O objetivo deste artigo é fazer um
registro do que ocorreu no período de uma década com relação às rádios
comunitárias no Brasil, quando o Governo esteve sob o comando do Partido
dos Trabalhadores. Analisam-se as ações do Executivo (o Governo
estritamente falando), e suas relações com o Legislativo e as
representações da sociedade civil.
Dioclécio Luz
Jornalista, mestre em Comunicação pela UnB, autor de "A arte de pensar e fazer rádios comunitárias".
Marco zero: o início do fim
O presidente Lula assumiu em janeiro de
2003, quando já estava em vigor a Lei 9.612/98 que regulamenta as rádios
comunitárias (RC). A legislação incorpora ainda o Decreto 2.615/98 e a
Norma Técnica 01/11.
Nesses dez anos de poder, o Governo PT,
que podia alterar toda legislação, somente mudou a Norma Técnica - e
para pior. Ao mesmo tempo deu mais poderes à Agência Nacional de
Telecomunicações (Anatel), antes criticada veementemente pelo PT. Logo
ao assumir, o Governo PT ampliou a repressão às emissoras não
autorizadas, algo que o partido também criticava antes. A título de
exemplo, em 2005 (dois anos de PT) foram fechadas 1086 emissoras de
rádio que funcionavam sem autorização. Isso equivale à média de 90/mês
ou 3/dia. No ano seguinte a Anatel foi mais eficiente ainda, atingindo a
média de 95/mês. Uma média que tem crescido ano a ano.
É preciso deixar bem claro que, ao lidar
com as rádios comunitárias, o Partido dos Trabalhadores tem adotado uma
posição ideológica de direita. O pior é que faz isso camuflado como
aliado das RCs, como se estivesse atuando com elas. O Governo rebate as
críticas acusando os críticos de estarem numa "disputa política". Diz
ainda que essa crítica está a serviço da "direita", como se este Governo
agisse pela "esquerda". Ocorre que esta postura de avestruz oculta um
mundo real demarcado claramente por uma linha ideológica de direita; uma
linha que segrega e exclui quem faz rádios comunitárias.
A bem da verdade, não se pode
generalizar: nem todos os petistas instalados no Governo agiram contra
as RCs. Tanto no Executivo quanto no Legislativo petistas mantiveram sua
coerência defendendo as rádios comunitárias. A questão é que estes não
têm poder para definir e implantar uma política para o setor. Fez isto o
núcleo majoritário do PT no Governo: camuflando-se para se passar por
aliado, reproduzindo um falso discurso democrático para justificar os
abusos.
Mas como o Governo PT sustentou essa
farsa por dez anos? Por que só uns poucos revelaram que havia uma farsa,
uma engabelação? Uma das respostas está na utopia: acreditou-se que o
PT, sendo guardião da utopia da esquerda, faria as mudanças pretendidas
para o setor. Esta é uma visão romântica (e messiânica) que o Partido
explora, manipulando "a esperança do povo".
Todavia, isso ainda não é o bastante
para explicar como "tantos foram enganados por tanto tempo" aceitando
promessas de que algo jamais seria feito pelas rádios comunitárias.
Ocorre que o Governo PT fez uso de expedientes que pareciam apontar para
o debate democrático no setor. Um deles é o discurso em defesa da
"democracia na comunicação"; outro, o uso de práticas que sugerem uma
"construção coletiva", ou um "processo coletivo e democrático" - termos
caros aos utópicos defensores do setor.
Por exemplo, se o processo democrático,
como se sabe, inclui a abertura de "diálogo com a sociedade", os
dirigentes, autoridades, técnicos agora participam de eventos, debates e
reuniões. Ocorre que não resultam em nada... O Governo também abre
"consultas públicas" - para rejeitar tudo que representa mudança
positiva; cria Grupos de Trabalho - para descartar as propostas que não
lhe agradam; abafa as reivindicações com promessas que não se cumprem.
Quando este Governo é questionado por que não modifica a legislação ele
responde com três clichês: 1) "esta é a legislação possível"; 2) "esta é
a mudança possível"; 3) somente o Legislativo pode fazer isso. As três
opções se constituem em meias verdades.
É claro que o PT poderia ter feito muito
mais. Em dez anos de poder, salvo as exceções de praxe (servidores e
técnicos que continuam atuando em defesa das RCs) , o Governo do Partido
dos Trabalhadores enganou, ludibriou, enrolou os que fazem rádios
comunitárias. E é dessa engabelação política - uma mentira na história -
que se fala aqui.
