sábado, 8 de março de 2014

Entrevista / Presidente Putin sobre a Ucrânia



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Encontro com jornalistas, Kremlin (texto oficial transcrito). Entrevista traduzida da transcrição em inglês pelo pessoal da Vila Vudu.

VLADIMIR PUTIN, PRESIDENTE DA RÚSSIA: Boa-tarde, senhores. Sugiro que organizemos as coisas do seguinte modo, como uma conversa, mais do que como entrevista. Peço então que apresentem suas perguntas, vou reunindo e tentarei respondê-las todas. Em seguida, podemos ter conversa mais detalhada sobre pontos específicos que os interessem mais. Podemos começar.
PERGUNTA: Sr. Presidente, queria perguntar-lhe (faz tempo que o senhor não conversa conosco, então há muitas perguntas) como o senhor avalia os eventos em? O senhor entende que o Governo e o presidente em exercício, que estão no poder em Kiev, são legítimos? O senhor está disposto a fazer contato com eles, e sob que termos? O senhor entende que seja possível agora voltar aos acordos de 21/2, sobre o qual todos nós falamos tanto?
PERGUNTA: Sr. Presidente, a Rússia prometeu ajuda financeira à Crimeia e, ontem, o Ministério das Finanças recebeu instruções. Já se sabe claramente quanto estamos dando, de onde está saindo o dinheiro, sob que condições está sendo entregue e quando? A situação lá é muito difícil.
PERGUNTA: Quando, em que termos e para que objetivo pode ser usada força militar na Ucrânia? Em que medida o movimento está sendo feito conforme acordos internacionais assinados pela Rússia? Os exercícios militares que acabam de ser encerrado tem algo a ver com o possível uso da força?
PERGUNTA: Queremos saber mais sobre a Crimeia. O Sr. entende que acabaram as provocações, ou que ainda há alguma ameaça contra os cidadãos russos que estão agora na Crimeia e contra os falantes de russo? Qual a dinâmica geral da situação lá – as coisas estão mudando para melhor ou para pior? Ouvem-se os relatos mais diferentes.
PERGUNTA: Se o senhor decidir usar a força, o senhor já avaliou os possíveis riscos para o senhor, para o país e para o mundo: sanções econômicas, menos segurança global, possível fim dos vistos de entrada em vários países ou maior isolamento para a Rússia, como estão exigindo políticos ocidentais?
PERGUNTA: Ontem, o mercado de ações caiu muito na Rússia, em resposta à votação no Conselho da Federação, e o rublo atingiu o recorde de menor valor de câmbio. O senhor esperava essa reação? Quais, na sua avaliação, são as possíveis consequências para a economia? São necessárias medidas especiais agora, e de que tipo? Por exemplo, o Sr. acha que a decisão do Banco Central de mover-se para uma taxa flutuante de câmbio para o rublo, pode ter sido prematura? Na sua opinião, a decisão deve ser revogada?
VLADIMIR PUTIN: Ótimo. Comecemos por essas perguntas. Depois, continuamos. Não se preocupem: tentarei responder o maior número possível de perguntas.
Para começar, minha avaliação de o que aconteceu em Kiev e na Ucrânia em geral. Só pode haver uma avaliação: foi tomada anticonstitucional, tomada armada, do poder. Alguém questiona isso? Não, ninguém questiona. Há aqui uma pergunta que nem eu nem meus colegas com os quais discuti muito a situação na Ucrânia nos últimos dias, como vocês sabem – uma pergunta que nenhum de nós pode responder. A pergunta é: por que tudo aquilo foi feito?
Queria chamar a atenção de vocês para o fato de que o presidente Yanukovych, através da mediação de Ministros de Relações Exteriores de três países europeus – Polônia, Alemanha e França – e na presença de um de meus representantes (o Comissário Russo para Direitos Humanos, Vladimir Lukin) assinou um acordo com a oposição, dia 21 de fevereiro. Quero destacar que, nos termos desse acordo (e não estou dizendo que seja bom ou ruim, só estabelecendo um fato), o Sr. Yanukovych, na verdade, entregou o poder.
Aceitou todas as demandas da oposição: aceitou que se antecipassem as eleições parlamentares, as eleições presidenciais, e o retorno à Constituição de 2004, como a oposição demandava. Deu resposta positiva ao nosso pedido, ao pedido dos países ocidentais e, sobretudo, ao pedido da oposição, para que não usasse a força. Não emitiu uma única ordem ilegal, para atirar naqueles infelizes manifestantes. Além disso, ordenou a retirada de todas as forças policiais da capital, o que elas fizeram. Foi a Carcóvia, para participar de um evento e, no momento em que ele saiu, em vez de esvaziar e liberar os prédios públicos ocupados, eles imediatamente ocuparam a residência do presidente e o prédio do governo. Exatamente o oposto do acordo que acabavam de assinar.
Pergunto-me a mim mesmo, qual o objetivo disso tudo? Quero muito entender por que isso foi feito. O presidente de fato já cedera o poder, e creio que, como eu disse a ele, ele não tinha chances de ser reeleito. Quanto a isso, todos concordam, todos com quem falei pelo telefone nos últimos dias. Qual o objetivo de todas aquelas ações ilegais e inconstitucionais? Por que criaram tamanho caos no país? As ruas de Kiev ainda estão cheias de milicianos mascarados e armados. Aí estão uma questão ainda sem resposta. Queriam humilhar alguém e mostrar poder? Aí, só vejo ações absolutamente tresloucadas. O resultado é o exato oposto do que esperavam, porque suas ações desestabilizaram significativamente o leste e o sudeste da Ucrânia.
Agora, sobre como isso tudo aconteceu.
Na minha opinião, essa situação revolucionária já estava fermentando há muito tempo, desde os primeiros dias da independência da Ucrânia. O cidadão ucraniano comum, a gente comum, sofreu durante o reinado de Nicolau 2º, durante o governo de Kuchma, e Yushchenko e Yanukovych. Nada, ou praticamente nada, jamais mudou para melhor. A corrupção alcançou dimensões das quais nunca nem se ouviu falar na Rússia. Acumulação de riqueza e estratificação social – problema também agudo na Rússia – são muito piores, radicalmente piores na Ucrânia. A coisa lá é além do que possamos imaginar. De modo geral, todas as pessoas queriam mudanças. Mas ninguém apoiará mudança ilegal.
