domingo, 1 de dezembro de 2013

A história de Benny Weda pode ser a de muitos

A história de Benny Wenda


01.Dez.13 :: Outros autores
A situação do povo papua e a sua luta em defesa da sua identidade, da sua cultura e do seu direito a decidir do seu próprio destino é muito pouco conhecida. Mas é uma das muitas que exigem atenção por parte de todos os que se batam contra qualquer forma de opressão.


O mundo de Benny Wenda em criança nos anos 70 foi a sua aldeia nas remotas montanhas da Papua Ocidental. A vida consistia de tratar da terra com sua mãe no meio do povo Lani, o qual, segundo diz, “vivia em paz com a natureza nas montanhas”. Em 1977, essa vida mudou drasticamente.
Nesse ano, apareceram militares na aldeia. Agora, todas as manhãs Benny, mãe e tias eram interceptados no caminho para as suas terras e inspeccionados por soldados indonésios. Com frequência, os soldados forçavam as mulheres a lavar-se no rio antes de brutalmente as violarem em frente dos filhos. Muitas mulheres jovens, incluindo três das tias de Benny, morreram na selva dos traumas e ferimentos infligidos durante esses ataques, que frequentemente envolviam mutilação genital. Todos os dias as mulheres papuas tinham que se apresentar no posto militar para entregar comida dos seus cultivos e fazer limpezas e cozinhar para os soldados. A violência, o racismo e a subserviência forçada tornaram-se parte da rotina diária.
Mais para o fim desse ano, e em resposta à violência militar contra os papuas, 15.000 Lanis revoltaram-se. Como retaliação, aviões militares indonésios bombardearam muitas aldeias Lani nas montanhas, incluindo a aldeia de Benny. Benny lembra-se de um ataque em que as cabanas e culturas foram queimadas e muitos familiares foram mortos e feridos. Também Benny sofreu com o ataque. Uma perna ficou gravemente ferida e sem ser tratada porque a família foi obrigada a fugir, o que o deixou com uma perna bastante mais curta do que a outra e a coxear. Mais de vinte anos depois, ficaram as cicatrizes, as dores e a dificuldade em andar.
A infância na floresta
Entre 1977 e 1983, Benny e a família, juntamente com milhares de outros habitantes das montanhas, viveram escondidos na floresta. A vida era difícil. Comida e abrigo eram precários e os mais fracos lutavam pela sobrevivência em condições difíceis. A ameaça de violência pelos militares era constante. Num incidente particularmente doloroso, aconteceu os militares cruzarem-se na floresta com Benny e a família. Os soldados arrancaram o primo de Benny de dois anos dos braços da sua tia e atiraram-no ao chão com tanta força que lhe partiram a coluna. Depois, violaram a sua tia, obrigando Benny a ver. O seu priminho morreu duas semanas após o ataque e a sua tia uns tempos depois devido às feridas. Benny não conseguia compreender porque faziam isso os militares indonésios e não tinha conhecimento do contexto no qual a violência ocorria.
Após cinco anos na floresta, todos os outros da sua aldeia tinham sucumbido às condições e tinham-se rendido aos indonésios. Apenas a sua família continuava na floresta. Para se render, os papuas tinham que apresentar-se no posto militar local com uma bandeira indonésia, o que significava a sua lealdade à Indonésia e a sua vontade de viverem em comunidade sob domínio indonésio. Quando a avó de Benny morreu, em grande parte devido às condições do seu esconderijo na floresta, a família decidiu que era tempo de se renderem para o bem das crianças. Tendo já perdido tantos, o avô de Benny insistiu para que as crianças fossem trazidas, dizendo a sua mãe que o bem-estar de Benny era importante, para que um dia soubesse o que aconteceu e porquê… e um dia agisse.