Primeiro: a ignorância é saudável
No município de Santa Luz, sertão da
Bahia, funciona uma boa rádio comunitária, a Santa Luz FM: sua gestão é
democrática, não pertence a padre ou pastor, não tem jabá, a comunidade
participa ativamente. É assim desde 1998, quando a RC surgiu. Como não
tinha autorização de funcionamento, a Santa Luz FM foi tratada como
"pirata" e fechada pelo menos quatro vezes pela Polícia Federal e
Anatel. Em 2007, quando a rádio ainda era tratada como "pirata" pelo
Governo do PT porque operava emissora sem autorização, seu diretor,
Edisvânio Nascimento, ganhou o prêmio de "Jornalista amigo da criança",
concedido pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI). Na
época Edisvânio nem tinha formação em jornalismo (agora está
concluindo). Hoje a rádio tem autorização - a Santa Luz levou dez anos
para conseguir o documento.
Ocorre que o Palácio do Planalto e o
Ministério das Comunicações não fazem a mínima ideia de onde fica Santa
Luz, tampouco sabem que lá existe uma boa rádio comunitária e que uma
equipe desta rádio foi premiada pela competência jornalística. O Governo
não quer saber disso. Na verdade não sabe nem o que é uma rádio
comunitária. A única leitura permitida é a política, mas uma política
pobre, maquiavélica, apartando o Bem (quem tem poder) e o Mau (quem não
tem). Esta ignorância é saudável para um Governo que somente negocia com
quem tem poder.
Segundo: inúteis Grupos de Trabalho
O Ministério das Comunicações (MC) cuida
para que a ignorância seja regra. Os interlocutores do MC com a
sociedade civil (muda, em média, um a cada seis meses) são tecnocratas,
que, equivocadamente, entendem sua função pública como uma função
política. Dotados de micro-poderes, esses tecnocratas fazem um esforço
tremendo para que as relações de poder sejam mantidas. Na prática,
significa que eles não precisam conhecer rádios comunitárias, mas as
relações de poder dentro do processo. Atuam no processo administrativo
fazendo política. Neste ponto, configura-se um grave erro: eles não
cumprem a função de servidores públicos. Como se estivessem no setor
privado servem à linha determinada pelo dirigente e não ao interesse da
sociedade. Por isso não precisam conhecer de RC. Precisam conhecer as
normas, as regras, saber como "vigiar e punir" (Foucault). São os
capatazes da Casa Grande; cabe-lhes elaborar normas para controlar e
punir as RCs.
Diz o senso comum que quando não se quer
resolver um problema se monta uma comissão ou um Grupo de Trabalho. O
PT seguiu essa regra. Nos dez anos de PT dois Grupos de Trabalho (GTs)
foram instituídos para tratar de rádios comunitárias. Seguindo a
tradição, os dois foram inúteis.
O primeiro GT foi constituído no início
do Governo do PT. Formado por representantes do Ministério das
Comunicações e da sociedade civil, foi criado em março de 2003 (Portaria
nº 83, do Ministério das Comunicações, 24/03/03), iniciando seus
trabalhos no dia 2 de abril. O ministro das comunicações na época era
Miro Teixeira (deputado federal pelo PDT do Rio de Janeiro). O objetivo
do GT era burocrático: propor métodos para agilizar a burocracia no
órgão (eram 4.300 processos de RCs parados no MC). Depois de 90 dias o
GT apresentou suas conclusões, entre elas um Projeto de Lei modificando a
lei 9.612/98. O PL proposto foi para o lixo e mudanças pequenas foram
introduzidas na burocracia.
O segundo GT veio em 2004. O Grupo de
Trabalho Interministerial (GTI) foi criado por Decreto Presidencial
(assinado por Luiz Inácio Lula da Silva) em 26 de novembro, com a
finalidade de...
analisar a situação da radiodifusão
comunitária no País e propor medidas para disseminação das rádios
comunitárias, visando ampliar o acesso da população a esta modalidade de
comunicação, agilizar os procedimentos de outorga e aperfeiçoar a
fiscalização do sistema.
Coordenado pelo Ministério das
Comunicações, as atividades do GTI tiveram início no dia 3 de fevereiro
de 2005 e foram concluídas no dia 10 de agosto de 2005.