No espaço pós-soviético, onde as estruturas políticas ainda são frágeis e as economias ainda são fracas, é essencial que se usem só meios constitucionais. Nessa situação, ir além do marco constitucional sempre será erro cardinal. Devo dizer que compreendo aquelas pessoas na praça Maidan, embora não apoie o rumo que as coisas tomaram. Entendo que as pessoas em Maidan exigissem mudança radical, não alguma simples remodelagem cosmética, do poder. Por que exigem isso? Porque cresceram vendo um grupo de ladrões trocar de lugar com outro grupo de ladrões. Além do mais, as pessoas da Regiões não participam sequer da formação de seus próprios governos regionais. Houve tempo, na Rússia, quando o presidente nomeava os líderes regionais, mas eles tinham de ser aprovados pelas autoridades regionais. Na Ucrânia, são diretamente noemados. Nós já temos eleições; eles ainda não estão nem perto disso. E, lá, puseram-se a nomear todos os tipos de oligarcas e bilionários para governarem as regiões leste do país. Não é surpresa que as pessoas não aceitassem isso. Não é surpresa que vejam que, como resultado de uma privatização desonesta (e também aqui há muita gente que tem o mesmo pensamento), alguns tenham ficado imensamente ricos e que, agora, estivessem sendo levados ao poder.
Por exemplo: Kolomoisky foi nomeado Governador de Dnepropetrovsk. É escroque conhecido. Conseguiu ludibriar até um oligarca russo, Roman Abramovich, há dois ou três anos. “Tungou” Roman Abramovich, como nossos intelectuais gostam de dizer. Os dois assinaram um negócio; Abramovich transferiu vários bilhões de dólares; o sujeito jamais entregou o que vendera e embolsou o dinheiro. Quando eu perguntei a ele [Roman Abramovich]: “Por que você fez aquele negócio?”, ele disse: “Nunca pensei que esse golpe fosse possível”. Não sei, até hoje, se conseguiu reaver seu dinheiro, ou se acabaram por consumar o negócio. Mas aconteceu, realmente, bem assim, há alguns anos. Agora, esse mesmo escroque aparece nomeado Governador de Dnepropetrovsk. Não surpreende que as pessoas estejam insatisfeitas. Estavam insatisfeitas e continuarão insatisfeitas, se os que se autodesignam autoridades legítimas continuam a gir do mesmo modo.
O mais importante é que as pessoas têm de ter o direito de decidir o próprio futuro, de suas família, da região onde vivem, e têm de ter participação igual. Aí está algo que quero destacar: não importa em que parte do país alguém viva, ele ou ela tem de ter o direito de participar em condições de igualdade, para determinar o futuro do país.
As atuais autoridades são legítimas? O Parlamento tem ainda alguma legitimidade, mas os demais não, não são legítimos. O presidente-em-exercício, esse, definitivamente não é legítimo. De um ponto de vista legal, só a um presidente. Sabemos que não tem poder. Mas, ainda assim, já disse e repito: Yanukovych é o único presidente legítimo.
Pela lei ucraniana há três modos de remover um presidente: por morte, se ele pessoalmente renuncia, ou por impeachment. O impeachment é processo constitucional, com regras bem claras. Envolve a Corte Constitucional, a Suprema Corte e o Rada (Parlamento). É procedimento complicado e demorado. Não houve nada disso. Portanto, do ponto de vista legal, não há sequer o que discutir.
Acredito, além do mais, que essa foi a razão pela qual extinguiram a Corte Constitucional – o que contradiz todas as normas legais, da Ucrânia e da Europa. Não apenas dissolveram a Corte Constitucional de modo ilegítimo, mas eles também – vejam só! – deram ordens ao Gabinete do Procurador Geral para iniciar processos criminais contra todos os juízes da Corte Constitucional. O que é isso? É o que chamam de justiça? Como é possível alguém mandar alguém iniciar processo criminal, sem acusação formal, sem inquérito? Iniciar um processo criminal por ordem superior é nonsense. É falcatrua.
Agora, sobre a ajuda financeira à Crimeia. Como vocês talvez já saibam, decidimos organizar o trabalho nas regiões russas, para ajudar a Crimeia, que nos pediu apoio humanitário. Claro que atenderemos o pedido. Não posso ainda dizer quanto, quando ou como – o governo está trabalhando nisso, reunindo as regiões que têm fronteira com a Crimeia, garantindo apoio adicional às nossas regiões, para que possam ajudar o povo da Crimeia. Não há dúvida de que ajudaremos, é claro.
Sobre o deslocamento de tropas, o uso de forças armadas. Até aqui, não houve necessidade, mas a possibilidade permanece. Quero dizer aqui que os exercícios militares que fizemos recentemente nada têm a ver com os eventos na Ucrânia. São exercícios planejados há muito tempo, mas não foram divulgados, naturalmente, porque era inspeção surpresa da prontidão da forças para combate. Estava planejado há muito tempo, o Ministro da Defesa informou-me e eu já tinha a ordem pronta para iniciar o exercício. Vocês talvez já saibam que os exercícios já foram concluídos; ontem, dei ordem para que as tropas voltem aos deslocamentos regulares.
O que daria motivo para usar as Forças Armadas? – uma medida que, com certeza, só será tomada como último recurso.
Em primeiro lugar, a questão da legitimidade. Como vocês devem saber, recebemos pedido direto do presidente eleito e, como eu disse, do único presidente legítimo da Ucrânia, Sr. Yanukovich, que nos pediu o uso das forças armadas para proteger a vida, a liberdade e a integridade física dos cidadãos da Ucrânia.
Qual a nossa maior preocupação? Vemos o crescimento de forças reacionárias, nacionalistas e antissemitas em várias partes da Ucrânia, inclusive em Kiev. Vocês, jornalistas, com certeza viram um dos governadores algemado e preso com correntes a um poste, e atacado com baldes de água, no auge do inverno. Depois disso, foi trancado num celeiro e torturado. O que é isso? Seria democracia? Seria manifestação democrática? Esse governador havia sido nomeado recentemente, em dezembro, me parece. Ainda que se aceite que, lá, todos são corruptos, esse governador ainda nem teria tido tempo de roubar coisa alguma.
Sabem o que aconteceu quando tomaram o prédio do Partido das Regiões. Não havia no prédio membros do partido. Apenas dois, três empregados saíram, um deles um engenheiro, que disse aos invasores: “Por favor, deixem-nos sair. Deixem sair as mulheres, por favor. Sou engenheiro, nada tenho a ver com política”. Esse foi assassinado a tiros, ali, à frente de todos. Outro dos empregados foi preso num celeiro e o celeiro incendiado com coquetéis molotov. Foi queimado vivo. Seria manifestação de democracia?
Quando se veem essas coisas, entende-se o que preocupa os cidadãos da Ucrânia, sejam russos ou ucranianos, e a população que fala russo nas regiões leste e sul da Ucrânia. O que os preocupa é esse crime descontrolado.
Assim sendo, se virmos esse crime descontrolado espalhando-se para as regiões leste do país, e se aquele povo nos pedir ajuda, dado que já temos o pedido formal, legal do presidente legítimo, nos reservamos o direito de usar todos os meios ao nosso alcance para proteger aquelas pessoas. É resposta absolutamente legítima. Será usada como último recurso.
