sábado, 10 de janeiro de 2015

A linguagem da tortura

Robert Fisk
10.Jan.15 :: Outros autores
Um dos aspectos chocantes de muita da reacção política e mediática à publicação - da versão altamente censurada – do relatório do Senado dos EUA sobre a prática da tortura pela CIA é a linguagem escolhida. E os recursos jornalísticos para banalizar os mais repugnantes crimes.


Graças a Deus por Noam Chomsky. Não tanto por uma vida inteira de implacável denuncia da nossa hipocrisia política como pela sua linguística. Muito antes de o conhecer, o estudante Fisk trabalhava no seu curso universitário de linguística, onde o trabalho de Chomsky foi primeiro a alertar-me para a perniciosa utilização da linguagem. É no seu seguimento que condeno a vil semântica do Pentágono e da CIA. Não só a velha e obscena frase “danos colaterais”, mas também a linguagem da tortura.
Ou, como a rapaziada que tortura em nosso nome lhe chama, “técnicas de interrogatório melhoradas”. Olhemos a questão com um pouco mais de detalhe. “Melhorado” é uma palavra que sugere algo melhor, mais culto, inclusivamente menos penoso. Por exemplo, “medicina melhorada” implica presumivelmente uma forma mais elegante de melhorar a tua saúde. Tal como “escolarização melhorada” poderia sugerir uma educação mais valiosa para uma criança. “Interrogatório” pelo menos indica do que é que se trata. Fazer preguntas e obter, ou não, uma resposta. Mas “técnicas” ganha a todas. Uma técnica é uma habilidade técnica, ¿não é assim? Em geral, diz-me o dicionário, na obra artística.
Portanto, aqueles que levam a cabo os “interrogatórios” têm habilidades especiais – o que implica capacitação, trabalho aprendido, o produto de elaboração mental. O que suponho é, de certo modo, aquilo a que se refere a tortura. Não se trata simplesmente da forma como eu normalmente descreveria o processo de espancar pessoas contra as paredes, afogando-as em água e introduzindo húmus pelo recto. Mas caso isto seja excessivamente gráfico, os rapazes e raparigas da imprensa dos Estados Unidos arranjaram uma forma familiar de se referirem à coisa. Todo o processo de “técnicas de interrogatório melhoradas” é agora chamado EIT. Tal como as armas de destruição massiva (as chamadas WMD) – outra treta no nosso vocabulário político – todo o repugnante assunto está envolto numa abreviatura de três letras.
E depois damo-nos conta de que tudo esto é parte de um “programa”. Algo cuidadosamente planeado, compreendem, um programa, uma actuação, correcta, devidamente aprovada, teatral inclusivamente. O meu velho e fiel American College Dictionary define até “programa” como “um entretenimento com referência às peças ou números que o compõem”, que é o que suponho que os psicopatas na CIA estavam disfrutando perante as suas vítimas. Atem-no, trapos sobre o rosto, vertam a água, cuidado, por favor poucas bolhas de ar. Ah bom, espanquem-no novamente contra a parede. Um verdadeiro programa, por certo.
Dick “Lado Escuro” Cheney usou a palavra “programa” quando condenou o relatório do Senado estado-unidense sobre torturas da CIA. Curiosamente, entretanto, a sua descrição do documento como “cheio de merda” continha um efeito secundário não desejado do processo que ele aplaude. Porque sucede frequentemente a quem sofre a tortura urinar-se e defecar e - como sabemos por parte dos que sofreram estes “programas” - a CIA muitas vezes deixa as suas vítimas paradas nuas, o que fez com que defecassem sobre elas mesmas. Cheney quer evidentemente que acreditemos que estes pobres homens deram informações importantes às vis criaturas que os torturavam. É exactamente isso que as inquisições medievais descubriram quando acusaram inocentes de bruxaria. Na sua quase totalidade, as vítimas admitiram que tinham voado pelos ares. Talvez tenha sido isso que Khalid Sheikh Mohammed, depois de ser submetido 183 vezes ao submarino (waterboarding), disse aos seus torturadores da CIA. Que podia voar pelo ar. Um drone humano terrorista. Suponho que deve ser desse tipo a “informação vital” que Cheney afirma que as vítimas forneceram à CIA.