O relatório final do GTI revelou o que
todo mundo sabia: 1) algumas rádios sem autorização são comunitárias; 2)
muitas rádios que receberam autorização não são comunitárias. O
documento observa que, se no Ministério das Comunicações um processo
demora em média 26 meses, no Palácio do Planalto o tempo médio entre a
entrada e saída de um processo é de 14 meses. Este tempo é a prova de
como um trâmite burocrático foi transformado em balcão de "negócios
políticos". Este nova etapa de avaliação - e desta vez exclusivamente
política -, não existia no Governo Fernando Henrique Cardoso
(responsável pela Lei 9.612/98). Em tese, cabe ao Planalto apenas
"carimbar" o processo e encaminhá-lo para o Congresso Nacional. Mas isso
não acontece. O processo para no Palácio do Planalto. Essa parada
demora o tempo de negociação com os poderes envolvidos. E, claro, se uma
rádio não conta com padrinhos políticos, se não aparece ninguém para
negociar por ela, por melhor que seja seu projeto a RC está condenada a
uma espera que pode chegar à dezena de anos. Por isso emissoras como a
Santa Luz - de qualidade, mas sem padrinho político ou religioso -
esperam 10 anos para conseguir outorga. Consta que o balcão funciona até
hoje dentro do Palácio do Planalto - é preciso um político, padre ou
pastor para que o processo seja encaminhado ao Congresso Nacional.
O relatório do GTI omitiu a existência
desse "balcão de negócios". No entanto, estudo desenvolvido por
Cristiano Lopes e Venício Lima ("Coronelismo eletrônico de novo tipo
(1999-2004): as autorizações de emissoras como moeda de barganha
política"), mostra que ele existe ou existiu, pelo menos no período. O
estudo mostra como a Igreja Católica tem abocanhado concessões de RCs:
No total, em 120 (5,4%) rádios
comunitárias pesquisadas foi encontrado algum tipo de vínculo religioso.
O domínio de vínculos pela religião católica é notável. Dessas 120
rádios, 83 (69,2%) eram ligadas à igreja católica, 33 (27,5%) a igrejas
protestantes, 2 (1,66%) a ambas, 1 à doutrina espírita (0,8%) e 1 (0,8%)
ao umbandismo. (LIMA, V.; LOPES, 2007).
Esse mesmo Estado que é tão rigoroso no
fechamento de emissoras não autorizadas, fecha os olhos à lei e
distribui autorizações para os seus aliados políticos e religiosos. A
Lei 9.612/98 - artigo 4º e artigo 11 - veda às religiões o comando de
rádios comunitárias, mas o Governo, contraindo essa lei, distribuiu
autorizações para os religiosos. Eis dois exemplos, com dados oficiais:
Processo nº 53770.000456/99. Licença
Definitiva para a "Associação Comunitária Nossa Senhora de Copacabana",
localizada na rua Hilário Gomes, 36, Copacabana, Rio de Janeiro. No
local funciona a Igreja Nossa Senhora de Copacabana. (fonte: Ministério
das Comunicações).
Conclusão: embora autorizada, a rádio está sob o comando da Igreja Católica.
Processo nº 53000.000210/00. Autorização
concedida à "Associação de Assistência Social Casa da Benção",
localizada, de acordo com o MC, à Área Especial 5 - Setor F Sul
Taguatinga Sul, Distrito Federal. A Catedral da Casa Bênção funciona no
mesmo endereço, com o nome de fantasia de "Rádio ondas da bênção" (http://www.catedraldabencao.org.br). (fonte: Ministério das Comunicações).
Conclusão: embora autorizada, a rádio está sob o comando da Igreja evangélica Casa da Bênção.
Para os autores do estudo, essa forma de
distribuição de outorgas de rádios comunitárias é "um comportamento que
remonta ao velho Estado patrimonialista, no qual não havia limite entre
o público e o privado e os patrimônios do Estado e do governante
terminavam por se misturar". Foi visto que:
Dos 1.106 casos detectados em que havia
vínculo político, exatos 1.095 (99%) eram relativos a um ou mais
políticos que atuam em nível municipal. Além disso, todos os outros 11
casos restantes são referentes a vínculos com algum político que atua em
nível estadual ou candidatos derrotados a cargos de nível federal. Não
houve nenhum caso detectado de vínculo direto entre emissoras
comunitárias e ocupantes de cargos eletivos em nível federal. (LIMA, V.;
LOPES, 2007).
As conclusões do estudo:
1. Durante a gestão de pelo menos dois
ministros após a edição da Lei 9.612/98, há indícios de preferência na
distribuição de outorgas de interesse político do próprio ministro.
2. O Palácio do Planalto acelerou processos ou reteve outros conforme interesses políticos.
3. Há uma "intensa utilização política
das outorgas de radiodifusão comunitária". Ela se dá em dois níveis: no
municipal, em que as outorgas têm um valor político localizado; e no
estadual/federal, aí as rádios comunitárias são controladas por forças
políticas locais que devem o "favor" de sua legalização a um padrinho
político.
Quanto ao relatório do GTI...
Ele faz um diagnóstico da situação, mas apresenta propostas "medrosas", pouco alterando a atual situação.