Há uma coisa que eu gostaria de dizer: nós sempre consideramos a Ucrânia não só como vizinho, mas como república vizinha irmã. E assim continuaremos. Nossas Forças Armadas são camaradas em armas, amigos, muitos dos quais se conhecem pessoalmente. Tenho certeza, e insisto, que militares ucranianos e russos jamais se enfrentarão: em combate, todos estarão do mesmo lado.
Aliás, isso de que estou falando – essa unidade – é o que já se vê na Crimeia. Vocês sabem que, graças a Deus, nenhum tiro foi disparado ali; não há mortes, exceto um atropelamento na praça há uma semana. O que se viu ali? As pessoas chegaram, cercaram unidades das forças armadas e conversaram com os soldados, convencendo-os a atender às demandas populares e o desejo do povo que vive ali. Não houve um tiro, um único confronto armado.
Assim, a tensão na Crimeia, associada à possibilidade de usarmos nossas forças armadas simplesmente se esvaiu, e não foi preciso usá-las. A única coisa que tínhamos de fazer e fizemos, foi reforçar a defesa de nossas instalações militares, porque estavam recebendo ameaças, e sabíamos de nacionalistas armados que tentavam aproximar-se. Reforçamos nossa proteção, e era a coisa certa a fazer e fizemos no momento certo. Parto da ideia de que não será necessário fazer nada desse tipo, no leste da Ucrânia.
Mas há algo que quero destacar. Obviamente, o que vou dizer não está compreendido na minha autoridade e não temos nenhuma intenção de interferir. Mas cremos firmemente que todos os cidadão da Ucrânia, repito: vivam onde viverem, devem ter iguais direitos de participar na vida de seu país e determinar seu futuro.
Se eu estivesse na pele daqueles que se consideram autoridades legítimas, não perderia tempo e cuidaria de seguir logo todos os procedimentos legais necessários, porque eles não tem mandato nacional para conduzir políticas domésticas, externas ou econômicas, e nem, especialmente, para determinar o futuro da Ucrânia.
Agora, a questão das Bolsas de Ações. Como vocês talvez saibam, o mercado já estava oscilante antes de que a situação na Ucrânia deteriorasse. Tem a ver, basicamente, com a política do Federal Reserve dos EUA, cujas decisões recentes tornaram mais atraente investir na economia dos EUA, e os investidores puseram a mover seus investimentos, dos países emergentes para o mercado norte-americano. É uma tendência geral e nada tem a ver com a Ucrânia. Parece-me que o país que mais sofreu, dentre os BRICS, foi a Índia. A Rússia também foi atingida, não tão duramente como a Índia, mas foi atingida. A razão fundamental é essa.
Quanto aos eventos na Ucrânia, a política sempre influencia os mercados de ações, de um modo ou de outro. O dinheiro gosta de tranquilidade, estabilidade e calma. Mas acho que é desenvolvimento só tático, temporário, e influência temporária
VLADIMIR PUTIN, PRESIDENTE DA RÚSSIA: Suas perguntas, por favor.
PERGUNTA: Sr. Presidente, pode dizer se o senhor esperava reação tão forte dos seus parceiros ocidentais, contra as ações da Rússia? Pode dar-nos detalhes de suas conversas com seus parceiros ocidentais? A única coisa que se ouviu foram notícias do seu serviço de imprensa. E o que pensa sobe a reunião do G8 em Sochi – acontecerá?
VLADIMIR PUTIN: Sobre a reação esperada, se o G8 se realizará e sobre as conversas. Todas essas conversas são confidenciais, algumas acontecem até por linhas protegidas. Assim sendo, não estou autorizado a divulgar o que discuti com os parceiros. Mas posso comentar algumas declarações públicas, feitas por meus colegas ocidentais; sem dar nomes; comento-as só em termos gerais.
A que prestar atenção? Sempre há alguém a dizer que o que a Rússia faz não seria ilegítimo. Pergunto: “Será que supõem que tudo que o que eles fazem é sempre legítimo?” A resposta é “Sim, eles supõem”. Então, tenho de lembrar-lhes o que os EUA fizeram no Afeganistão, Iraque e Líbia, onde agiram sem autorização da ONU ou distorceram completamente o conteúdo daquelas resoluções, como no caso da Líbia. Nesse caso, como vocês sabem, a resolução só autorizava a fechar o espaço aéreo para a aviação de Gaddafi. E a coisa terminou, como se sabe, com bombardeios aéreos e operação em terra, pelas forças especiais.
O que se vê é que nossos parceiros, especialmente os EUA, sempre claramente formular seus próprios interesses geopolíticos e de estado, e os seguem persistentemente. Então, usando o princípio “Ou estão conosco ou estão contra nós”, dividem o mundo. E os que não se enquadrem, são “espancados” até se enquadrar.
Nossa abordagem é diferente. Partimos da convicção de que sempre temos de agir com legitimidade. Eu, pessoalmente, sempre defendi que temos de agir em estrito cumprimento da lei internacional. Quero reforçar, mais uma vez, que, se tomarmos a decisão, se eu decidir usar as Forças Armadas russas, será decisão legítima, em plena obediência a todas as normas gerais da lei internacional – porque recebemos um pedido de ajuda do presidente legítimo –, e, também, em plena obediência aos nossos compromissos, que, nesse caso, coincidem com nossos interesses de proteger um povo com o qual temos estreitos laços históricos, culturais e econômicos. Essa é missão humanitária. Não visamos a subjugar ninguém nem a dar ordens a ninguém. Mas não podemos ficar indiferentes se vemos aquele povo ser perseguido, destruído e humilhado.
Seja como for, espero sinceramente que não seja necessário chegar até isso.
PERGUNTA: Como o senhor avalia a reação do ocidente aos eventos na Ucrânia e as ameaças contra a Rússia: estamos diante de possíveis sanções ou da expulsão do G8?
VLADIMIR PUTIN: Quanto às sanções. Quem mais se deve preocupar com as consequências das sanções é quem aplica as sanções. Entendo que, no mundo moderno, no qual tudo está interconectado e é interdependente, é possível causar danos a outro país, mas sempre será dano mútuo. Aí está algo que todos devem manter sempre em mente. Isso é uma coisa.
A segunda coisa, e a mais importante: já disse aos senhores o que nos motiva. Mas… o que motiva nossos parceiros? Eles apoiaram um golpe para tomada armada e inconstitucional do poder; declararam o novo poder legítimo e agora estão tentando dar-lhes apoio.
Devo dizer que, apesar de tudo isso, temos sido pacientes e até dispostos a cooperar; não queremos romper nossa cooperação. Como vocês devem saber, há alguns dias instruí o governo a considerar como se podem preservar os contatos até com aqueles poderes em Kiev que não consideramos legítimos, para não comprometer nossos laços na economia e na indústria. Entendemos que nossas ações têm sido absolutamente razoáveis. Entendemos também que ameaçar a Rússia sempre é contraproducente e danoso.
