sexta-feira, 12 de julho de 2013

Há um desejo em Honduras de se vingar do golpe nas urnas, diz ex-ministro de Zelaya

Victor Meza |
29/06/2013 - 08h15 | Giorgio Trucchi | Tegucigalpa

De acordo com Victor Meza, setores golpistas não calcularam efeitos da deposição do ex-presidente, há exatos quatro anos

Quatro anos depois do golpe de Estado que derrubou o presidente Manuel Zelaya, Honduras ainda não pôde se recuperar. Ainda assim, os setores da “oligarquia golpista” não tinham previsto a espontaneidade da reação popular, que desembocou em um protesto social massivo em defesa dos direitos e dos bens comuns. Também não acreditavam na possibilidade de que um novo partido político fosse surgir e se consolidar, como o Libre (Liberdade e Refundação), cuja candidata presidencial, a ex-primeira-dama Xiomara Castro, lidera as pesquisas para as eleições de 24 de novembro.
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Sobre estes e muitos outros temas, Opera Mundi conversou com Victor Meza, ex-ministro do Interior e peça-chave da delegação que representou Zelaya na negociação pós-golpe. Ele também é diretor e fundador do CEDOH (Centro de Documentação de Honduras). No ano passado, o nome desse intelectual dedicado à política apareceu em alguns documentos enviados pelo então embaixador norte-americano Larry Palmer e publicados pelo Wikileaks.
Giorgio Trucchi/Opera Mundi

Meza: "A Honduras que temos hoje é uma consequência direta do golpe e é muito diferente da Honduras pré-golpe"

Neles, o diplomata o apontava como informante da embaixada norte-americana. Meza sempre combateu essa versão, denunciando a manipulação dos jornais hondurenhos e a tentativa de desprestigiá-lo ao fazer crer o envolvimento norte-americano no golpe.

Opera Mundi: Qual é a situação de Honduras quatro anos depois do golpe de Estado?
Víctor Meza: A Honduras que temos hoje é uma consequência direta do golpe e é muito diferente da Honduras pré-golpe. Antes de 29 de junho de 2009, o país tinha estabilidade interna relativa, com níveis de segurança alarmantes, mas ainda controláveis, com índices de crescimento econômico aceitáveis e com uma dívida interna manejável.
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A Honduras de hoje é exatamente o contrário. O país está submerso em sua pior crise de insegurança, com uma dívida interna incontrolável que constitui 43% da dívida total e alcança quase 40% do PIB (Produto Interno Bruto). É uma Honduras em crise institucional, com fortes conflitos sociais e a ponto de desembocar em um processo eleitoral que vai ser o mais complicado dos últimos 30 anos.

OM: Por que vai ser o mais complicado?
VM: Por vários fatores. Em primeiro lugar, porque se produz em condições pós-golpe, ou seja, em meio a uma nova polarização política e social no país. O enfrentamento já não vai ser entre os velhos adversários tradicionais da política hondurenha, mas entre golpistas e antigolpistas. Além disso, o sistema bipartidário, que foi uma das primeiras vítimas institucionais do golpe, deixou de existir. Hoje temos pelo menos três partidos grandes disputando o poder e nove partidos partícipes, algo que é absolutamente novo na história contemporânea de Honduras.
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Uma coisa é certa: as forças de ultradireita, concentradas em torno das elites conservadoras hondurenhas, que são, sem dúvida, as mais conservadoras da América Latina, estão pagando as consequências do golpe. Estão em um estado de verdadeiro pânico com a possiblidade de que o partido Libre, nascido das entranhas da resistência contra o golpe de Estado, possa triunfar nas próximas eleições.


OM: Se os efeitos do golpe foram tão negativos para esses setores, por que eles tomaram essa decisão?
VM: O golpe de Estado é o resultado do medo das elites conservadoras ante uma crescente dinâmica de inclusão social dos setores mais pobres. O projeto incentivado pelo governo de Zelaya não era uma projeto revolucionário, mas de justiça social elementar, que começou a tomar forma só depois da metade do período de governo.