Como o GT anterior, as conclusões deste
GTI também foram para o lixo. Mas, desta vez com um elemento insólito:
embora o relatório tenha sido amplamente divulgado, é como se ele não
tivesse existido - nunca foi oficialmente reconhecido pelo Governo.
Terceiro: omissão é posição
A legislação em vigor foi feita para
impedir a existência das RCs. Sancionada pelo governo anterior (Fernando
Henrique Cardoso) o Governo petista optou pelo mais cômodo, fazer-se de
cego, omitiu-se. E ao fazer isso, na prática, posicionou-se pela lei em
vigor. Por isso, criada há 14 anos, a legislação permanece com seus
absurdos.
O absurdo mais flagrante é o limite de
alcance para 1 Km de raio. Isso não está na lei, foi uma invenção do
Executivo. O artigo 1º da Lei 9.612/98 estabelece que a potência da RC
deve ser limitada a 25 w. O Decreto 2.615/98, porém, vai além e diz que o
alcance da rádio não deve ultrapassar 1 km. Na prática, o Executivo
mudou o conteúdo da lei fazendo uso de um Decreto - o que é ilegal! Com
isto o Estado (que é quem aplica a legislação) ampliou mais ainda o
caráter restritivo da Lei. Ele impôs uma comunidade com fronteiras
eletromagnéticas; substituiu as antigas e verdadeiras fronteiras da
comunidade - definidas por relações humanas, culturais e geográficas -
por "cercados eletromagnéticos", com limites restritos a um círculo de
raio de 1 km.
Antes, pela Lei, a RC deveria atender a
"comunidade do bairro e/ou vila". Com a redação dada no Decreto, a RC
deve atender somente a quem está dentro desse círculo de raio de 1 km. O
Estado criou um espaço que não existia, uma espécie de gueto ou "campo
de concentração", cercado por redes eletromagnéticas - dentro dele deve
operar a rádio e devem morar seus dirigentes.
Por que o Governo do PT não mudou isso?
Porque fez uma opção política em função de uma linha ideológica. É a
mesma que está inserida na Lei 9.612/98 (art. 5º), quando se determina
que as RCs devam transmitir em um só canal (uma faixa limitada de
frequências), indicando-se um canal alternativo quando não for possível
usar o primeiro indicado. Que canais são estes? Em tese devem estar
dentro do dial de Frequência Modulada (FM), a faixa que vai de 88 a 108
MHz. Afinal todo receptor de rádio FM é construído para receber sinais
dentro dessa faixa - faz parte de um acordo internacional entre os
países.
Mas o Estado brasileiro inovou...
Em 1998, através da Resolução 60, a
Anatel decidiu que as rádios comunitárias deveriam operar no canal 200
(faixa de 87,9 MHz, a 88,1 MHz). Isso era no Governo FHC. Em 2004, já no
Governo do PT (Lula), a Anatel, através da Resolução 356, diz que as
RCs devem ocupar, também, os canais 198 e 199 (faixa de 87,5 MHz a 87,7
MHz). Portanto, para as RCs de todo Brasil foi destinada a faixa de
freqüências que vai de 87,5 MHz a 88,1 MHz. Ocorre que salvo a
freqüência de 88,1, tais canais estão fora do dial! Se, como foi visto, a
faixa de FM vai de 88 a 108 MHz, para quem a RC vai transmitir se os
receptores de FM não recebem abaixo de 88 MHz?
Isso não importa para o Governo petista
que se associa a Anatel para defender que os aparelhos de rádio recebem
nessa faixa. A Anatel chegou a apresentar estudos técnicos para provar
que isto é possível. Não consegue provar, porém, que este ato não é uma
discriminação - para nenhuma emissora comercial ou educativa foi
designado canal nestas condições, fora do dial.
A legislação que o Governo do PT não
quis modificar é repleta de atos de segregação. Ela exige que os
dirigentes da emissora residam dentro do círculo determinado pelo raio
de alcance de 1 km; veda a formação de redes; veda a publicidade,
permitindo apenas o "apoio cultural"; estabelece que se a RC interferir
sobre outro serviço de telecomunicações ela será punida, porém se ocorre
o contrário, se uma emissora comercial interfere no sinal da RC,
conforme a Lei, o Estado nada vai fazer.
Quarto: vigiar e punir
Em outubro de 2011 o Ministério das
Comunicações resolveu mudar a legislação. E começou mudando a Norma
Técnica 01/04. Essa mudança adquire um caráter simbólico porque foi a
única alteração da legislação de RC em 10 anos de Governo do PT.