Quanto ao G8, não sei. Estaremos prontos para hospedar o encontro com nossos colegas. Se não querem vir… que seja.
PERGUNTA: Posso acrescentar algo, sobre os contatos? Como vejo as coisas, o senhor considera legítimo o primeiro-ministro da Crimeia, sr. Aksyonov, como representante das autoridades do governo. O senhor está pronto a ter contatos com os que se consideram legítimas autoridades em Kiev?
VLADIMIR PUTIN: Já falei sobre isso. O senhor talvez não tenha ouvido.
PERGUNTA: Quero dizer, em alto nível, para uma solução política.
VLADIMIR PUTIN: Não parceiro no alto nível, lá. Lá não há presidente. E não pode haver, até que haja eleições gerais.
Quanto à Crimeia, o Parlamento foi formado em 2010, em dezembro de 2010, se bem me lembro. Há 100 deputados eleitos, que representam seis partidos políticos. Depois da renúncia do ex-primeiro-ministro, o Parlamento da Crimeia, como ordena a legislação vigente e pelos procedimentos legais, elegeram um novo primeiro-ministro em sessão do Conselho Superior da Crimeia. É claro que é definitivamente legítimo. Foram respeitados todos os procedimentos de lei; não houve sequer um ato ilegal.
E quando, há alguns dias, um grupo de homens armados tentou ocupar o prédio do Soviet Superior da Crimeia, houve indignação dos habitantes locais. Pareceu-lhes que alguém tentava aplicar na Crimeia o mesmo cenário de Kiev, lançar séries de atos terroristas e provocar o caos. É claro que os habitantes locais têm boas razões para preocupação. Por isso organizaram comitês de autodefesa e assumiram o controle sobre as forças armadas da Crimeia.
Casualmente, examinei as notícias, ontem, para ver sobre o que, exatamente, a população da Crimeia assumiu o controle. Há várias dúzias de unidades C-300, várias dúzias de sistemas de mísseis de defesa aérea, 22 mil soldados e mais. Mas, como eu disse, tudo já está sob controle do povo da Crimeia, e sem disparar um único tiro.
PERGUNTA: Sr. Presidente, um esclarecimento, por favor. As pessoas que bloqueavam o acesso às unidades do Exército da Crimeia usavam uniformes muito parecidos com o uniforme do Exército Russo. Eram soldados russos, o exército russo?
VLADIMIR PUTIN: Examine os uniformes dos exércitos dos soldados dos estados pós-soviéticos. Há muitos uniformes parecidos. E sempre se pode entrar numa loja e comprar qualquer tipo de fardamento.
PERGUNTA: Mas eram ou não eram soldados russos?
VLADIMIR PUTIN: Eram unidades locais de autodefesa.
PERGUNTA: Eram treinados? Se se comparam aqueles soldados com as unidades de autodefesa em Kiev…
VLADIMIR PUTIN: Meu caro amigo, veja o quão bem treinado era o pessoal que operou em Kiev. Todos sabemos que foram treinados em bases especiais em estados vizinhos: na Lituânia, na Polônia e na própria Ucrânia. Foram treinados por instrutores, por longos períodos. Foram divididos em dúzias e centenas, as ações foram coordenadas e havia bons sistemas de comunicação. Funcionava como um relógio. Você os viu em ação? Operavam como profissionais, pareciam forças especiais. Por que você pressupõe que os defensores da Crimeia teriam de ser menos bem organizados, piores?
PERGUNTA: Então, me explico melhor: tomamos parte no treinamento das forças de autodefesa da Crimeia?
VLADIMIR PUTIN: Não.
PERGUNTA: Como o senhor vê o futuro da Crimeia? O senhor considera a possibilidade de a Crimeia unir-se à Rússia?
VLADIMIR PUTIN: Não, não consideramos. De modo geral, creio que só residentes de um determinado país, com plena liberdade para escolher e em completa segurança, podem determinar o futuro do próprio país. Se isso sempre tivesse sido garantido aos albaneses do Kosovo, se fosse tornado possível em muitas diferentes partes do mundo, ninguém teria roubado a ninguém o direito à autodeterminação, o qual, que eu saiba, está fixado em vários documentos da ONU. Não, de modo algum. Não provocaremos essa decisão, nem promoveremos esses sentimentos.
Quero destacar que acredito que só quem viva num dado território tem o direito de determinar o próprio destino naquele território.
PERGUNTA: Duas perguntas. O senhor disse que enviar tropas à Ucrânia é medida extrema, mas o senhor não a descartou. Mas, se tropas russas entrarem na Ucrânia, pode ser o início de uma guerra. Isso não o preocupa? E uma segunda pergunta: o senhor diz que Yanukovich não deu ordem para seus policiais atirarem contra o povo. Mas alguém atirou e, claramente, eram atiradores treinados.
VLADIMIR PUTIN: Muita gente, inclusive pessoas que estavam entre os manifestantes, manifestaram a opinião de que eram provocadores, de um dos partidos da oposição. O senhor não ouviu esses relatos?
RESPOSTA: Não, não ouvi.
VLADIMIR PUTIN: Procure esses relatos – não é difícil encontrá-los. Por isso é tão difícil chegar ao fundo dessa situação. Mas não há dúvidas de que o senhor e eu vimos, com certeza, quando os policiais Berkut lá estavam, só com seus escudos, sob fogo – e não eram armas de ar comprimido, que foram usadas contra eles, mas armas de assalto, que perfuraram os escudos. Isso, com certeza, nós vimos, todo mundo viu. E quanto a quem ordenou os tiros, não sei. Sei o que o sr. Yanukovich contou-me. E ele me disse que não deu ordem de tiro, em nenhum momento. Mais do que isso, depois de assinar o acordo de 21/2/2014, ele deu instruções para que todas as unidades policiais se retirassem da capital.
Posso, até, lhe contar mais. Yanukovich telefonou-me; e eu lhe disse que não retirasse os policiais das ruas. Disse a ele: “Você terá anarquia, você gerará o caos na capital. Pense no povo”. Mas, mesmo assim, ele retirou os policiais. Imediatamente seu próprio gabinete foi tomado, e o prédio do governo, e foi o caos, o mesmo do qual eu falei a Yanukovich, e que continua até hoje.
PERGUNTA: E sobre a primeira pergunta? Não o preocupa a possibilidade de uma guerra?
VLADIMIR PUTIN: Não. Porque não planejamos guerra alguma, nem combateremos contra o povo da Ucrânia.
PERGUNTA: Mas há soldados ucranianos, o exército ucraniano.
