos sociais. ¿qual a importância desta organização no momento actual?
AR.- Para entender isto é necessário recapitular a ainda curta história da CONALCAM.
Nasce em 2007 para defender a Assembleia Constituinte que estava ameaçada por esse contra-revolucionário grupo de prefeitos e dirigentes cívicos da denominada “Media Luna” que se agruparam no Conselho Nacional de Defesa da Democracia (CONALDE), um nome verdadeiramente irónico para esse grupo de separatistas que em Setembro de 2008 tentaram derrubar Evo com um golpe cívico-regional.
Derrotado esse intento golpista, a CONALCAM imediatamente realiza a marcha a partir de Caracollo (Oruro) até La Paz, em Outubro de 2008, exigindo a convocação do referendo para aprovar a nova Constituição Política do Estado. Estou seguro de que aquela mobilização indígena-operária-popular foi a maior da nossa história.
Depois veio o refluxo. As massas desmobilizam e o governo comete o erro de lançar o “gasolinazo” que motivou a saída da Central Obrera Boliviana da CONALCAM em 2011. A Coordenadora praticamente deixa de existir nos dois anos seguintes mas recupera forças com a decisão da COB de voltar a apoiar o processo de mudança, para o aprofundar na base da aplicação de medidas revolucionarias.
Hoje a CONALCAM reúne três forças sociais: 1) A dos sindicatos operários estruturados na COB, que é a que mais influencia política tem na actualidade, onde se destacam os trabalhadores mineiros e metalúrgicos, os petroleiros, os fabris, os construtores e os operários do sector da energia; 2) A do Pacto de Unidade indígena campesino originário, que tem a maior presença territorial e o maior número de afiliados, mas que foi nos últimos tempos atingido pelas denúncias de corrupção; 3) A dos sectores populares não sindicalizados, onde estão as Juntas de Vizinhança urbanas, as Juntas de Pais e Mães de Família de Colégios (também se denominam Juntas Escolares), os trabalhadores dos transportes, os cooperativistas e os microempresários.
Como se pode verificar, a CONALCAM é uma expressão orgânica do que temos denominado Bloco Social Revolucionário. Daí a sua importância estratégica para o processo boliviano.
Na CONALCAM não está presente, nem deve vir a estar no futuro, nenhum sector da burguesia; nem sequer dos cooperativistas mineiros (tão questionados recentemente) que são mais de cem mil filiados. Não pode dizer-se que todos eles são empresários capitalistas, uma vez que de entre esse número a grande maioria são trabalhadores directos, que poderíamos denominar como proletariado não sindicalizado.
Evo manteve incólume o princípio de gerir o Estado a partir de um Governo dos movimentos sociais. Foi em virtude disso que me animei a qualificar a CONALCAM como um verdadeiro “gabinete dos movimentos sociais” que, no que diz respeito ao debate ideológico, estratégico e político, está à frente do gabinete ministerial, sobre o qual recaem as tarefas de uma boa gestão governamental. Justamente, uma iniciativa estratégica da Coordenadora foi colocar a necessidade de uma reforma parcial da nossa Constituição que permita a reeleição do companheiro Evo com um horizonte de tempo até 2025 (ano do bicentenário da Bolívia), para o que deve realizar-se um referendo em que o povo decida.
RM.- Há dias Samuel Doria Medina atacou a iniciativa de modificação da CPE apresentada pela CONALCAM, ¿que pretende com esta atitude o líder da força opositora Unidade Nacional?
AR.- Doria Medina é a prova de que não basta ter dinheiro para ser líder. O que lhe sobra em dinheiro, falta-lhe em termos de intuição e cálculo político. Antepõe a sua ambição pessoal a qualquer projecto alternativo da oposição de direita. O seu último erro foi jugar as suas cartas apostando no descalabro económico que segundo ele virá em 2016. Disse, “vem aí o descalabro económico” como se isso, a ser verdade, só afectasse o Governo; não se dá conta que um cenário como o que deseja afectaria o povo e que o cidadão simples não gosta de maus augúrios.
As forças da direita em Bolívia sabem que para derrotar o governo de Evo devem primeiro derrotar os movimentos sociais. A enorme campanha de desprestígio que lançaram utilizando vários meios de comunicação procura desmoralizar e debilitar al povo, mas parece-me que o povo que vai responder ao apelo da CONALCAM que implicitamente lhe está a dizer: “mobilizemos de forma unitária todas as nossas forças para derrotar democraticamente a direita no próximo referendo e assim garantir a continuidade e o aprofundamento deste processo de mudança”.
Mantenho que a direita não se preparou para o cenário político que aí vem. A iniciativa dos movimentos sociais apanhou-a desprevenida. Por isso é que improvisam argumentos contra o referendo: que vamos para uma monarquia, que o autoritarismo, que a fraude, que a alternância. Nenhum dos seus argumentos resiste a um debate político serio. ¿Como podem falar de monarquia ou de autoritarismo quando se está propondo realizar um acto tão democrático como é um referendo? ¿como podem falar de alternância quando não têm nem projecto político alternativo, nem líder alternativo, nem modelo económico alternativo?
RM.- Alguns analistas sugerem que os resultados do referendo de 20 de Setembro para a aprovação de estatutos autonómicos e cartas orgânicas em grande parte do território nacional constituirão um indício para verificar o grau de aceitação da figura política que representa Evo Morales, ¿que opinião tem relativamente a este tema?
AR.- A direita, de forma titubeante, está a tratar de converter a consulta sobre os Estatutos Autonómicos numa espécie de plebiscito contra Evo. Para isto já os temos visto a juntar-se a Patzi, Costas, Revilla, Doria Medina. Todos eles, obedecendo à consigna pelo “não”, que Manfred Reyes Villa lançou de Miami. Duvido que tenham êxito, pois recordemos que nas eleições judiciais de 2011 também tentaram este caminho com a consigna “maioria manda”, pensando que dessa forma acumulavam capital político, mas fracassaram três anos depois, nas eleições gerais de Outubro de 2014, quando Evo voltou a ganhar de forma contundente, com mais de 61% dos votos.
A consulta autonómica deste domingo dia 20 tem a ver com a aplicação prática do regime de autonomias na Bolívia. Equivoca-se quem queira convertê-la noutra cosa que não seja isso. Equivocam-se os opositores e equivoca-se também o Comité Cívico de Potosí
(COMCIPO) que na realidade o que pretende é encontrar uma válvula de escape para a pressão interna na própria cidade de Potosí, cujos moradores se interrogam cada vez com maior insistência, ¿que ganhamos com a greve cívica de 23 dias?
Voltando a falar da CONALCAM, creio que é muito auspicioso, para aqueles que estamos a trabalhar para construir a mudança revolucionária para o socialismo comunitário, que essa Coordenadora se fortaleça graças à iniciativa democrática que tomou. Se actuamos juntos - Governo e movimentos sociais – há mais vitórias a caminho.

Entrevista realizada por Rider Mollinedo. Publicada em La Epoca a 18 de Setembro de 2015
Notas:
1- Foi designado como “gazolinazo” o decreto do Governo, promulgado em 26.12.2010 pelo então presidente em exercício, Álvaro Garcia Linera, que estabelecia aumentos no preço dos combustíveis (atingindo num caso os 83%). A publicação do decreto suscitou violentos protestos populares. Opondo-se a essas medidas, a central sindical COB retirou o apoio ao governo. O Presidente Morales revogou o decreto passados cinco dias. (NdT)
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