Imaginava-se que o PT tivesse ouvido as rádios comunitárias e
apresentasse propostas que reduzissem os efeitos negativos dessa
legislação. Era o que se esperava de um Partido que tinha, no seu
discurso, um apelo social e, por base, as camadas populares. Não foi o
que aconteceu.
Entenda-se, a legislação do Serviço de
Radiodifusão Comunitária se constitui basicamente (e hierarquicamente)
da Lei 9.612/98, seu Decreto regulamentador, 2.615/98, e, hoje, da Norma
Técnica, 01/11. O mais sensato seria, primeiro, mudar a lei, depois o
Decreto e, por fim a Norma.
O Executivo não mudou o Decreto, que é
de sua alçada, optando por fazer uma nova Norma Técnica, a 01/11 (está
em vigor hoje). Deste modo o PT entra na história das rádios
comunitárias por ter assinado uma mudança da legislação que a torna pior
do que já era.
Deve-se entender a Norma como um
discurso institucional, uma fala do Poder. E, por ser uma Norma técnica,
é um discurso do poder que se apresenta semioticamente com "virtudes":
ela teria autonomia (teria sido construída em ambiente alheio aos
conflitos do setor), seria necessária (ao processo burocrático), seria
apolítica (teria sido construída em ambiente alheio à política).
Portanto, impositivo por natureza, a Norma técnica é um discurso do
Governo do PT - ela "diz o que o Governo pensa sobre o assunto".
O discurso expresso nesta Norma objetiva
manipular. O manipulador, o Governo, quer submeter (manipular) os que
querem fazer rádio comunitária.
A manipulação envolve não apenas o
poder, mas especificamente abuso de poder, ou seja, dominação. Mais
especificamente, a manipulação implica o exercício de uma forma de
influência deslegitimada por meio do discurso: os manipuladores fazem os
outros acreditarem ou fazerem coisas que são do interesse do
manipulador, e contra os interesses dos manipulados (VAN DIJK, Teun A.
Discurso e poder. São Paulo, Contexto, 2008).
Esse mascaramento do discurso, essa tentativa de manipulação das pessoas, é um ato ilegítimo.
Definimos como ilegítimas todas as
formas de interação, comunicação ou outras práticas sociais que servem
apenas aos interesses de uma parte e são contra os interesses dos
receptores. (idem, p. 238).
A pretensão do discurso/norma é
controlar as pessoas, "vigiar e punir", mais exatamente, que é título de
célebre estudo do francês Michel Foucault sobre os métodos adotados
historicamente para conter e punir os criminosos (Rio de Janeiro,
Petrópolis: Vozes, 2009). No caso, "criminosos" são os que fazem ou
pretendem fazer rádios comunitárias de forma independente. Para tanto,
segundo Foucault, o Poder faz uso do que se entende por "ordem
disciplinar" - um conjunto de práticas de controle, sistematizadas a
partir do Século XIX e usadas até hoje nas mais diversas instituições. O
objetivo dessa ordem disciplinar é humilhar e controlar, vigiar e punir
aqueles que poderiam desobedecer ao poder.
A punição e a vigilância são poderes
destinados a educar (adestrar) as pessoas para que essas cumpram normas,
leis e exercícios de acordo com a vontade de quem detêm o poder. A
vigilância é uma maneira de se observar a pessoa, se esta está realmente
cumprindo com todos seus deveres - é um poder que atinge os corpos dos
indivíduos, seus gestos, seus discursos, suas atividades, sua
aprendizagem, sua vida cotidiana. A vigilância tem como função evitar
que algo contrário ao poder aconteça e busca regulamentar a vida das
pessoas para que estas exerçam suas atividades. Já a punição é o meio
encontrado pelo poder para tentar corrigir as pessoas que infligem as
regras ditadas pelo poder e ela também é o meio de impedir que essas
pessoas cometam condutas puníveis (através da punição as pessoas terão
receio de cometer algo contrário às normas do poder). A vigilância e a
punição podem ser encontradas em várias entidades estatais, como
hospitais, prisões e escolas (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de
janeiro, Petrópolis: Vozes, 2009).
A Norma 01/11 é o discurso da "direita",
tanto criticada pelo PT. Por exemplo, ela restringiu a forma de
patrocínio da RC. Se a Lei diz que o patrocínio somente pode ser feito
por estabelecimentos instalados na área em que funciona a rádio
comunitária, a Norma diz que o "apoio cultural" não pode divulgar
ofertas, produtos, valores. Pergunta-se: qual a loja ou serviço vai
patrocinar uma RC sabendo que não pode colocar os valores da oferta?
A bem da verdade, antes de existir uma
definição de apoio cultural a Anatel já usava esta que agora se impõe.