VLADIMIR PUTIN: Ouça com atenção. Quero que me compreendam claramente: se nós tomarmos essa decisão, será, sempre e necessariamente e unicamente, para proteger os cidadãos da Ucrânia. Quero ver que exército ucraniano se atreverá a atirar contra o próprio povo, com os russos lá, com os ucranianos; por trás dos ucranianos, não à frente, mas no apoio. Queria saber quem, na Ucrânia, daria ordem ao exército ucraniano para atirar contra mulheres e criança ucranianas que estão sob nossa proteção.
PERGUNTA: Posso fazer uma pergunta, sr. presidente? Nossos colegas, meus colegas jornalistas que estão atualmente trabalhando na Ucrânia, dizem, todos os dias, que a situação dos Berkut piora dia a dia (com exceção, talvez, da Crimeia). Em Kiev, especialmente, há oficiais da polícia antitumultos feridos, agora hospitalizados, mas que não recebem nenhum tipo de tratamento. Alguns, sequer recebem comida. E as famílias deles não podem nem sair de casa, porque estão cercados: há barricadas em torno das casas. Não têm comida, são humilhados. O senhor pode comentar isso? Há meio de a Rússia ajudar aquelas famílias e os policiais?
VLADIMIR PUTIN: Sim, é assunto que muito nos preocupa. Não são soldados nossos, nem estamos diretamente envolvidos nessa situação. Mas é, sim, uma questão humanitária grave. Seria oportuno que nossas organizações de direitos humanos se envolvessem nessa questão. Podemos pedir que Vladimir Lukin, só ou com seus colegas [da ONU], representantes da França, Alemanha e Polônia, que trabalharam para construir o conhecido acordo de 21/2/2014, que viajem até lá e verifiquem in loco a situação desses policiais Berkut, que não ofenderam nenhuma lei e agiram em obediência às ordens. São oficiais militares, enfrentaram os tiros, os coquetéis molotov, foram feridos. Aquela situação é difícil até de imaginar. Há leis que obrigam a alimentar e dar tratamento médico até a prisioneiros de guerra. As organizações de direitos humanos devem dar toda a atenção a esse caso. Desde já, garanto que receberão atendimento médico aqui na Rússia.
PERGUNTA: Sr. Presidente, voltando à reação ocidental. Depois do duro pronunciamento do secretário de Estado dos EUA, o Conselho da Federação sugeriu que chamássemos de volta nosso embaixador nos EUA. O senhor apoia essa ideia?
VLADIMIR PUTIN: O secretário de Estado dos EUA é, sem dúvida, homem muito importante, mas não é a autoridade que determina a política externa dos EUA. Ouvimos declarações de vários políticos e representantes de variadas forças políticas. A medida sugerida é medida extrema. Será usada, se for necessária. Mas realmente não quero usá-la, porque acho que a Rússia não é a única interessada na cooperação com nossos parceiros num plano internacional, e em áreas como economia, política e segurança internacional, a cooperação interessa tanto a nossos parceiros quanto a nós. É muito fácil destruir esses instrumentos de cooperação, e seria muito difícil reconstruí-los.
PERGUNTA: Rússia envolveu-se no destino de Yanukovych. Como o senhor vê seu papel futuro e seu destino futuro?
VLADIMIR PUTIN: É difícil dizer, não analisei detidamente essas questões. Acho que ele não tem nenhum futuro político – e disse a ele. Quanto a nos ter envolvido no “destino” dele – o que fizemos foi feito por questão de consideração humanitária. Assassinar presidente legítimo é o meio mais fácil para livrar-se dele. Acho que, se ficasse lá, teria sido assassinado. Mais uma vez, ressurge a mesma pergunta: mas por quê?
Afinal, vejam como tudo começou, o que desencadeou esses eventos. A razão formal é que ele não assinou o Tratado de Associação com a União Europeia. Hoje, já soa como total nonsense; é ridículo, até, falar disso. Mas o que quero dizer é que ele não se recusou a assinar o tal Tratado.
Yanukovich disse: “Analisamos detidamente esse Tratado e o conteúdo dele não atende aos nossos interesses nacionais. Não podemos aumentar o preço do combustível para os ucranianos, tanto quanto o Tratado exige, porque os ucranianos já vivem situação muito difícil. Não podemos fazer isso, nem isso, nem aquilo. Não podemos romper completamente e imediatamente nossos laços econômicos com a Rússia, porque nossa cooperação é muito extensa. (…) Yanukovich disse “Não posso fazer isso, assim, de repente. Vamos discutir mais”. Yanukovich não se recusou a assinar o Tratado: só pediu mais tempo para discutir o documento. E, na sequência, essa loucura toda começou.
E por quê? Teria feito algo que extrapolasse a autoridade que tinha? Não. Agiu estritamente no limite de sua autoridade; não infringiu lei alguma. Simplesmente se recusou a apoiar as forças que lhe faziam oposição, numa luta pelo poder. Nada há aí de excepcional. Como, por que, esse “nada” inicial foi levado ao atual nível de anarquia, à derrubada ilegal de governo legítimo, com a Ucrânia lançada no caos em que está hoje? Tudo, aí, me parece inaceitável.
Não é a primeira vez que nossos parceiros ocidentais fazem isso na Ucrânia. Às vezes tenho a sensação de que em algum lugar naquele poço imenso, nos EUA, alguém senta-se num laboratório e põe-se a fazer testes, como se todos fôssemos ratos de gaiola, sem realmente compreender as consequências do que fazem. Por que tinham de fazer isso? Quem explica o que fizeram? Não há explicação.
O mesmo aconteceu durante o primeiro levante na praça Maidan, quando Yanukovych foi bloqueado longe do poder. Quem precisava daquele terceiro turno de eleições? Em outras palavras, a coisa toda virou farsa – a vida política da Ucrânia foi convertida em farsa. Nenhuma consideração à Constituição. Agora, vocês veem, estão ensinando às pessoas que, se uma pessoa pode violar a lei, todos podem; assim, geraram o caos. O perigo é esse.
Em vez disso, é preciso ensinar as sociedades a seguir outras tradições: a tradição de respeitar a lei maior do país, a Constituição, e todas as demais leis. Claro, nem sempre se conseguirá. Mas… agir como touro em loja de porcelana é contraproducente e muito perigoso. Há mais perguntas, por favor?
PERGUNTA: Sr. presidente, Turchynov é ilegítimo, do seu ponto de vista.
VLADIMIR PUTIN: Como presidente, sim.
PERGUNTA: Mas o Rada [Parlamento] é parcialmente legítimo.
VLADIMIR PUTIN: Sim.
PERGUNTA: Yatsenyuk e o Gabinete são legítimos? A Rússia está preocupada com a força crescente dos elementos radicais. Eles se fortalecem, sempre que se veem diante de um inimigo hipotético, o qual, hoje, eles entendem que seria a Rússia. Há também a posição russa, de declarar-se pronta para enviar tropas [para a Ucrânia]. Pergunto: faz sentido é será possível manter conversações com as forças moderadas no governo da Ucrânia, com Yatsenyuk? Yatsenyuk é legítimo?
