terça-feira, 7 de julho de 2015

Prabhat Patnaik / O espectro dos anos trinta

O espectro dos anos trinta


por Prabhat Patnaik [*]
Corrida ao American Union Bank.O Banco de Reserva da Índia negou, como era de esperar, que o seu governador Raghuram Rajam tenha alguma vez sugerido que o mundo estava a enfrentar a possibilidade de uma Grande Depressão do tipo da da década de 1930. Membros da "comunidade financeira global" supostamente não dizem tais coisas. Assim, mesmo que o Dr. Rajan o tenha feito, um desmentido era inevitável.

A questão entretanto não é se Rajan realmente disse isto. A questão não é tão pouco se o mundo realmente deslizaria para uma depressão tipo década de 1930. A questão é se os problemas levantados por Rajan no evento organizado em Londres eram válidos e significativos.

Ele referia-se ao abrandamento competitivo da política monetária que se está a verificar por todo o mundo devido à pressão para ressuscitar o crescimento, o qual tem estado sempre esquivo desde a crise de 2008. Tal abrandamento competitivo, ao invés de criar crescimento na melhor das hipóteses tem o efeito de transferir crescimento de um país para outro – o que leva o mundo a ser capturado numa versão actualizada da política "empobrecer o meu vizinho" que caracterizou a década de 1930 e realmente agravou o declínio (slump) ao efectivamente destruir os arranjos económicos internacionais que existiam até então e minar o "estado de confiança" dos capitalistas por toda a parte.

EFEITO AGRAVAMENTO 

Quando o Padrão Ouro entrou em colapso em 1931 seguiram-se desvalorizações competitivas de divisas por toda a parte. Agora, se um país desvaloriza sua divisas,enquanto outros não o fazem, então as suas mercadorias, tudo o mais permanecendo o mesmo, tornam-se mais baratas em comparação com as de outros países, o que portanto transfere a procura de outros países para as suas mercadorias. Isto equivale a uma tentativa de aumentar o emprego interno (porque mais mercadorias domésticas são agora procuradas e portanto produzidas) a expensas do emprego em outros países (porque menor quantidade das suas mercadorias são agora procuradas). Uma tal tentativa, contudo, que equivale a tornar-se mais rico a expensas do vizinho (daí a expressão política do "empobrecer o meu vizinho") não funciona se outros países também efectuarem acções protectoras, desvalorizando também suas divisas. Em tal caso há apenas um enxurrada de desvalorizações por toda a parte, sem que um único país seja o ganhador por causa disto.

Mas tais depreciações competitivas da taxa de câmbio não deixam apenas todos os países exactamente onde estavam antes de tudo começar; elas exacerbam a incerteza na economia mundial e servem para amortecer o investimento ainda mais, provocando uma nova contracção da procura agregada e portanto do emprego por toda a parte. Em suma, as políticas do empobrecer o meu vizinho, com cada um a tentar "roubar" emprego dos demais, tem o efeito de agravar a situação para todos.

A versão moderna da política do "empobrecer o meu vizinho" a que Raja estava a referir-se funciona como se segue. O principal país capitalista do mundo, os Estados Unidos, a fim de estimular crescimento na sua economia, reduz a sua taxa de juro quase a zero e neste processo inunda a economia com dólares impressos pelo seu banco central, o Federal Reserve Board. Estes dólares vão então para todo o mundo uma vez que as taxas de juro alhures ainda não foram reduzidas. Um tal aumento na oferta de dólares reduziria, se tudo o mais permanecesse o mesmo, o preço do dólar em relação a outras divisas, o que significaria uma mudança da procura das mercadorias de outros países para mercadorias americanas, ou um "roubo" de empregos dos outros países pelos EUA. Outros países obviamente não permitem que isto aconteça, isto é, não permitem que suas divisas valorizem em relação ao dólar. Assim, previnem isto fazendo com que os seus bancos centrais detenham os dólares despejados nas suas economias à taxa de câmbio prevalecente. Como os bancos centrais detêm cada vez mais dólares, eles imprimem cada vez mais divisa interna; donde se segue um abrandamento da sua política monetária interna.

