quarta-feira, 24 de julho de 2013

Álvaro Cunhal....e "renovadores", etc

A revelação do oportunismo (*)
(A propósito da obra de Memórias de Carlos Brito sobre Álvaro Cunhal)

José Manuel Jara
16.Jul.13 :: Outros autores
O pretendido «testemunho» sobre Álvaro Cunhal é o fundo onde se reflecte a própria figura política de Carlos Brito de hoje, distanciado das ideias e lutas longamente partilhadas na militância comum no PCP.


Poderia considerar-se ultrapassada a utilidade de uma análise sobre o livro «Álvaro Cunhal, sete fôlegos de um combatente» (Edições Nelson de Matos, 2010), da autoria de Carlos Brito, já que a sua edição data de 2010. Mas a actualidade de uma crítica de base ideológica, se for fundamentada, não será menos válida agora. O facto de no ano em curso se comemorar o centenário de Álvaro Cunhal é um motivo acrescido para esta leitura crítica.
Outro facto de algum destaque sobressaiu na recente comemoração do aniversário de Carlos Brito (Público, 10-02-2013), onde entre convivas estiveram muitos ex-militantes do PCP, com destinos muito variados (PS, BE, «renovadores», etc.), e algumas figuras históricas do PS, o líder da UGT, e, de passagem, o próprio Secretário-geral do Partido Socialista, António J. Seguro. Jorge Sampaio, no seu discurso de elogio do festejado, marcou, com alguma ironia, falta ao PCP: «Eu gostaria de ver aqui algum dirigente do PCP, partido a que Carlos Brito dedicou 48 anos…». A importância de Carlos Brito como figura pública acolhida em tão grata celebração torna mais justificada a avaliação do seu actual pensamento, objectivado na escrita. E nada melhor que o seu livro sobre Álvaro Cunhal para o exame.
Carlos Brito pretende fazer um trabalho de memórias, um testemunho sobre Álvaro Cunhal. Não uma biografia deliberada, mas impressões, opiniões e citações recolhidas ao longo de décadas de convívio e de actividade partidária. O que é mais interessante na obra não serão tanto as ideias de Carlos Brito sobre a personalidade de Álvaro Cunhal, mas a sua narrativa da história da revolução portuguesa iniciada em 25 de Abril (e da contra-revolução), os instrumentos ideológicos da sua análise política e a sua filosofia espontânea. O pretendido «testemunho» sobre Álvaro Cunhal é o fundo onde se reflecte a própria figura política de Carlos Brito de hoje, distanciado das ideias e lutas longamente partilhadas na militância comum no PCP. Ciente da dificuldade em manter alguma isenção e objectividade na sua história para «preservar essa memória», o autor diz querer evitar a um tempo «falsas construções apologéticas» e «póstumos ajustes de contas demolidores» (p. 15). E justifica os cinco anos volvidos depois da morte de Álvaro Cunhal para dar à luz o livro, assim: «Foi o tempo de sarar as feridas dos combates internos no PCP, no final do século passado, em que ficámos em campos opostos». O problema é que as feridas produziram cicatrizes que nenhum tempo desta vida poderá apagar. Vê-se como são bem distintos os campos…
O último capítulo do livro, «A despedida» (p. 353), é o mais breve, apenas uma página. Carlos Brito reconhece aí que o «Funeral de Álvaro Cunhal constituiu uma das mais impressionantes despedidas de que há memória no país». Com alguma contrariedade mal disfarçada comenta: «Logo se falou da capacidade de mobilização do PCP. Contribuiu, naturalmente, mas (…)». A longa distância que separa Carlos Brito de Álvaro Cunhal mede-se pela justificação contraditória que o apazigua na sua divergência: «O povo que não seguiu o líder na sua política como ele ardentemente desejava…» E, mais adiante, socorre-se de uma citação do escritor politicamente conservador Jorge Luís Borges para ajustar as suas ideias à «espantosa» homenagem prestada pelo povo português a Álvaro Cunhal: «Há na derrota uma dignidade que dificilmente pertence à vitória.» Interessante é constatar que outro dissidente, Raimundo Narciso, agora a militar no PS, comece, ao invés de concluir como Carlos Brito, o seu testemunho sobre «Álvaro Cunhal e a dissidência da terceira via» (Editora Âmbar, 2007) com o mesmo tema: «As centenas de milhares de pessoas no funeral, uma homenagem de pesar jamais vista em Portugal». E, sem se aperceber da gritante inconsequência, logo de seguida diz que o seu «livro é o testemunho de quem viveu o apogeu e o declínio da obra de Álvaro Cunhal» (p. 11)
