sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Prabhat Patnaik/ Sobre o centenário da Primeira Guerra Mundial

por Prabhat Patnaik [*]

'A guerra', tríptico de Otto Dix.
Foi há uma centena de anos que irrompeu a Primeira Guerra Mundial, uma guerra que foi sem precedentes não só em termos de selvajaria e escala de destruição de vidas humanas como também na sua abrangência e na sua natureza. Há pelo menos três modos pelos quais se diferenciou de todas as guerras anteriores.

Primeiro, não foi confinada a uma localização particular mas cobriu, simultaneamente, uma enorme frente, estendendo-se desde o Noroeste da Europa até a Mesopotâmia. Também Napoleão, naturalmente, havia combatido numa guerra em que a frente havia mudado do Egipto para a Rússia, mas ela mudava; as batalhas moviam-se de uma localização para outra. Não foi uma enorme frente onde uma guerra era travada em simultâneo, como na Primeira Guerra Mundial.

Em segundo lugar, foi uma guerra em que os combatentes não eram apenas de uma ou duas potências europeias e sim de um grande número de países de todo o globo. Muito embora os países colonizados não fossem declarados oficialmente como combatentes, grandes contingentes de pessoas destes países foram recrutados para combaterem a guerra em prol dos seus mestres coloniais, um facto que Lenine considerou de grande importância histórica uma vez que proporcionava tanto treino militar como uma consciencialização do mundo a estas secções dos povos colonizados.

Em terceiro lugar, foi uma guerra cujos fundamentos económicos eram bastante palpáveis. Isto relacionava-se não apenas com o motivo, nomeadamente a aquisição de uma maior fatia do globo como fonte de matéria-prima real ou potencial e destino real ou potencial para exportações de capital. Relacionava-se também com os lucros dos grandes monopólios conluiados com o próprio esforço de guerra. A relação desta guerra com o capitalismo portanto era clara e notável, ao contrário do caso das guerras napoleónicas em que fora uma grande consideração a conquista per se a fim de instalar parentes e amigos do Imperador sobre tronos por toda a Europa e portanto expandir, à maneira do velho feudalismo, a área sobre a qual era extraída mais-valia.

Todas estas características – e portanto a nova conjuntura que produziu uma guerra com estas características – foram apreendidas com a máxima precisão por Lenine nos seus escritos teóricos e, acima de tudo, na sua teoria do imperialismo. Embora a teoria aproveite muito do trabalho de J.A. Hobson e Rudolph Hilferding, ela constituiu uma totalidade de entendimento que era não só sui generis como também profunda. Na verdade não seria errado afirmar que nenhum outro esforço teórico alguma vez apreendeu toda uma conjuntura tão completamente.

A compreensão teórica de uma conjuntura deve também apontar para a direcção da praxis. O desenvolvimento mais completo da teoria, como Lukacs certa vez observou, é quando a teoria explode na prática. E isto foi exactamente o que fez a teoria de Lenine. O facto de que o capitalismo, por meio da operação da sua tendência imanente rumo à centralização do capital, se tenha movido da "livre competição" para a etapa do "monopólio"; o facto de que isto tenha provocado uma mudança na natureza do Estado capitalista; o facto de que em todo grande país capitalista se tenha desenvolvido uma "união individual" entre grandes financeiros, grandes industriais e pessoal de topo do Estado; o facto de que este conluio glorificava a ideia da "nação" a fim de justificar uma guerra para a re-partição de um mundo que já fora dividido entre as potências principais, mas de uma maneira que já não reflectia as forças que prevaleciam:   tudo isto foi posto em relevo para explicar a guerra e apreender a conjuntura. Mas a conclusão que se seguia disto era directa e óbvia, assim como foi arrojada e não convencional no contexto da Segunda Internacional, nomeadamente de que a guerra imperialista deve ser transformada numa guerra civil. Ao invés de matar companheiros trabalhadores nas trincheiras por conta do conluio monopolista do "seu próprio país", os trabalhadores de cada país deviam voltar suas armas contra o domínio do seu "próprio" conluio monopolista.