VLADIMIR PUTIN: Parece que o senhor não ouviu o que eu disse. Eu já disse que, há três dias, dei instruções ao governo para renovar os contatos em nível de governo com seus correspondentes ministérios e departamentos na Ucrânia, para não cortar laços econômicos, e para apoiar suas tentativas para reconstruir a economia. Foram instruções que dei diretamente ao governo russo. O primeiro-ministro, sr. Medvedev, está em contato com [Arseniy] Yatsenyuk. E sei que Sergei Naryshkin, presidente do Parlamento russo, está em contato com [Oleksandr] Turchynov. Mas, repito: nossos contatos comerciais e econômicos, e outros, nossos contatos humanitários, só se poderão desenvolver plenamente depois que a situação se normalizar e houver eleições presidenciais.
PERGUNTA: Gazprom já disse que está voltando aos velhos preços do gás, a partir de abril.
VLADIMIR PUTIN: Não. A Gazprom não pode ter dito isso. O senhor não ouviu bem, ou alguém não se expressou com clareza. A Gazprom não está voltando aos velhos preços. A empresa simplesmente não quer manter os atuais descontos, que ela só aceita aplicar ou não aplicar, por períodos trimestrais. Já era assim antes desses eventos, antes de a crise se agravar. Conheço as negociações entre a Gazprom e seus parceiros. A Gazprom e o governo da Federação Russa acordaram que a Gazprom introduziria um desconto, reduzindo os preços do gás para US $268,50 por mil metros cúbicos. O governo da Rússia provê a primeira parte do empréstimo, que não é formalmente um empréstimo, mas uma compra de papéis – um quase-empréstimo, US $3 bilhões de dólares no primeiro estágio. E o lado ucraniano assume o compromisso de pagar a dívida que se criou no segundo semestre do ano passado e de fazer pagamentos regulares do que estão consumindo – pelo gás. A dívida não foi paga, nem estão sendo feitos integralmente os demais pagamentos.
Além disso, o parceiro ucraniano não depositou o pagamento que venceu em fevereiro, o que fez aumentar o montante da dívida. Hoje, está em torno de US $1,5-1,6 bilhões. E se não pagarem tudo o que vence em fevereiro, a dívida se aproximará de US $2 bilhões. Naturalmente, nessas circunstâncias, a Gazprom diz: “Escutem aqui, já que vocês não vão mesmo pagar, e a única coisa que aumenta é a dívida de vocês, vamos fechar negócio com o preço regular, que já é reduzido”. É movimento puramente comercial, parte das atividades da Gazprom, que planeja retornos e gastos em seus investimentos, como qualquer grande empresa. Se não recebem a tempo o dinheiro dos parceiros ucranianos, eles têm de cortar os próprios programas de investimentos; é problema real, para eles. Mas, lembro, nada disso tem qualquer coisa a ver com os eventos na Ucrânia, nem com qualquer movimento político. Havia um acordo: “Damos a vocês dinheiro e preços reduzidos de gás, e vocês fazem pagamentos regulares”. A empresa deu a eles dinheiro e preços reduzidos de gás, mas os pagamentos não estão sendo feitos. Naturalmente, a Gazprom diz “Não, pessoal, a coisa não está funcionando”.
PERGUNTA: Sr. Presidente, o serviço de imprensa da chanceler alemã Merkel disse, depois da conversa telefônica entre ela e o senhor, que havia ficado acertado que o senhor enviaria uma missão de investigação em campo, à Ucrânia, para saber o que acontece por lá, e que seria constituído um grupo de contato.
VLADIMIR PUTIN: Eu disse que temos pessoal com treinamento e competências para examinar a questão e para discuti-la com nossos colegas alemães. Pode-se fazer. Já dei as instruções necessárias ao nosso ministro de Relações Exteriores, que estava para encontrar-se, ou vai encontrar-se com o ministro de Relações Exteriores da Alemanha, sr. Steinmeier, ontem ou hoje, para discutirem esse assunto.
PERGUNTA: Todos os olhos estão na Crimeia, agora, é claro, mas vê-se também o que está acontecendo em outras partes da Ucrânia, no leste e no sul. Vê-se o que está acontecendo em Carcóvia, Donetsk, Lugansk e Odessa. As pessoas içam bandeiras da Rússia nos prédios do governo e pedem ajuda e apoio à Rússia. A Rússia responderá a esses eventos?
VLADIMIR PUTIN: Você acha que não demos nenhuma resposta? Acho que estamos aqui, há uma hora, discutindo essa resposta. Mas, em alguns casos, os desenvolvimentos que se veem são, me parece, inesperados. Não vou entrar aqui em detalhes específicos sobre o que quero dizer com isso, mas a reação que estamos vendo é, em princípio, compreensível.
É possível que nossos parceiros no ocidente e os que se dizem governo em Kiev não tenham previsto que os eventos tomariam esse rumo? Eu perguntei a eles, repetidas vezes: por que vocês estão empurrando o país para esse frenesi? O que estão fazendo? Eles continuaram a trabalhar para o frenesi. É claro que o povo do leste da Ucrânia sabe que foi deixado de fora do processo de decisão.
Essencialmente, o que é preciso fazer agora é adotar uma nova Constituição e submetê-la a um referendo, para que todos os cidadãos de toda a Ucrânia participem do processo e influenciem os princípios básicos que serão o fundamento do governo do país deles. Mas esse não é assunto dos russos. Esse assunto é algo que só o povo e o governo da Ucrânia podem decidir, para um lado ou para outro. Acho que, tão logo haja um governo legítimo e novo presidente e novo Parlamento eleitos, que é o que está planejado, as coisas provavelmente andarão em frente. Se eu fosse eles, voltaria ao assunto de adotar uma Constituição e submetê-la a referendo, para que todos se possam manifestar, votar, e, depois, todos terão de respeitar suas próprias decisões. Se as pessoas sentem que estão sendo deixadas fora do processo, jamais o aceitarão e continuarão a resistir contra ele. Quem precisa desse tipo de coisa? Mas, como já disse, esse não é assunto nosso.
PERGUNTA: A Rússia reconhecerá a planejada eleição presidencial que acontecerá na Ucrânia?
VLADIMIR PUTIN: Vamos ver como a coisa anda. Se for acompanhada pelo mesmo tipo de terror que é tudo que hoje se vê em Kiev, não reconheceremos.
PERGUNTA: Queria voltar à reação do ocidente. Continua toda essa conversa dura, temos, em poucos dias a abertura dos Jogos Paraolímpicos em Sochi. Esses jogos estão em risco, a ponto de fracassar, pelo menos no que tenha a ver com a cobertura jornalística?
