sexta-feira, 29 de maio de 2015

CESAR MANGOLIN / Uma reflexão sobre a lei do “Assédio Ideológico”.

Uma reflexão sobre a lei do “Assédio Ideológico”.

Cesar Mangolin
Tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei de um deputado do PSDB que procura tipificar um novo crime: o assédio ideológico.
Segundo o projeto do deputado bicudo e obtuso, pegaria até cadeia aquele professor que ensinasse os estudantes a partir de doutrinas e não de ciência, ou ainda, o professor doutrinador e não aquele que apresenta de maneira imparcial todas as possibilidades de explicação e todos as correntes de pensamento para que os estudantes pudessem livremente escolher como pensar.
Três observações apenas:
1º –  é óbvio que sua excelência tucana chama de doutrinador qualquer professor marxista, ou o que ele entende por isso, afinal estudar Marx dá muito trabalho. Conheço muita gente que se apresenta como marxista e faz apenas um belo discurso liberal. Muito mais ainda gente que nunca leu uma página de Marx e fala com tom de entendedor que sua teoria está superada, ou que suas previsões não deram certo, como se Marx tivesse gasto tempo com previsões e fosse um vidente com bola de cristal e não um homem de ciência…
2º – com a experiência que já carrego no ensino superior, tenho certeza que é impossível para qualquer professor, em qualquer disciplina, passar de maneira adequada por uma corrente de pensamento apenas sem vulgarizá-la, quanto mais percorrer todas elas… Todavia, ainda que isso fosse possível, o processo de construção de conhecimento não corresponde necessariamente ao ato de “passar” para estudantes todas ou algumas correntes de pensamento de um tema qualquer… Embora praticada largamente, a educação bancária (que “deposita” conhecimento pronto na cabeça de estudantes – como chamava Paulo  Freire) não é capaz de construir conhecimento algum, nem a praticada por professores revolucionários, nem a praticada por professores conservadores e por apologetas da ordem, que constituem largamente a maioria dessa infeliz categoria. Tampouco estão, como regra, os estudantes realmente interessados em construir conhecimento, mesmo na faculdade… Compelidos aos bancos do ensino superior pela necessidade do emprego e pelo aumento das exigências de certificação escolar por parte das empresas, os estudantes e professores portam-se, no geral, como pessoas que cumprem protocolos e esforçam-se em provas para garantir que sua permanência por ali seja a mínima necessária. Chamei isso de exclusão prorrogada (conceito emprestado de Pierre Bourdieu) e o fenômeno de “sobrecertificação” num artigo de poucos anos atrás (quem quiser dar uma olhada, segue o link do artigo:  https://cesarmangolin.files.wordpress.com/2010/02/mangolin-sobrecertificac3a7c3a3o-e-expansc3a3o-o-ensino-superior-brasileiro-e-a-exclusc3a3o-prorrogada-de-pierre-bourdieu.pdf ).
3º – a ilusão da imparcialidade pode levar a dois caminhos: o primeiro é o do dogmatismo próprio do positivismo, de que a ciência é verdadeira, neutra e imparcial; o segundo é o do relativismo teórico, próprio da moda “pós-moderna”. No primeiro caso o caminho é tratar a sociedade capitalista e o império da técnica como o último estágio do desenvolvimentos das sociedades humanas, que basta apenas aprimorar e colocar em ordem para ser perfeito; no segundo caso, temos a instauração do irracionalismo, pura e simplesmente. Presente já na “filosofia espontânea” do senso comum, derivado do individualismo próprio da sociedade burguesa, tratar a verdade subjetivamente, havendo como critério único o que cada um quer “achar”, ou o “olhar” particular e individual, parece até avançado e modernoso para muita gente que tem preguiça de estudar. Nos dois casos temos instrumentos poderosos para auxiliar a  reprodução da ordem burguesa: o primeiro porque a afirma como única verdade e resultado de inexorável processo da evolução histórica; o segundo porque torna impossível pensar a sociedade existente como estrutura, porque nega o conhecimento objetivo e impede pensar em transformações concretas de conjunto.
É, na humilde opinião deste que escreve, um conjunto de besteiras esse projeto de lei, próprio de tucano reacionário que pretende pegar carona na onda conservadora que tem permitido com que as pessoas coloquem pra fora seus preconceitos e suas mesquinharias de maneira cada vez mais agressiva. Não acredito que o tal projeto se torne lei, mas assusta, sem dúvida, que apareça algo desse tipo.
Sou contra, evidentemente, uma loucura dessas, porque sei a quais interesses serve e quais seriam os penalizados.
Mas seria até curioso, se levássemos isso a sério, imaginar que estariam proibidos os que, de fato, doutrinam e vendem ilusões nas salas de aula. Tenho certeza absoluta de que os marxistas não formam a maioria dos professores. Antes fosse. Nosso quadro é formado por gente que, por sua vez, foi formada por professores que propagam ilusões sobre a sociedade burguesa. Ilusões mesmo, porque carecem de qualquer fundamento científico, ou do seu princípio básico, o postulado da objetividade. É inegável para qualquer um que tenha gasto o tempo necessário para estudar (e não é pouco tempo…) que Marx foi o único pensador capaz de, a partir do postulado da objetividade, portanto cientificamente, analisar e descrever o metabolismo e a anatomia do capitalismo, fazendo ao mesmo tempo a crítica das teorias econômicas que partiam de pressupostos falsos e ideológicos, como  o antropologismo idealista e o indivíduo. Não é por acaso que O Capital tem como sub título a “crítica da economia política”, que não tem como objetivo construir outra versão da economia política, mas a de demonstrar suas falácias, seus equívocos e sua distância do que se pode considerar ciência…
Portanto, poderíamos imaginar, levando uma lei dessas a sério, que a maior parte dos professores estaria ferrada… Eles vendem ilusões nas salas de aula. Defendem que a sociedade na qual vivemos é um conjunto de relações individuais mercantis, vantajosas reciprocamente; afirmam que vivemos numa sociedade que permite a mobilidade social e possibilita a qualquer um ser o que quiser, dependendo apenas de sua vontade e de sua dedicação; defendem a meritocracia como princípio organizador das posições de indivíduos que vivem, objetivamente, em condições essencialmente desiguais; culpabilizam as vítimas excluídas do acesso aos gêneros necessários para manter a vida; defendem um sistema que mata centenas de milhares todos os dias pela fome, pela violência urbana, pela guerra; fazem com que todos acreditem que tomar a vida como sendo apenas o trabalho é o caminho para a emancipação; convencem que a vida bovina e honesta é o ideal; fazem com que os trabalhadores se tornem egoístas e vejam seus pares como concorrentes, não como companheiros; fazem com que lutem por sua própria escravidão como se lutassem pela liberdade; com que se rastejem sonhando com as alturas, satisfeitos por estarem no caminho correto, enquanto comem a poeira do chão…
É isso que fazem os professores, como regra. A educação formal sempre foi um poderoso instrumento de reprodução da ordem, não de sua transformação. Vai continuar assim, para a frustração de educadores bem intencionados que alimentam ilusões com sua ação. Os professores são os agentes diretos da exclusão conformada, não os que podem levar à libertação.
Nosso deputado bicudo deveria tomar cuidado com o que propõe: se levarmos a sério uma tal lei as salas de aula terão de ser quase todas fechadas. Não porque os professores são todos marxistas, como diz gente histérica por aí. Mas porque são, em sua maioria, doutrinadores e vendedores de ilusões acerca da ordem capitalista, formadores de carneiros, criadores de fantasias, ratificadores das nossas desgraças…

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