Ficou evidentemente para o director da CIA, John Brennan, sentindo talvez na nuca o bafo de alguns advogados dos direitos humanos, dizer que algumas das “técnicas” – sim, foi essa a palavra que utilizou – não estavam autorizadas e eram “abomináveis”. E assim apresentou habilmente uma nova versão dos crimes da CIA. As AIT – Abomináveis Técnicas de Tortura– “devem ser repudiadas por todos” – mas não, ao que parece, o devem ser as boas EIT–. Como disse Cheney, a tortura era “algo que evitamos muito cuidadosamente”. Tomo nota das palavras “muito cuidadosamente”. E estremeço.
O bom sr. Brennan disse-nos que “ficámos aquém do necessário quando se tratou de responsabilizar alguns agentes [sic]”. Mas é perfeitamente claro que os torturadores – ou “agentes”– não vão ser responsabilizados. Nem o sr. Brennan. Nem Dick Cheney. E, ouso mencionar isto, o são os regimes árabes para onde a CIA transferia as vítimas que considerava merecerem um tratamento ainda más vil do que o que podiam dispensar nas suas próprias prisões secretas. Um pobre tipo, Maher Arar, era cidadão canadiano, um condutor de camiões apanhado pela CIA no aeroporto JFK de Nova York e encaixotado para a Síria de antes da guerra civil para receber un pouco de AIT – não EIT, que fique claro – a pedido dos estado-unidenses. Metido num buraco pouco maior que um caixão, o seu primeiro contacto com AIT era ser chicoteado com cabos eléctricos.
Foi desta forma que Cheney e a sua rapaziada deram largas ao seu sadismo por interposta gente, no mesmo Estado cujas “técnicas de interrogatório” indignam agora tanto o Ocidente que este está a apelar ao derrube do regime sírio (juntamente com o derrubamento de Isis e Jabhat al-Nusra), a favor dos “moderados” recentemente armados que, supostamente, empregam apenas EIT e não em AIT.
Mas como vem assinalando o meu colega jornalista Rami Khouri, os 54 países do “programa” de rendições da CIA incluem Argélia, Egipto, Irão, Iraque, Jordânia, Marrocos, Arábia Saudita, Síria, Turquia, os Emiratos Árabes Unidos e Iémen. Podem juntar a Líbia de Khadafi a essa lista. De facto, a polícia secreta italiana até ajudou a CIA a sequestrar um íman nas ruas de Milão e a mandá-lo para o Cairo por um pouco de AIT às mãos dos interrogadores de Mubarak. O que provavelmente explica por que tem estado algo calado o mundo árabe e muçulmano desde que o relatório do Senado dos EUA – mesmo na sua forma altamente censurada - foi publicado na semana passada.
Foi o jornalista egípcio Mohamed Hassanein Heikal quem primeiro escreveu acerca de como a CIA fez circular um filme de uma mulher iraniana a ser torturada pela polícia secreta do Shah, de forma a que outros países pudessem aprender a forma de fazer falar prisioneiros femininos. A nova e melhorada CIA de hoje, evidentemente, não faria isso. Destruiu as suas próprias gravações em vídeo antes de o Senado lhes poder deitar a mão. Mas a natureza subserviente dos regimes árabes também deveria ser objecto de estudo. Porque eles também torturaram – a nosso pedido. Como Khouri perguntou na semana passada, «Iremos nós mencionar, ou tentar reparar, a nossa cumplicidade criminosa e imperial com uma abertura que ao menos se aproxime daquela com que os EUA abordaram esta questão?». É escusado aguardar por uma resposta.
Os confronto são rejeitados, só “conversações” são permitidas.
Ainda sobre Chomsky e as palavras, antes de sair do Canadá a caminho de Beirute comprei um excelente casaco de inverno. Fabricado na China, evidentemente. Mas a garantia informava-me de que corresponde a um alto padrão “de impermeabilidade e respirabilidade”(waterproofness and breathability). Essas palavras vêm juntar-se ao horrível palavreado que os governos e as empresas agora utilizam para argumentar.
Já não nos dizem que estão em confronto com alguém. Estão “a conversar” sobre “um assunto”. E se eu deparo com outro médico que me venha falar de “bem-estar” (wellness), aplicarei de imediato AIT ao culpado.
* Fonte: The Independent, UK.
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