Temos portanto um abrandamento competitivo da política monetária em toda a parte, o qual realmente camufla um impulso competitivo que não está a ser encenado na frente da taxa de câmbio. É portanto uma versão moderna do espectro das desvalorizações competitivas da década de 1930. Contudo, neste processo um enorme montante de liquidez é acumulado na economia mundial, o qual tem o potencial para desestabilizá-la e precipitar um agravamento da situação para todos, o que recorda a década de 1930.

É para isto que Rajan estava a chamar a atenção – e com razão. O problema com o seu argumento, contudo, está não no que ele disse mas no que ele não disse. E é o seguinte. Normalmente, deveria haver dois instrumentos disponíveis para os Estados capitalistas estimularem maior emprego e crescimento:   a política orçamental e a política monetária. A política orçamental pode ter um impacto expansivo sobre a economia se o governo incidir num défice orçamental; ela pode mesmo ter impacto expansivo através de um "orçamento equilibrado" (ou com um tecto sobre o défice orçamental) através de um aumento absoluto na dimensão do orçamento. 

Esta última possibilidade, de um orçamento equilibrado provocar um aumento na procura agregada, através de um aumento absoluto na dimensão do orçamento, decorre da seguinte razão. Suponha que o governo gaste um adicional de 100 rupias. Isto gera Rs100 de procura adicional. Mas se o governo equilibra esta despesa pela elevação de impostos adicionais no valor de Rs100, então só uma parte disto reduz o consumo ao passo que o resto vem de "poupanças". Suponha que o consumo é reduzido em Rs80 e as "poupanças" em Rs20. Uma vez que as "poupanças" por definição não estavam a ser gastas, isto significa que a redução na procura devido à tributação é de apenas Rs80. Portanto mesmo com um orçamento equilibrado há uma expansão líquida da procura em Rs20 (isto é, Rs100 – Rs80).

Contudo, o capital financeiro não gosta de défices orçamentais e prefere ao invés "finanças saudáveis" (isto é, orçamentos equilibrados), inventando toda espécie de argumentos espúrios para isso, aos quais a grande economista Joan Robinson denominou "a impostura da finança". Além disso, num mundo no qual a atracção do investimento estrangeiro (e, mais geralmente, a promoção do "incentivo a investir" dos capitalistas) é vista como o principal instrumento para gerar maior actividade, é evitada qualquer tributação mais ampla de capitalistas (os quais institucionalmente poupam uma maior proporção do rendimento, via lucros não distribuídos das firmas, e portanto são os melhores candidatos à tributação para aumentar a procura através de um "orçamento equilibrado"). Na verdade, de facto, são-lhes oferecidas concessões fiscais numa tentativa fútil de gerar maior actividade. A utilização do instrumento orçamental é portanto impedida no capitalismo neoliberal, marcado pela hegemonia do capital financeiro internacional. A política monetária, dentro da qual a política da taxa de juro tem o lugar de destaque, torna-se o instrumento único para promover o crescimento.

Agora, uma redução da taxa de juro é o método para "criar" crescimento. Mas uma redução da taxa de juro é também o método para enfraquecer a divisa e depreciar a taxa de câmbio. Para utilizar a distinção de Rajan, o mesmo instrumento que se supõe "criar" crescimento acontece também que "muda" o crescimento de outros países através do seu efeito sobre a taxa cambial. Naturalmente, se o crescimento estivesse realmente a ser "criado" e a economia americana (a qual tomou a iniciativa de reduzir as taxa de juro) estivesse a expandir-se rapidamente, emparelhando todo o mundo consigo, então conflitos sobre taxas de câmbio, decorrentes de quem cresce àquela taxa, seriam ao invés postos em surdina.Mas o crescimento não está a ser "criado", isto é, mesmo o regime de taxas de juro quase a zero nos EUA não desencadeou um boom nos próprios EUA, muito menos na economia mundial. É neste contexto que as preocupações sobre as políticas de "empobrecer o meu vizinho", tais como as exprimidas por Rajan, vêm à superfície.