VLADIMIR PUTIN: Não sei. Parece-me o cume do cinismo criar ameaças contra os Jogos Paraolímpicos. Todos sabemos que é evento internacional de esportes nos quais portadores de necessidades especiais podem mostrar suas capacidades, provar a eles mesmos e ao mundo que não são pessoas limitadas, mas, ao contrário, gente cheia de ilimitadas capacidades e mostrar, no esporte suas realizações. Se há gente interessada em fazer fracassar esses jogos, só mostram que são gente para quem nada é respeitável, nada é sagrado.
PERGUNTA: Queria perguntar sobre a possibilidade hipotética de usar o exército. Há quem diga, no ocidente, que se a Rússia tomar essa decisão estará violando o Memorando de Budapeste, pelo qual EUA e alguns parceiros da             OTAN consagraram  a integridade territorial da Ucrânia, em troca da promessa de que o país não desenvolveria armas atômicas. Se os desenvolvimentos tomarem esse rumo, atores internacionais poderão intervir nesse conflito local e fazer dele um conflito global? O senhor considerou esse risco?
VLADIMIR PUTIN: Antes de fazer ‘declarações’ e sobretudo, antes de qualquer passo concreto, temos o hábito de dar a devida atenção às questões e analisar consequências e reações possíveis dos vários atores.
Quanto ao Memorando de que você fala… Você disse que é da Reuters, é isso?
RESPOSTA: Sim.
VLADIMIR PUTIN: Como os círculos populares e políticos em seu país veem os eventos em andamento? É claro, afinal, que foi evidente tomada do poder por um grupo armado. Esse é fato claro e evidente. E é claro, também que é golpe anticonstitucional. É fato claro, não é?
RESPOSTA: Eu vivo na Rússia.
VLADIMIR PUTIN: Bom para você! Você deveria trabalhar no corpo diplomático; seria um bom diplomata. A língua dos diplomatas, como se sabe, existe para esconder o que eles pensam. Então, dizemos que o que estamos vendo é um golpe armado anticonstitucional, e nos dizem que não, não é. Você com certeza ouviu muitas e muitas vezes que não se trata de golpe anticonstitucional nem tomada armada do poder, mas que seria uma revolução. Você já ouviu isso?
RESPOSTA: Já.
VLADIMIR PUTIN: Sim, mas, se é uma revolução, o que significa tudo isso? Em alguns casos é difícil não concordar com alguns especialistas que dizem que um novo estado está emergindo nesse território. Exatamente o que aconteceu quando do colapso do Império Russo, depois da revolução de 1917, e um novo estado emergiu. E esse seria um novo estado, com o qual nós não assinamos nenhum acordo ou Memorando.
PERGUNTA: Queria esclarecer um ponto. O senhor disse que se os EUA impuserem sanções, implicaria um golpe contra ambas as economias. Isso implica que a Rússia pode impor contra-sanções, ela mesma? Nesse caso, a resposta seria simétrica?
O senhor também falou sobre os descontos no preço do gás. Mas há também o acordo de comprar $15 bilhões de papéis da Ucrânia. A Ucrânia recebeu a primeira parcela, no final do ano passado. O restante do dinheiro foi suspenso? Se a Rússia oferecer ajuda, em que exatos termos econômicos e políticos isso será feito? E que riscos econômicos e políticos o senhor está considerando nesse caso?
VLADIMIR PUTIN: Respondendo sua pergunta, estamos, em princípio, dispostos a tomar as medidas necessárias para tornar disponíveis as demais parcelas referentes à compra de papéis. Mas nossos parceiros ocidentais nos pediram que não façamos isso. Pediram-nos para trabalharmos em conjunto com o FMI, para encorajar as autoridades ucranianas a fazerem as reformas necessárias que levem à recuperação da economia ucraniana. Continuamos trabalhando nessa direção. Mas, dado que a Naftogaz ucraniana não está pagando o que deve à Gazprom, o governo, agora, considera várias alternativas.
PERGUNTA: Sr. Presidente, a dinâmica dos eventos na Ucrânia está mudando para melhor ou para pior?
VLADIMIR PUTIN: Acima de tudo, acho que está gradualmente começando a nivelar-se. Temos absolutamente de sinalizar para o povo do sudeste da Ucrânia que todos podem sentir-se seguros, e sabendo que poderão tomar parte no processo político geral de estabilizar o país.
PERGUNTA: O senhor falou várias vezes de futuras eleições legítimas na Ucrânia. Quem o senhor vê como candidato sério? Claro que o senhor vai dizer que cabe ao povo ucraniano decidir, mas pergunto mesmo assim.
VLADIMIR PUTIN: Honestamente, não sei mesmo.
RESPOSTA: Parece que ninguém sabe, porque todos com quem se fala parecem estar completamente perdidos.
VLADIMIR PUTIN: Realmente, não sei dizer. Você sabe, é difícil fazer previsões em eventos desse tipo. Já disse que não concordo com esse método de tomar o poder e derrubar autoridades eleitas, e o presidente eleito, e que me oponho fortemente a esse tipo de método na Ucrânia e em geral em todo o espaço pós-soviético.
Oponho-me, porque esse tipo de método não contribui para inculcar uma cultura de respeito à lei. Se um se safar, depois de ter feito isso, significa que todos podem tentar, e isso só significa caos. É preciso entender que esse tipo de caos é o pior que pode acontecer a países de economias frágeis e sistema político instável. Nesse tipo de situação você jamais sabe que tipo de gente os eventos jogarão no centro da cena.
Lembre, por exemplo, o papel que as tropas de assalto de [Ernst] Roehm tiveram na ascensão de Hitler, ao poder. Adiante, aquelas tropas foram liquidadas, mas tiveram seu papel para levar Hitler ao poder. Os eventos podem tomar os rumos mais inesperados.
Permitam-me dizer, mais uma vez, que em situações nas quais o povo clame por reforma política fundamental e novas caras no topo, e também num clamor plenamente justificado – e nisso concordo com o movimento Maidan –, sempre há o risco de você, de repente, ter nas mãos um levante nacionalista ou semifascista, como uma espécie de gênio que salta para fora da garrafa. Hoje, eles estão bem à vista, usando braçadeiras com algo que muito parecem suásticas, ainda circulando por Kiev, nesse momento – ou antissemitas ou outros. Esse perigo está presente lá.
PERGUNTA: Hoje mesmo, coincidentemente, o enviado ucraniano à ONU disse que os crimes cometidos pelos seguidores de Bandera foram forjados pela União Soviética. Com 9 de maio se aproximando, já se pode ver quem está hoje no poder. Podemos ter qualquer contato com eles?
VLADIMIR PUTIN: Temos de ter contato com todos, exceto com criminosos, mas, como eu já disse, nesse tipo de situação sempre há o risco de que eventos como esse tragam à tona gente com visão extremista. Isso, claro, tem consequências graves para o país.