TRÊS PERGUNTAS CANDENTES

Este feito de cortar o fôlego, simples mas arrojado, proporcionava respostas simultâneas para três perguntas candentes. A primeira fora formulada por Eduard Bernstein:   quando é que o capitalismo, como modo de produção tornado historicamente obsoleto, terá o seu derrube na agenda? A resposta do próprio Bernstein era: quando rumar para um colapso económico e uma vez que o capitalismo não apresentava tais sinais e era improvável que viesse a apresentar, o proletariado ficaria melhor ocupado a "reformar" o sistema capitalista, dele obtendo mais concessões, do que se ficasse preso no projecto fora de moda de um derrube revolucionário do sistema.

Muito estranhamente, a premissa de Bernstein de que a obsolescência histórica do capitalismo precisava manifestar-se através de um colapso económico foi aceite mesmo pelos seus oponentes no Partido Social-Democrata alemão, mesmo entre aqueles pertencentes à sua ala revolucionária como Rosa Luxemburgo que desenvolveu uma teoria da acumulação de capital para argumentar a inevitabilidade de um colapso final do sistema. Contra isto, a resposta de Lenine era que o próprio facto de o capitalismo ter entrado num período de guerras para a repartição do mundo era uma indicação do seu carácter "moribundo", de que o capitalismo monopolista trazia a revolução social para a agenda; de que era a véspera da revolução social.

A segunda pergunta a que a teoria de Lenine dava uma resposta era:   qual deveria ser a atitude do movimento proletário em relação à guerra? Dentro da Social-Democracia havia três respostas: primeiro, havia os "sociais-chauvinistas" que simplesmente se alinhavam atrás do "seu" respectivo conluio de monopólios. A seguir havia aqueles no "centro" como Karl Kautsy, os quais adoptavam a posição de que conquanto não apoiassem a agressão do seu próprio país particular, apoiariam a defesa do seu país contra a agressão de outros países. E finalmente, havia a Esquerda que era totalmente contrária à guerra.

Mas mesmo dentro da Esquerda não havia posição comum. Rosa Luxemburgo, por exemplo, havia proposto um movimento pan-europeu da classe trabalhadora em favor da paz. A defesa de Lenine, que se tornou a posição bolchevique, era não uma luta pela paz mas uma luta contra a dominação do capital monopolista ao invés de uma luta a favor do domínio do capital monopolista [local], contra capitais monopolistas de outros países, que é o que a guerra mundial implicava, portanto rompia em novo terreno e proporcionava a resposta mais directa e mais prática.

A terceira questão à qual a teoria de Lenine proporcionava uma resposta era:   como é que a espécie humana faz para sair da triste situação que levou à própria guerra? Isto não era uma pergunta apenas face ao movimento da classe trabalhadora ou face aos marxistas. A maior parte das pessoas pensantes, não apenas marxistas mas mesmo pessoas pertencentes a outros quadrantes ideológicos, tinha este sentimento de que um desenlace fora atingido, que as coisas não podiam continuar no antigo modo e que alguma coisa nova tinha de ocorrer. Mesmo um liberal anti-comunista como John Maynard Keynes, num artigo em The Yale Review escrito em 1933, isto é, muito tempo depois de a Primeira Guerra Mundial haver terminado, argumentou que, apesar de não concordar com o caminho bolchevique, via a necessidade de um novo caminho. E Georg Lukacs, o filósofo marxista, antes de se tornar marxista, havia escrito como se segue em meio à guerra, antes da Revolução Bolchevique: "...os dominadores Habsburg e os Hohenzollern derrotariam os Romanovs nesta guerra, o que seria uma boa coisa; as democracias liberais ocidentais derrotariam os dominadores Habsburg e os Hohenzollern, o que mais uma vez seria uma boa coisa; mas então que nos protegeria das democracias liberais ocidentais"?