A grande pregunta que nos fazíamos era como fazer com que um sistema desenhado para ser excludente se tornasse inclusivo. O governo esteve buscando formas de inclusão e de mobilização social, e o projeto da Quarta Urna   [Eleitores teriam que responder sim ou não à seguinte pregunta: "Está de acordo que nas eleições gerais de novembro de 2009 se instale uma quarta urna para decidir sobre a convocação de uma Assembleia Constituinte que aprove uma nova Constituição política?"] foi uma das expressões dessa busca. Queríamos que as pessoas deixassem de ser o objeto tradicional dos processos eleitorais, que participassem e começassem a se transformar em sujeitos sociais, com autonomia própria e com dinâmicas sociais mobilizadoras.

Isso provocou medo nesses setores da elite política e econômica do país, incentivada ideologicamente pelo fundamentalismo religioso e apoiada por militares herdeiros da Guerra Fria e congelados no tempo, que fingiam ser subordinados às autoridades democraticamente eleitas.

OM: Quais são as características dessas elites?
VM: São elites assustadas, pouco ilustradas e torpes, que recebiam com entusiasmo os conselhos dos grupos ultradireitistas de Washington, particularmente do lobby dos setores vinculados aos grupos exilados cubanos de Miami e aos grupos de venezuelanos antichavistas.

A combinação e a mistura desses elementos produzem essa aberração histórica que foi o golpe, gerando as consequências já mencionadas, isto é, a ruptura do bipartidarismo e o surgimento de uma terceira força política importante no país. Eles foram tão idiotas que não se deram conta que derrubando um governo constitucional geravam um novo cenário político, onde as novas dinâmicas sociais se traduziriam em novas opções políticas.
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Creio que ainda não entenderam o que significou realmente o golpe, nem o movimento social que foi gerado e que surpreendeu até mesmo o gabinete de Zelaya. Foi nosso maio francês.

OM: Ainda assim, o setor financeiro saiu ganhando com o golpe.
VM: O setor financeiro sempre sai ganhando. Desde 1990, este setor é o grupo econômico mais beneficiado da economia hondurenha. Esse grupo nunca perde, porque sempre aposta nos ganhadores. Durante o golpe foi o grupo que emprestou dinheiro ao governo de fato de Roberto Micheletti. Estamos falando de mais de US$ 2 milhões de diários e hoje este setor está cobrando com correção seu dinheiro e seus juros. É por isso que a dívida interna de Honduras se tornou incontrolável.

OM: Quais são os elementos que caracterizam a crise de segurança que está vivendo Honduras?
VM: É uma combinação de fatores. Em primeiro lugar, é uma crise determinada pelo crescimento alarmante das redes delinquenciais e do crime organizado em todo o país. Isto se traduz em incursão institucional, forte enfraquecimento das instituições estatais, incluindo as de segurança, e em um perigoso processo de erosão e evaporação da presença do Estado.

Honduras, por sua posição geográfica, tem três fronteiras terrestres e nove marítimas, e está muito exposta à presença do narcotráfico e do crime organizado, o que gera consequências muito graves em termos de violência. Além disso, a polícia hondurenha permaneceu 35 anos como uma unidade subordinada dentro da estrutura das Forças Armadas. É filha do militarismo e, por isso, tem uma profunda cultura militar e um grande déficit da cultura policial.

Isso faz com que um policial seja facilmente convertido em um órgão de repressão interna, sempre em busca de um inimigo para destruir e não de um cidadão para proteger. Essa polícia, militarizada culturalmente e corrompida institucionalmente, se transforma em uma arma contra a cidadania e não se reforma de dentro, é necessário reformá-la de fora, com vontade política, valentia, decisão e conhecimento.

Se a isso adicionamos um Ministério Público e uma Suprema Corte de Justiça em processo de contaminação política permanente, que os degrada e os torna ineficientes e corruptos, o resultado é uma crise de segurança nunca antes vista.