PERGUNTA: O senhor disse que temos de fazer contato com todos. Parece que Yulia Timoshenko planeja visitar Moscou.
VLADIMIR PUTIN: Como você sabe, sempre trabalhamos proveitosamente com todos os diferentes governos ucranianos, não importa sua cor política. Trabalhamos com Leonid Kuchma e com [Viktor] Yushchenko. Quando fui primeiro-ministro, trabalhei com Timoshenko. Visitei-a na Ucrânia e ela veio à Rússia. Tivemos de lidar com situações diferentes no trabalho de administrar a economia de nossos respectivos países. Tivemos nossas diferenças, mas também alcançamos acordos. Foi trabalho construtivo. Se ela quer vir à Rússia, que venha. A situação é outra, agora que ela não é mais primeira-ministra. Virá a que título? Mas, pessoalmente, não tenho nenhuma intenção de impedi-la de vir à Rússia.
PERGUNTA: Uma pergunta rápida: quem, em sua opinião, está por trás do golpe, como o senhor diz, na Ucrânia?
VLADIMIR PUTIN: Como já disse, acho que foi ação longamente preparada. Houve destacamentos treinados para combate. Ainda estão lá, e todos vimos que trabalharam com eficiência. Seus instrutores ocidentais dedicaram-se ao trabalho, é claro. Mas esse não é o verdadeiro problema. Se o governo ucraniano estivesse forte, confiante, e tivesse construído um sistema estável, nenhum grupo nacionalista teria conseguido levar adiante aquele tipo de plano e programa, nem teriam chegado aos resultados que se veem hoje.
O verdadeiro problema é que nenhum dos governo ucranianos anteriores deram a atenção devida às necessidades do povo. Cá na Rússia temos muitos problemas, muitos semelhantes aos da Ucrânia, embora não tão graves como na Ucrânia. A renda mensal média per capita na Rússia, por exemplo, é 29.700 rublos. Mas na Ucrânia, convertida em rublos, é de 11.900 rublos, quase três vezes menor que na Rússia. A aposentadoria média na Rússia é de 10,700 rublo; na Ucrânia, é de 5.500 rublos – metade da russa. Os veteranos russos da Grande Guerra Patriótica [IIª Guerra Mundial, no ocidente] recebem mensalmente quase o mesmo que o salário médio mensal dos trabalhadores. Em outras palavras, há diferença substancial nos padrões de vida. Nisso, sim, os vários governos dever-se-iam ter concentrado desde o começo. Sim, claro, tiveram de combater o crime, o nepotismo, as gangues e clãs, sobretudo na economia. O povo viu tudo isso e perdeu a confiança no governo em geral.
Isso continuou ao longo de várias gerações de modernos políticos ucranianos, que vêm e vão. E o resultado é o povo cada vez mais desapontado, querendo ver sistema novo e novas caras no poder. Essa é a fonte de combustível para os eventos que se veem na Ucrânia. Mas permitam-me repetir: uma mudança de poder, a julgar pela situação, era provavelmente necessária na Ucrânia, mas teria de acontecer por meios legítimos, respeitando, nunca violando, a atual Constituição.
PERGUNTA: Sr. Presidente, se a Crimeia fizer um referendo e o povo optar por separar-se da Ucrânia, quer dizer, se a maioria da população da região votar pela secessão, o senhor apoiará?
VLADIMIR PUTIN: O modo condicional não existe em política. Não esqueço essa regra.
PERGUNTA: Yanukovich está vivo? Houve rumores de que teria morrido.
VLADIMIR PUTIN: Estive com ele só uma vez, desde que chegou à Rússia. Aconteceu há dois dias. Estava vivo e bem, e deseja ao senhor uma longa e próspera vida. Ainda corre o risco de apanhar um resfriado no funeral dos que espalham boatos de que teria morrido.
PERGUNTA: Sr. Presidente, que erros, em sua opinião, Yanukovich teria cometido nos últimos meses, enquanto a situação se agravava na Ucrânia?
VLADIMIR PUTIN: Prefiro não responder essa pergunta, não porque não tenha opinião a expressa, mas porque me parece que não seria adequado. Vocês têm de entender, que, afinal…
PERGUNTA: O senhor tem simpatia por ele?
VLADIMIR PUTIN: Não, simpatia não, outros sentimentos. Quem esteja no governo carrega imensa responsabilidade como chefe de estado, têm direitos e também obrigações. Mas a maior obrigação é fazer acontecer o desejo do povo que o elegeu, agindo pela lei, conforme a lei. E temos de analisar também se ele fez tudo que a lei e os eleitores lhe deram poder para fazer. Analisem vocês mesmos e extraiam suas próprias conclusões.
PERGUNTA: Mas quais são os seus sentimentos? O senhor disse “simpatia, não, outros sentimentos”. Que sentimentos, exatamente?
VLADIMIR PUTIN: Conversamos depois.
PERGUNTA: Algumas questões antes, o senhor disse que temos de sinalizar claramente para o povo do sul e do sudeste da Ucrânia. O sudeste, sim, compreende-se. Mas…
VLADIMIR PUTIN: Temos de expor claramente nossa posição, de fato, para todos.
Temos que ser ouvidos por todo o povo da Ucrânia. Não temos inimigos, na Ucrânia. Já disse e repito, que a Ucrânia é país amigo. Sabem quantos vieram da Ucrânia para a Rússia, ano passado? 3,3 milhões de pessoas. Desses, quase 3 milhões vieram para a Rússia para trabalhar. Trabalham aqui – cerca de 3 milhões de pessoas. Sabem quanto dinheiro mandaram para casa, na Ucrânia, para sustentar a família? Calculem o salário médio, vezes 3 milhões. São bilhões de dólares, uma contribuição importante para o PIB da Ucrânia. Não é brincadeira. São todos bem-vindos. E entre esses ucranianos que vêm trabalhar na Rússia, muitos são também do oeste da Ucrânia. Aos nossos olhos, são todos iguais, todos nossos irmãos.
PERGUNTA: Era exatamente o que eu queria perguntar. Estamos ouvindo muito sobre o sudeste da Ucrânia, atualmente, o que é compreensível, mas há russos étnicos e falantes de russo vivendo também no oeste da Ucrânia, e a situação deles é, provavelmente, ainda pior. Provavelmente não podem nem levantar a cabeça e são minoria muito rejeitada lá. O que a Rússia pode fazer por eles?
VLADIMIR PUTIN: Nossa posição é que, se o pessoal que hoje se diz governo tem esperança de ser considerado governo civilizado, eles terão da garantir a segurança de todos os cidadãos, não importa em que parte do país vivam. Nós, é claro, acompanharemos de perto essa situação. Muito obrigado.
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