Depois da família se render, Benny passou a ir à escola. A sua educação foi inteiramente sobre a Indonésia. Aprendeu sobre a independência da Indonésia dos holandeses e celebrou-a no aniversário de 17 e agosto de 1945. Aprendeu sobre búfalos, em vez de porcos, e sobre arrozais em vez das culturas papuas que tinha feito ao trabalhar com a família. Disseram-lhe para comer arroz em vez da batata-doce, que era o alimento de base dos papuas. Os professores indonésios e os estudantes chamavam a Benny e aos outros estudantes papuas “estúpido”, “primitivo” e “nojento” por comerem porco e os seus pais eram “indecentes” porque os homens usavam apenas o koteka tradicional (protecção do pénis).
Benny não conseguia compreender porque era tratado pelos indonésios dessa maneira. Ia constantemente para a mãe com perguntas: “Porque cresci na floresta? Porque sou diferente dos outros? Porque me chamam estúpido?”
Perguntava e a mãe recusava-se a responder às suas perguntas. “Um dia, conto-te tudo”, era o que ela dizia. Na secundária, Benny era um dos dois únicos papuas na aula. Os outros eram filhos de transmigrantes javaneses e sulawesis. Um dia, o professor mandou-o sentar-se junto de uma rapariga javanesa. Sorriu e saudou-a educadamente quando se sentou. Ela virou-se, fez uma careta e cuspiu-lhe. Ele limpou o cuspo da cara e sentiu-se mal. “Talvez cheire mal”, pensou. “Não lhe agrado. Não devo estar bem lavado. Deve ser por isso que não gosta de mim.” Partindo do princípio que o problema era seu e ansioso de agradar à rapariga, Benny foi à loja depois da escola comprar um sabonete. Lavou-se três vezes. No dia seguinte, entrou cheio de confiança na aula e sentou-se, sorrindo e saudando a rapariga educadamente. Porém, desta vez ela levantou-se, chamou a atenção de toda a turma e cuspiu-lhe outra vez. Todos riram.
Finalmente, fez-se claro em Benny que nada disso tinha a ver com a sua limpeza. Tratava-se de racismo. Benny levantou-se furioso: “Pensas que por ser preto, por ser papua, sou porco? Tenho olhos, tenho mãos… sou humano – como tu! Somos ambos humanos e merecemos ser tratados da mesma forma. Com respeito.”
Coisas como esta levaram Benny a assumir o papel de líder na comunidade papua. As motivações não surgiram da política, mas do desejo de afirmar e celebrar a identidade papua e encorajar outros papuas a fazerem o mesmo. Benny prosseguiu até completar a formação em sociologia e política em Jayapura. Na universidade, iniciou grupos de discussão para estudantes papuas de todas as idades e de todas as tribos, tanto das montanhas como das zonas costeiras, de modo a poderem juntar-se e falar sobre o que era ser papua. Acima de tudo, Benny queria mudar o quadro mental das crianças papuas, que tinham sido educadas a ouvirem que eram primitivas, estúpidas e sujas, ensinando-lhes que deviam sentir-se orgulhosas de serem papuas.
À procura da verdade
Mas, para Benny, as questões mantinham-se. Ao mesmo tempo que conseguia falar das suas próprias experiências terríveis, percebia ainda muito mal o contexto e o conflito mais vastos nos quais o seu sofrimento pessoal e o da sua aldeia tinham tido lugar. Frustrado com a falta de informação que lhe deram na escola e com a recusa de sua mãe em responder às suas perguntas, procurou informação sobre a história papua. Procurou na biblioteca da escola, na biblioteca pública, na biblioteca da universidade. Mas, não encontrou nada. “Porquê só aprendemos a história da Indonésia, a história de Java, Samatra e Bali? Onde está a história dos papuas?” perguntou.
Durante os anos 80 e mesmo no princípio dos anos 90, havia muito pouca história escrita ou discussão sobre a incorporação da Papua na Indonésia ou sobre os acontecimentos que se seguiram. Mais tarde, através de relatos, Benny acabou por saber como os holandeses tinham mantido controlo sobre a província depois de 1945 e prometido a independência. Soube da declaração de soberania papua a 1 de Dezembro de 1961, soube da bandeira da Papua Ocidental (a Bintang Kejora), o hino nacional (Hai Tanahku Papua), a invasão indonésia e o “Ato da Livre Escolha” de 1969, quando um pequeno grupo de papuas apanhados a esmo foram ameaçados para votarem pela integração na Indonésia.