Em suma, a preocupação de Rajan, embora válida em si mesma, decorre de um contexto acerca do qual ele faz silêncio, um contexto no qual o "abrandamento competitivo da política monetária" por todo o mundo não está a promover a procura agregada mundial em qualquer medida significativa e na qual a utilização do outro instrumento além da política monetária, a saber, a política orçamental, a qual é um instrumento seguro para promover procura agregada, é vetado pelo capital financeiro. A economia capitalista mundial está a ficar presa num síndrome de na melhor das hipóteses meramente "desviar crescimento" porque actualmente é incapaz de "criar crescimento".

Esta é exactamente a situação na qual o capitalismo mundial foi apanhado na década de 1930. O capital financeiro impediu mesmo então a incidência de défices orçamentais. E a ideologia da "finança saudável", que caracterizava o Padrão Ouro, foi mantida mesmo após o seu colapso. E governos, ansiosos por promover "incentivos ao investimento" dos capitalistas, eram avessos a aumentar os impostos sobre eles. O instrumento orçamental portanto não foi utilizado, ao passo que o instrumento da política monetária foi ineficaz, uma vez que os "incentivos ao investimento" dos capitalistas permaneceram extremamente baixos. Não surpreendentemente, "roubar emprego" de outros países através de políticas "empobreço o meu vizinho" ficaram em voga. Estas políticas tornaram-se um assunto preocupante numa situação de crise que decorre de factores estruturais mais básicos. Eles podem agravar a crise, mas não são a causa da crise.

MAL-ESTAR ESTRUTURAL 

Segue-se que enquanto estes factores estruturais básicos operarem, meras tentativas para impedir o abrandamento competitivo da política monetária nunca porão fim à crise, nem mesmo terão êxito:   uma vez que sob o capitalismo contemporâneo a facilitação da política monetária é o único instrumento ao dispor dos governos para tratar da crise, a alternativa ao abrandamento da política monetária é simplesmente nada fazer. Não é por acaso que Rajan, que sugeriu coordenação entre bancos centrais sob a supervisão do FMI para impedir tal abrandamento competitivo da política monetária, manteve-se silencioso acerca do que implicaria exactamente tal coordenação e de como ajudaria a aliviar a crise.

O abrandamento competitivo da política monetária situa-se dentro de um capitalismo que está estruturalmente avariado. E isto é assim devido a pelo menos três razões:   uma, o espaço (scope) para a ultrapassagem das crises nas metrópoles infligindo "desindustrialização" às colónias (o que equivalia a "roubar" emprego do terceiro mundo) não existe mais, pois os mercados do terceiro mundo já estão penetrados e em qualquer caso são demasiado magros no mundo de hoje para proporcionar uma solução.   Dois, a prescrição keynesiana de utilizar o instrumento orçamental, a qual nunca foi aceitável para o capital financeiro, está particularmente descartada no capitalismo contemporâneo onde o capital financeiro está internacionalizado e portanto tem o controle.   Três, a internacionalização do capital tornou em toda a parte do mundo o vector dos salários reais sujeito ao efeito pernicioso das reservas de trabalho maciças do terceiro mundo, de modo que este vector não provoca aumento mesmo quando a produtividade do trabalho aumenta por todo o mundo, provocando uma tendência ex ante rumo à super-produção global.

Face a este mal-estar estrutural o único factor de compensação que o capitalismo tem é a emergência de "bolhas" ocasionais. O abrandamento da política monetária é um meio de estimular tais "bolhas", mas não pode forçar uma bolha a surgir, razão pela qual, apesar de todo este abrandamento, o mundo capitalista permanece fincado numa crise mesmo oito anos depois de ela irromper, com poucas esperança de qualquer recuperação no futuro previsível. As políticas do "empobrecer o meu vizinho" que surgem no contexto desta crise só podem torná-la pior, como seria um aumento da taxa de juro nos EUA. 
05/Julho/2015

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2015/0705_pd/spectre-thirties . Tradução de JF. 


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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