Ou seja, ela aplicou multas em diversas rádios por descumprirem uma
regra que não existia! Este abuso da Anatel (punir sem ter norma legal
para tanto) contou com a colaboração do Ministério das Comunicações, que
tornou público em seu site uma regra inexistente como se fosse norma
legal. Bem antes da Norma ser publicada, esse texto estava lá no site do
MC (pelo menos até 13/05/11) como resposta às "perguntas mais
frequentes". Os redatores da Norma copiaram o texto e colaram na nova
Norma.
Quanto à nova Norma 01/11. Ela amplia a burocracia e o controle sobre as pessoas. Para tanto pede (item 8.1.d) a lista...
De todos os associados pessoas físicas,
com o número do CPF, número do documento de identidade e órgão expedidor
mais o endereço de residência ou domicílio, bem como de todos os
associados pessoas jurídicas, com o número do CNPJ e endereço da sede.
Qual o interesse do Estado em saber quem
faz parte da associação? Quais as suas pretensões? Imagine-se o
calhamaço que vai render uma associação como a Rádio de Heliópolis, São
Paulo, instalada numa comunidade com 125 mil pessoas. O que o Ministério
das Comunicações pretende fazer com uma lista contendo os dados de
centenas ou milhares de pessoas, com a especificação de nome, endereço,
CPF? Vai verificar a autenticidade de cada uma? Ao que parece temos aqui
uma prática comum a regimes ditatoriais objetivando controlar as
pessoas.
Ainda nesta Norma, o Governo pede ao
interessado "declarações" aparentemente absurdas para conceder a
autorização. Um exemplo: é solicitado aos dirigentes das emissoras
declarações de que seguirão a norma legal. Ora, qual a lógica em
solicitar de concessionário de serviço público papel assinado dizendo
que ele vai seguir a lei?
Não se trata, porém, de uma insensatez.
Os que redigiram essa Norma não são nada insensatos. Pelo contrário. A
Norma é parte de uma estratégia de manutenção do Poder, baseada numa
determinada postura ideológica. A Norma é uma regra, mas também o
discurso deste poder arrogante, abusivo. Ela afirma este Poder dizendo
quem manda, quem dá as ordens; é o poder que humilha, discrimina,
segrega, controla, vigia, enfim, faz de tudo para tornar dóceis os
prováveis rebeldes. Cabe a imagem dos tempos coloniais: para evitar que
os negros fujam das senzalas existem as cercas, as regras e as punições.
A punição era o açoite, mas também a humilhação.
A Norma 01/11 faz exigências - "declarações" - com essa mesma intenção. Eis mais três delas:
a) Declaração de que os dirigentes
da RC residem dentro do círculo com 1 km de raio, o espaço reservado
pelo Estado para alojar as RCs. O dirigente também deve apresentar mapa
topográfico indicando onde fica sua moradia destro deste gueto.
b) Declaração de que, quando solicitada, a entidade vai apresentar o projeto técnico.
Se a entidade sabe que, de acordo com a
legislação, ela tem que apresentar projeto técnico, e que se não
apresentá-lo não consegue outorga, porque exigir a declaração?
Ora, em nenhum outro setor da sociedade
civil exige-se da pessoa física ou jurídica declaração de que ela vai
seguir a lei. Isto somente acontece com quem se habilita às RCs.
Devem-se entender as exigências dessas
declarações como parte do processo de punição. O Poder, ao tempo que se
afirma ideologicamente, também humilha. Nos Estados Unidos os negros
eram obrigados a cederem os assentos aos brancos. Era norma, mas antes
disso era um discurso (uma ideologia). A Norma 01/11, assinada pelo
Governo PT, tem efeito similar.
Quinto: cadeia para as RCs
Milhares de pessoas foram punidas por
operarem emissoras sem autorização. Geralmente as rádios são fechadas em
ações conjuntas da Anatel e Polícia Federal. A base legal é o Artigo 70
da Lei 4.117/62, o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT) e o
artigo 183 da Lei 9.472/97, a Lei Geral de Telecomunicações (LGT).
Conforme a Constituição brasileira é preciso mandado judicial para que
os agentes possam entrar e fazer a apreensão de equipamentos ou prender
pessoas.
Na prática o mundo é outro. E há a história...
Por exemplo, até virar poder, o PT era
contra a Lei Geral de Telecomunicações. Esta lei - uma invenção de
Fernando Henrique Cardoso para encaixar o setor no mundo neoliberal -
criava uma regulamentação para as telecomunicações, criava a Anatel e
privatizava a Embratel. O PT era contra tudo isso. Era contra,
inclusive, o poder de polícia dos agentes expresso no artigo 19, inciso
XV, dessa lei. Diz o texto:
Art. 19 - À Agência compete adotar as
medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o
desenvolvimento das telecomunicações brasileiras atuando com
independência , imparcialidade , legalidade, impessoalidade e
publicidade , e especialmente:
.........