Percebeu finalmente as causas de raiz do tratamento dos papuas ocidentais pelos indonésios. Contudo, nessa época, Benny recorda que ninguém estava autorizado a usar as palavras “Papua” ou “Papua Ocidental”, apenas “Irian Jaya”, e muito menos discutir publicamente a história, a cultura ou a identidade papuas. Os livros eram censurados, mas conhecer as origens históricas da opressão era suficiente. Das décadas de violência, discriminação e opressão, não precisava Benny de registos escritos visto que delas tinha experiência directa.
A Demmak e a “Primavera Papua”
Depois da queda de Suharto, relaxamento do controle militar e independência de Timor Leste em 1999, deram-se manifestações e ergueram-se bandeiras em toda a Papua, com os papuas pedindo o seu próprio referendo sobre a independência. No período entre 1999 e 2000, conhecido como a “Primavera Papua”, Jakarta dialogou com os dirigentes papuas e formou-se o Presidium do Conselho Papua (PDP) para representar o movimento nacionalista papua e negociar o futuro da Papua.
Foi durante este período que Benny se tornou líder da Demmak (Dewan Musyawarah Masyarakat Koteka), a assembleia tribal Koteka. A Demmak foi estabelecida pelos anciãos tribais com o objectivo de trabalhar para o reconhecimento e protecção dos costumes, valores e crenças do povo tribal da Papua Ocidental. Advoga a independência da Indonésia e rejeita uma autonomia especial ou outro compromisso político oferecido pelo governo indonésio. Como Secretário-geral da Demmak, Benny representou o conselho de anciãos. A organização apoiou as negociações do PDP com Jakarta na medida em que representavam a aspiração do povo papua, ou seja a independência da Indonésia.
Mas, quando Megawati se tornou presidente em Julho de 2001, a política sobre a Papua mudou. A única opção politicamente viável foi uma versão de compromisso de autonomia especial. A Primavera Papua tinha acabado e começou a repressão militar sobre “separatistas” conhecidos. Em Novembro de 2001, Theys Eluay, líder do PDP, foi assassinado por militares. Porém Benny manteve-se firme no objectivo da Demmak: independência total.
Perseguição política… e fuga
A liberdade política de exprimir aspirações à independência evaporou-se rapidamente. Mais uma vez, tornou-se perigoso apoiar a independência. Documentos secretos mais tarde descobertos por organizações de direitos humanos citavam organizações e pessoas que tinham que ser “tratadas”, incluindo o PDP e a Demmak. A 6 de Junho de 2002, Benny foi detido e preso em Jayapura. A sua casa foi revistada sem mandato e a polícia recusou-se a informá-lo das acusações contra ele.
Foi torturado pela polícia e posto em isolamento durante vários meses. Algum tempo depois, foi acusado de incitamento ao ataque a um posto policial e incêndio de duas lojas na pequena cidade de Abepura a 7 de Dezembro de 2000, em que morreram um polícia e um segurança.
Benny foi acusado de um crime que não cometeu devido às suas opções políticas.
Estas acusações estão relacionadas com o infame “incidente de Abepura”, no qual foram cometidos actos violentos de retaliação pela polícia indonésia contra a comunidade papua, resultando na prisão de mais de 100 pessoas, violência policial e tortura na prisão e a morte de pelo menos três estudantes nos dias que se seguiram. Devido a estes acontecimentos, dois oficiais da polícia foram julgados por crimes contra a Humanidade perante o Tribunal de Direitos Humanos em 2005, embora tenham sido absolvidos. Benny enfrentou a acusação criminal pelo ataque inicial ao posto da polícia, por incitamento a actos de violência e incêndio premeditado, com a ameaça de uma pena de 25 anos de prisão. No entanto, nem sequer se encontrava no país na altura em que os alegados planeamento e execução tiveram lugar.