Esta sensação de "alguma coisa em falta" foi ultrapassada pela Revolução Bolchevique, razão pela qual Lukacs se tornou-se um apoiante total da Revolução e aderiu à causa revolucionária. E a teoria de Lenine já havia formulado a resposta para este problema do "alguma coisa em falta".

Lenine acreditava que havia começado uma conjuntura revolucionária, da qual a guerra era uma expressão. O tratamento da Alemanha no pós guerra pelas potências vitoriosas, as quais impuseram reparações incrivelmente maciças, foi, como ele enfatizou diante da Internacional Comunista, citando "The Economic Consequences of the Peace" de John Maynard Keynes, uma confirmação ainda mais inequívoca do "apodrecimento" do sistema. Isto não queria dizer que o capitalismo "não pudesse mudar" a partir daí, mas que esta questão de como o capitalismo poderia mudar para ultrapassar aquela conjuntura era ociosa, escolástica:   muito antes de o capitalismo poder mudar para ultrapassar aquela conjuntura a espécie humana teria derrubado o capitalismo.

Mesmo depois de a Revolução Alemã ter falhado e as perspectivas de revolução na Europa se terem reduzido, Lenine considerava uma revolução na Índia e na China e escrevia: "Em última análise, o resultado da luta será determinado pelo facto de que a Rússia, Índia, China, etc representam a esmagadora maioria da população do globo".

A conjuntura de que Lenine falava, a qual era caracterizada acima de tudo por intensa rivalidade inter-imperialista, perdurou, na forma exacta em que Lenine a havia descrito, até o fim da Segunda Guerra Mundial, após a qual houve um amortecimento desta rivalidade. Além disso, o capitalismo reestruturou-se num certo número de modos para repelir a ameaça revolucionária imediata à sua existência. Contudo, o amortecimento desta rivalidade aumentou a ameaça para o campo socialista, a qual finalmente levou a um colapso do socialismo sobre uma parte substancial do globo.

AGRESSÃO IMPLACÁVEL CONTRA O CAMPO SOCIALISTA

Ao discutir as razões para este colapso há uma tendência para colocar a culpa por ele exclusivamente sobre os problemas internos do socialismo. Estes problemas certamente estavam ali, mas centrar exclusivamente sobre eles tem o efeito de implicitamente sugerir que o socialismo é tão pejado de problemas que é impraticável. O que falta mencionar é a implacável agressão contra o campo socialista, contra a União Soviética em particular, que foi executada pelo imperialismo à medida que ele emergia e progressivamente se fortalecia após a Segunda Guerra Mundial, com a sua rivalidade interna amortecida. O que falta mencionar é que o bloco socialista sempre lutou pela paz mundial, pelo espaço vital para desenvolver as economias e melhorar as condições materiais de vida dos trabalhadores; mas o imperialismo não lhes permitiu aquele espaço e manteve a ameaça de guerra e de aniquilação permanentemente sobre ele, absoluta no programa "guerra das estrelas" de Ronald Reagan.

Muito embora a conjuntura abrangida teoricamente pela análise de Lenine mudasse, devido entre outras coisas à tendência imanente rumo à centralização do capital que o próprio Lenine, seguindo Marx, havia enfatizado (a qual levou à emergência do capital financeiro internacional e a uma abstenção de rivalidade inter-imperialista aguda), e muito embora em consequência o socialismo sofresse um contratempo, as transformações revolucionárias ensaiadas durante aquele período tiveram um impacto duradouro. Poder-se-ia mencionar a salvação da espécie humana em relação ao fascismo e o processo de descolonização como legados óbvios destas transformações revolucionárias.

Novas conjunturas favoráveis ao socialismo levantar-se-ão no futuro. Mas no centenário da I Guerra Mundial vale a pena recordar a conjuntura por ela inaugurada, a qual mudou a história humana para sempre.
Do mesmo autor em resistir.info:
  • O caso da dívida argentina
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    [*] Economista, indiano, ver Wikipedia

    O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2014/0817_pd/centenary-first-world-war . Tradução de JF.


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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