OM: Em vários setores da sociedade há uma forte preocupação pela crescente militarização da segurança pública.
VM: O militar está preparado para a guerra e educado para aniquilar o inimigo, não para proteger o cidadão. Pelo contrário, o policial deveria estar preparado para evitar a morte e proteger a vida das pessoas. Isto explica os altos níveis de virulência e brutalidade contra a população na reação da polícia depois do golpe. Foi quando vimos os policiais atuar pelo que são: apêndices dos militares. É por isso que devemos acelerar o projeto de uma reforma da polícia, para conseguir uma profissionalização que rompa, de uma vez, a cultura castrense, substituindo-a por uma cultura comunitária.
Giorgio Trucchi/Opera Mundi

Meza: em Honduras, "militar está preparado para a guerra e educado para aniquilar o inimigo, não para proteger o cidadão"

OM: Por que a depuração da polícia falhou?
VM: Por diversos motivos. A depuração começou de baixo para cima, enquanto deveria ser o contrário, isto é, começar a depurar a cúpula policial porque depois vai ser mais fácil depurar a base. Além disso, a depuração foi concebida como um processo muito grande, prolongado e lento, recoberto por um manto de sigilo que o tornou suspeitoso e pouco crível, tirando sua legitimidade pública.

Tampouco foi parte de um processo de reforma integral muito mais amplo, que incluísse uma mudança radical do sistema de seleção, nomeação, educação e promoção dos policiais. Visto somente como um componente isolado, o processo de depuração não impede que haja um retrocesso. É por isso que dizemos que se pode fazer uma depuração sem reforma, mas nunca uma reforma sem depuração.

OM: Quem ganha com o fracasso da depuração policial?
VM: Os primeiros que ganham são os atores vinculados ao crime organizado. São grupos informais factuais que operam na sociedade hondurenha, que têm influência, que financiam campanhas políticas, que controlam ligações importantes da economia e que influenciam o sistema institucional e político de Honduras.

São os primeiros beneficiários da ausência de uma real política de depuração e, por isso, são os que alimentam, estimulam e financiam a contrarreforma. Em meio a essa situação, temos de focar no tema da politização partidária e sectária das instituições. Na medida em que segue este processo, as instituições são inúteis.

Temos um Estado paquidérmico, lento, contaminado, vulnerável, que, em vez de caminhar, avança quase se arrastando, incapaz de enfrentar o desafio da insegurança.

É preciso mudar toda a estrutura do sistema e não apenas reagir frente à conjuntura aprovando novas medidas e novas leis, ou mudando pessoas. É por isso que a consigna é a Assembleia Nacional Constituinte, para refundar um Estado que está projetado para não mudar e perpetuar o status quo.

OM: Que papel está tendo os Estados Unidos em Honduras?
VM: Os EUA são um país que tem sua própria agenda e suas prioridades em termos de segurança. Pela importância estratégica que tem nosso país para Washington, frequentemente a agenda de Honduras fica submetida a dos EUA e muitas vezes as prioridades dos países não coincidem.
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Os norte-americanos, por exemplo, privilegiam a formação de grupos de elite de forças-tarefa e já há uns 10 grupos dentro da força de segurança hondurenha controlados, dirigidos e estruturados pelos EUA. Quando Honduras quer projetar e colocar em prática uma agenda própria, inevitavelmente entra em choque com estas tendências e prioridades norte-americanas.

Além disso, durante os anos 80, a política norte-americana deixou Honduras como um território povoado por habitantes e não um país povoado por cidadãos. A situação foi mudando pouco a pouco a partir dos anos 80, mas o golpe deu um impulso inesperado a esse processo e gerou uma dinâmica de vocação cidadã como nunca antes vista. Esta situação preocupa os EUA.

Espero que o país tenha a capacidade de buscar e construir uma relação relativamente respeitosa com um possível governo de Xiomara Castro, assim como de cooperação mais intensa a nível econômico.

A Honduras de hoje é consequência da assinatura do Acordo Tegucigalpa-San José Diálogo Guaymuras, que levou a diversificar o sistema político e a enterrar o velho equilíbrio no país. Com uma dose suficiente de pragmatismo, os norte-americanos vão ter de saber negociar esse processo de construção de um novo equilíbrio, que suporte a aceitação de um terceiro convidado à mesa.

OM: Como vão ser as eleições de 24 de novembro?
VM: Eleições difíceis e complicadas, com um sistema eleitoral projetado para dirigir a disputa entre duas forças políticas iguais e sem diferenças ideológicas e com um aparato militar e de segurança que foi parte do golpe. Agora, a situação mudou e esse sistema eleitoral não está preparado. Sinto que o povo está mais acordado, mais exigente, com demandas sociais mais consistentes. Há um desejo de se expressar nas urnas para se vingar do golpe. 
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