O seu julgamento começou a 24 de Setembro de 2002 e durou várias semanas. Todos os dias, polícias armados cercavam a sala do tribunal enquanto apoiantes de Benny desfilavam em apoio ao seu líder. Frente aos juízes, foi estóico e resoluto ao proclamar a sua inocência. Para os apoiantes, foi caloroso e encorajador, sorrindo e apertando a mão aos que estavam no trajecto entre o carro da polícia e a sala de audiências.
Desde o início que o julgamento foi irregular. O promotor público e o juiz pediram luvas à equipa de defesa de Benny, que as negou. As pessoas nomeadas como principais testemunhas de acusação não puderam ser identificadas e não compareceram no tribunal para confirmação das suas declarações. O conselho de defesa de Benny insistiu para que as declarações das testemunhas fossem rejeitadas na base de que tinham sido fabricadas pela polícia para implicar Benny no ataque. Mas, o juiz, que mostrou parcialidade e hostilidade para com Benny ao longo das audiências, aceitou a prova. Era óbvio que Benny não ia ter um julgamento honesto.
Correram rumores de que os serviços secretos militares o matariam na prisão antes do anúncio da decisão do juiz
Entretanto, dentro da prisão, Benny foi várias vezes atacado fisicamente pelos guardas. A conselho dos advogados, não comia a comida fornecida na prisão pelo risco de envenenamento. Dado que as provas contra ele no tribunal eram fracas, correram rumores que os serviços secretos militares o iam matar na prisão antes de o juiz anunciar a decisão.
O julgamento foi adiado com a decisão pendente. A condenação, incluindo à morte, parecia certa. Então, em circunstâncias miraculosas que ele não quer explicar com medo de pôr em perigo as pessoas que o ajudaram, Benny fugiu da prisão de Abepura a 27 de Outubro de 2002. A polícia indonésia alegadamente emitiu uma ordem de atirar a matar. Mas, ajudado por activistas da independência da Papua Ocidental, Benny passou através da fronteira para a Papua Nova Guiné e mais tarde, ajudado por um grupo de uma ONG europeia, viajou para o Reino Unido onde lhe foi concedido asilo político. Em 2003, Benny e sua mulher Maria juntaram-se em Inglaterra, onde agora vivem com os filhos.
Benny alimenta uma profunda e duradoura esperança de que a justiça acabe por prevalecer e encara a sua notável fuga da perseguição na Indonésia como testemunho disso. Reconhece que outros lutadores pela liberdade, como Arnold Ap, Theys Eluay e Bill Tabuni, não tiveram tanta sorte. Mas, isto só reforça a sua determinação. “Enquanto o meu povo continuar a sofrer e a morrer, nada irá parar a minha campanha”, diz ele.
Para ele, só há uma maneira de parar as mortes e garantir aos papuas o benefício das liberdades de que os povos de toda a parte no mundo gozam: a Papua tem que ser independente. E para esse fim, prossegue a sua campanha.
Em 2011, o governo indonésio emitiu um Mandato de Prisão Internacional contra Benny através da Interpol. Esta iniciativa foi largamente atacada como um truque para silenciar Benny e impedi-lo de viajar no estrangeiro para fazer campanha pela autodeterminação da Papua Ocidental. A “Fair Trials International” fez um apelo para que o “aviso vermelho” da Interpol fosse cancelado, de modo a Benny poder novamente viajar em liberdade.
Em Agosto de 2012, num caso que faz história, a Interpol eliminou o Aviso Vermelho contra Benny, depois de a investigação ter concluído que o governo indonésio tinha abusado do sistema para uma tentativa política de silenciar Benny.
Benny Wenda tem o seguinte sítio de rede: ‘The Office of Benny Wenda‘. O texto acima é extraído desse sítio.
Tradução: Jorge Vasconcelos
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