XV - realizar busca e apreensão de bens no âmbito de sua competência.
Em 1997, tão logo foi aprovada a LGT, o
PT (com o PDT e PSB), entrou com uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADIN) junto ao Supremo Tribunal Federal. O PT não
aceitava que os agentes da Anatel tivessem o poder de fazer a apreensão
de equipamentos de rádios. Para o PT isto feria a lei maior do país. Em
20/08/98 o Supremo concedeu liminar (nº 1668). Vitória do PT.
Pois bem, instalado no Palácio do
Planalto, o PT encaminhou para o Congresso Nacional Projeto de Lei
regulamentando os cargos dos que atuavam nas agências reguladoras. O PL
foi aprovado no Congresso e sancionado pelo presidente Lula em 20 de
maio de 2004 na forma da lei 10.871. Diz o artigo 3º desta lei:
Art. 3º São atribuições comuns dos cargos referidos nos incisos I a XVI do art. 1º desta Lei:
Parágrafo único. No exercício das atribuições de natureza fiscal ou decorrentes do poder de polícia, são asseguradas aos ocupantes dos cargos referidos nos incisos I a XVI do art. 1o desta Lei as
prerrogativas de promover a interdição de estabelecimentos, instalações
ou equipamentos, assim como a apreensão de bens ou produtos, e
de requisitar, quando necessário, o auxílio de força policial federal
ou estadual, em caso de desacato ou embaraço ao exercício de suas
funções. (grifo nosso).
Isto é, com apenas um ano de Governo, o
PT encaminhou e aprovou Lei que dá poderes de polícia aos agentes da
Anatel (e das demais as agências), legitimando a apreensão de
equipamentos. Foi uma prova de que ao chegar ao poder o PT mudou de
ideia (e ideologia). O que antes o partido considerava ilegal,
inconstitucional, não apenas deixara de ser como criou lei para
legitimar a situação.
Sexto: as ideias mudam
Sim, o PT era contra as agências
reguladoras. Quem se der ao trabalho de ler as intervenções de
parlamentares petistas no Congresso durante a votação da LGT, ou mesmo
as manifestações públicas do partido sobre o assunto, constatará como o
partido era visceralmente contra a criação de agências, uma das
principais bases para implantação do Estado neoliberal defendido por FHC
dentro da nova ordem mundial. Mas assim que chegou ao poder o PT mudou.
Não apenas deixou de criticar as agências no governo anterior com
cuidou de criar quase uma dezena de novas.
Petistas mantenedores deste poder
conceituam esse fenômeno de mutação ideológica como "governabilidade".
Porém, petistas de raiz, classificam isso como atos de direita
realizados por um partido que se pretende de esquerda, e traduzem a
expressão "governabilidade" como "oportunismo".
O problema é que quando se muda de
ideia, ou de discurso, não se consegue apagar a memória. Por exemplo,
este Governo não se incomoda com o fato da repressão às rádios não
autorizadas ser feita - hoje! - com base num dispositivo criado pela
ditadura militar. O texto do artigo 70 da Lei 4.117/62 foi alterado pelo
general Castelo Branco através do Decreto 236 em 1967. O novo texto
pune com dureza os "subversivos" que ousarem colocar no ar emissoras sem
autorização dos ditadores. O texto ainda fere o direito à legítima
defesa consagrado na Constituição Federal de 1988 (motivo da ADIN
impetrada pelo PT em 1997):
Art. 70 Constitui crime punível com a
pena de detenção de 1 (um) a 2 (dois) anos, aumentada da metade se
houver dano a terceiro, a instalação ou utilização de telecomunicações,
sem observância do disposto nesta lei e nos regulamentos.
Parágrafo único. Precedendo ao processo
penal, para os efeitos referidos neste artigo, será liminarmente
procedida a busca e a apreensão da estação ou aparelho ilegal.
Isso está valendo hoje. E não constrange
o Governo petista, embora ciente de que "companheiros" foram presos,
torturados e mortos por essa ditadura. A Anatel e a Polícia Federal
fazem uso desse dispositivo porque ele está em vigor. Hoje, com base
neste dispositivo e no art. 183 da LGT, há milhares de pessoas
processadas por operar sem autorização.
