Henri Alleg (1921-2013)
Um Comunista e Revolucionário exemplar
Miguel Urbano Rodrigues
Faleceu ontem, quarta-feira, mas saíra praticamente da vida no ano
passado quando, em férias numa ilha grega, sofreu um AVC. O seu cérebro
foi tão atingido que a recuperação era impossível.
Ficou semi-hemiplégico e passou os últimos meses numa clínica,
caminhando para o fim numa existência quase vegetativa. Reconhecia os
filhos, dizia algumas palavras, mas o seu discurso tornara-se caótico.
Ligou-me a esse homem uma amizade tão profunda que sinto dificuldade em a definir.
Aos 90 anos passou uma semana em V.N de Gaia, comigo e a minha
companheira, e pronunciou então na Universidade Popular do Porto uma
conferência sobre a Argélia e os acontecimentos que abalavam o Islão
africano. Pelo saber histórico e lucidez impressionou quantos então o
ouviram.
Admirava-o há muito quando o conheci na Bulgária, em 1986, durante um
Congresso Internacional. A empatia foi imediata, abrindo a porta a uma
amizade que se reforçou a cada ano.
Henri, após o 25 de Abril, foi correspondente de L' Humanité em
Lisboa. Não tive então oportunidade de o encontrar. Mas no último quarto
de século visitou Portugal muitas vezes. A Editorial Caminho publicou
três livros seus (SOS América, O Grande Salto Atrás e O Seculo do Dragão) e a Editora Mareantes lançou a tradução portuguesa de La Question (A Tortura), o livro que o tornou famoso e contribuiu para apressar o fim da guerra da Argélia.
Amava Portugal, especialmente o Alentejo da Margem Esquerda do Guadiana, e admirava muito o Partido Comunista Português.
Participou em Portugal de diferentes Encontros Internacionais e, numa
das suas visitas a Lisboa, foi recebido pela Comissão dos Negócios
Estrangeiros da Assembleia da Republica, debateu ali com deputados de
todos os partidos grandes problemas do nosso tempo, e foi depois
aplaudido pelo plenário.
Recordo também o interesse excecional suscitado pela sua passagem pelo
Brasil e Cuba, onde o acompanhei nas suas visitas àqueles países.
A complexidade do sentimento de admiração que Henri Alleg me inspirava
levou-me a escrever sobre ele e os seus livros mais páginas do que ao
longo da vida dediquei a qualquer outro escritor. Elas aparecem em
livros meus e em artigos publicados em jornais e revistas de muitos
países. Evito portanto repetições.
Recordo que ao ler La Grande Aventure d'Alger Republicain o
choque – é a palavra – foi tão forte que sugeri numa conferência que o
estudo desse livro deveria figurar no programa de todas as Faculdades de
Jornalismo do mundo.
O que encontrei de diferente em Henri Alleg?
Refletindo sobre o fascínio que aquele homem exercia sobre mim, conclui
que a admiração nascia da firmeza das suas opções ideológicas, de uma
coragem espartana e de um eticismo raríssimo.
Mais de uma vez lhe disse que via nele o modelo dos bolcheviques do ano 17.
Henri apareceu-me como o comunista integral, puro, quase perfeito.
Não conheci outro com quem me identificasse tão harmoniosamente no
debate de ideias.
É de lamentar que Mémoire Algérienne não tenha sido traduzido
para o português. Nesse livro de memórias, que é muito mais do que isso,
Henri, nos capítulos finais, permite ao leitor imaginar o sofrimento do
comunista que acompanha o rápido afastamento, após a independência, dos
dirigentes da FLN dos princípios e valores que tinham conduzido os
revolucionários argelinos à vitória sobre o colonialismo francês. Pagou
um alto preço pela autenticidade com que se distanciou do poder em Alger Republicain, o seu diário, fechado por Houari Boumedienne, herói da luta pela independência.
Pesado foi também o preço que pagou em França, onde, após o regresso à Europa, foi secretário de redação de L' Humanité, então órgão do CC do Partido Comunista Francês.
Henri Alleg denunciou desde o início a vaga do euro comunismo que
atingiu os partidos francês, italiano e espanhol, entre outros.
Criticou com frontalidade a estratégia que levou o PCF a participar em
governos do Partido Socialista que praticaram políticas neoliberais.
Foto de 2008. No belo livro que escreveu sobre a destruição da URSS e a
reimplantação do capitalismo na Rússia fustigou os intelectuais que,
renunciando ao marxismo, passaram em rápida metamorfose a defensores do
capitalismo e a posições anti-soviéticas. Não hesitou mesmo em criticar o
próprio secretário-geral do PCF, Robert Hue, considerando a orientação
imprimida ao PCF como incompatível com as suas tradições revolucionárias
de organização marxista-leninista.
Mas, contrariamente a outros camaradas, travou o seu combate de comunista dentro do Partido como militante.
Tive a oportunidade em França, de registar, em assembleias comunistas a
que assisti, o enorme respeito que Henri Alleg inspirava quando tomava a
palavra. Verifiquei que mesmo dirigentes por ele criticados admiravam a
clareza, o fundamento e a dignidade do seu discurso crítico.
Nos últimos anos, apesar de uma saúde frágil, compareceu em programas de
televisão, voltou a Portugal e revisitou a Argélia onde foi recebido
com entusiasmo e emoção. Nos EUA as suas conferências suscitaram debates
ideológicos de uma profundidade incomum, com a participação de
comunistas e académicos progressistas. E quase até ao AVC que o abateu,
percorreu a França, respondendo a convites de Federações Comunistas e
outras organizações. A juventude, sobretudo, aclamava-o com ternura e
admiração.
A morte da companheira, Gilberte Serfaty, em 2010, foi para ele um golpe demolidor.
"Não mais posso sentir a alegria de viver…" – respondeu-me quando o
interroguei sobre o peso da solidão. Ela, argelina, era também uma
comunista excecional. Contribuiu muito para organizar com o Partido a
sua fuga rocambolesca da prisão francesa de Rennes, para onde fora
transferido da Argélia.
Muitas vezes, quando ia a França, instalava-me na sua casa de Palaiseau,
nos subúrbios de Paris. Henri, que era um gourmet e um grande
cozinheiro, recebia-me com autênticos banquetes e preparava um
maravilhoso couscous, acompanhado de vinhos argelinos.
Na última visita a Palaiseau antes da sua doença, minha companheira e eu
participamos de um jantar inesquecível. Éramos cinco: nós, Henri,
Gilberte e o filho, Jean Salem, já então um filósofo marxista de
prestígio internacional.
Recordo que nessa noite passamos o mundo em revista. Henri irradiava
energia; amargurado com o presente cinzento da humanidade, falou do
futuro com a esperança de um jovem bolchevique.
Repito: Henri Alleg foi um revolucionário e um comunista exemplar.
Vila Nova de Gaia,18 de julho de 2013
Ver também:
"Os torturadores norte-americanos do Iraque são alunos dos franceses na Argélia" , Henri Alleg (entrevista)
Os limites das possibilidades dos agressores imperialistas , Henri Alleg
O sonho da fraternidade na Argélia de Henri Alleg , Miguel Urbano Rodrigues
Mémoire algérienne, de Henri Alleg , Rémy Herrera
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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