Parlamentares do PT e de outros partidos
apresentaram propostas visando anistiar essas pessoas punidas com base
nessa lei. As propostas foram apensadas ao PL nº 4549/98. Coube a
relatoria desse PL ao deputado Walter Pinheiro, do PT da Bahia (hoje
senador), que, em 2008, apresentou um PL Substitutivo. O novo texto
incorporou as propostas mais avançadas, anistiando todos que foram
punidos, propondo penas administrativas para quem operasse emissoras
nessa condição; revoga o artigo 70 da Lei 4.117/62 e dá nova redação ao
artigo 183 da Lei 9472/97(punindo somente quem ultrapassar 250 watts de
potência).
Então, ocorreu um feito raro: o
Substitutivo foi aprovado (10/12/08) na Comissão de Ciência e
Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTI)! Daí foi encaminhado à
Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a última instância antes de
seguir para o Senado. Era uma excelente notícia para os que fazem rádio
comunitária. (O Substitutivo está disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=526703&filename=SBT+1+CCTCI+%3D%3E+PL+4549/1998)
Nesse momento o Governo petista resolveu
intervir. Apoiando o PL aprovado na CCTI? Não. Pelo contrário: logo no
início do novo ano, exatamente no dia 30/01/09, o Governo PT manda para o
Congresso o Projeto de Lei nº 4573/09, que é um retrocesso diante do
que havia sido aprovado na Comissão. A nova proposta é apensada ao que
havia sido aprovado na CCTI e trava a tramitação na Câmara. O Governo
petista conseguiu uma façanha: barrou uma antiga reivindicação dos que
atuam em RC mesmo sendo apresentada por um parlamentar do partido.
Mas ainda era pouco para. A nova Norma
Técnica, assinada em junho de 2011, inseriu dispositivo que veta a
participação dos processados pela PF na diretoria de RC. Isto é, as
lideranças que ousaram enfrentar o aparato repressivo e colocaram
emissoras no ar, exatamente aquelas pessoas que foram punidas pela
Polícia Federal e pediam a anistia, agora são novamente punidas pelo PT
com a exclusão do comando da emissora. O Governo petista quer somente
líderes dóceis, bonzinhos, dirigindo emissoras comunitárias - o que é
coerente com a sua linha de "vigiar e punir".
Finalmente, deve-se registrar que
parlamentares do PT no Parlamento atuaram desde o primeiro instante por
mudanças na legislação das rádios comunitárias. Em 2004, por exemplo,
tramitavam no Congresso 20 propostas de petistas, e todas sugeriam
avanços na legislação. Não era só isso: dezenas de parlamentares
petistas estavam (e muitos ainda continuam) na linha de frente em defesa
das rádios; alguns até enfrentaram corpo a corpo a Polícia Federal. Mas
esta defesa de uma nova proposta para as rádios comunitárias não
sensibilizou o poder instalado no Executivo.
Sétimo: conclusões
Como no célebre romance de Gabriel
Garcia Marquez, o tempo não passa para as rádios comunitárias - elas
continuam sendo enroladas, enganadas, desprezadas e humilhadas pelos
governos que se sucedem. Muda Governo, renovam-se os burocratas e
tecnocratas, mas a postura é a mesma - de segregação. Seja o PSDB de
Fernando Henrique Cardoso, ou o PT de Lula ou Dilma Roussef, o
tratamento não muda.
Convenhamos, porém, o presidente
Fernando Henrique Cardoso foi coerente. Seu Governo sempre se posicionou
claramente contra as rádios comunitárias; e a Lei 9.612/98, altamente
restritiva, reproduz este pensamento. O discurso do Governo petista,
porém, é ilusionista - manifesta-se como uma defesa das RCs, mas suas
ações promovem o estigma da exclusão de classes. "Rádio comunitária é
coisa de pobre, dê-se a ela as migalhas, as sobras do banquete", é outro
significado desse discurso.
Os dez anos do PT significaram dez anos
de solidão para as rádios comunitárias. O Governo do PT (e não se pode
generalizar para todo partido) fez o pior papel a se esperar numa
disputa política: mascarou-se de aliado mas agiu como inimigo das RCs.
O partido não aprendeu as lições do
velho Mao Tse Tung que dizia: numa guerra a primeira a coisa é saber
quem são seus aliados e seus inimigos. O PT escolheu fazer uma política
que destruiu a utopia de um partido de esquerda. Para desespero dos
petistas de raiz, dos que acreditavam num partido da utopia, o Governo
do PT faz um esforço enorme para mostrar ao mundo que o PT é um partido
igual aos outros.
No caso das rádios comunitárias o
Governo do Partido dos Trabalhadores é bem claro. São dez anos de
enrolação, dez anos esperando Godot, dez anos de falsas promessas, dez
anos que representam cem anos de solidão.
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