A confusão entre desejos e realidades transparece tanto num como noutro. A pessoa morre, mas a obra e o exemplo não declinam! Porque a história não é o fim da História como se chegou a pretender. E contrariamente aos desistentes, aos dissidentes que reviram e reviraram os seus ideais, mudando ou não a etiqueta, o PCP mantém-se o partido das classes trabalhadoras, comunista e revolucionário. Não deitou fora a teoria marxista-leninista como o incitavam, não mudou a sua identidade por pressões externas e soube preservar a sua força nas lutas que trava em defesa dos explorados.
Como escreveu Brecht: «Há os que lutam um dia e são bons (…)/Há os que lutam toda a vida e são imprescindíveis».
O testemunho de Carlos Brito sobre a Revolução de Abril
O texto de Carlos Brito insere-se por vontade do autor no centenário da I República, mais a mais tendo sido editado em 2010. O que é surpreendente é o autor misturar na dedicatória a sua legítima homenagem à República com a referência a Álvaro Cunhal como «uma das figuras do século que prezou como poucos o espírito republicano». Equívoca referência expressa com algum cinismo ou uma clara amnésia de todas as referências políticas e ideológicas do PCP sobre o que foi a I República. Lembremos apenas, por descargo de consciência: «Foi característica e fraqueza da República de 1910 a não realização de profundas reformas sociais. Isso deve-se fundamentalmente a que de 1910 a 1920 o poder esteve exclusivamente nas mãos da burguesia liberal» (intervenção perante o tribunal fascista, 2 de Maio de 1950, in A defesa Acusa, 1975, Edições «Avante!»). A intenção de Carlos Brito terá sido fazer jus à sua moderação republicana de hoje, mas não havia necessidade de aí inserir Álvaro Cunhal…
No capítulo do livro de Carlos Brito sobre o derrubamento do fascismo, «Estratégia da vitória e suas vicissitudes» (cap. III, da 1.ª parte) revelam-se alguns traços do estilo do autor. Começa por fazer um elogio rasgado a Álvaro Cunhal, dizendo que «a luta para libertar Portugal da ditadura fascista foi a causa que mais notabilizou Álvaro Cunhal» (p. 65), como grande estratega dessa luta. O Relatório ao Comité Central do PCP (1964),Rumo à Vitória, redigido por Álvaro Cunhal, foi a base do Programa da Revolução Democrática e Nacional (aprovado no VI Congresso do PCP, em 1965), que virá a ser um importante contributo para o processo revolucionário iniciado em 25 de Abril. De tal modo Carlos Brito destaca o papel individual de Álvaro Cunhal que acaba por minimizar o do próprio partido comunista, como se este fosse uma emanação do Secretário-geral. Aliás, ao longo do livro, esse estratagema irá ser constante.
Em contraste com esta opinião, para o período em que se aproxima o «25 de Abril», Carlos Brito passa a narrar o seu próprio papel individual na história. Em vez de uma visão íntegra da acção partidária, entre os organismos sediados no interior do país e o Secretariado do PCP, colocado no estrangeiro por segurança estratégica, Carlos Brito faz ressaltar a sua maior clarividência sobre a eminência da acção militar, tentando contrapor o Partido no «interior» à direcção no «exterior». Em resposta ao seu alegado optimismo, objecto de informação por si enviada à direcção do PCP (não documentada), destaca a sua desilusão com as respostas da direcção: «Com grande espanto meu, a resposta que veio de Paris era não só de grande cepticismo em relação à informação como cheia de recomendações para que estivéssemos alerta com tendências aventureiristas e putchistas dos militares que podia prejudicar a luta popular e democrática» (p. 73). A argumentação de Carlos Brito, contraposta à chamada de atenção da direcção sobre riscos plausíveis, só pode exprimir a sua ânsia de protagonismo pessoal.
O que é mais grave ainda é a flagrante deturpação do sentido do documento da Comissão Executiva do CC do PCP, emanada na 2.ª quinzena de Março de 1974. Carlos Brito ressalta no documento apenas a parte seguinte: «O governo e o regime não cairão por si próprios, nem tão-pouco pela acção de uma dezena de oficiais do exército, mesmo que corajosos e patriotas. A sublevação de Março (golpe das Caldas) mostra-o mais uma vez.»
Carlos Brito conclui apressadamente que este parágrafo é revelador da «expressão acabada e pública do preconceito antimilitar que ainda persiste no núcleo central da direcção do PCP, nas vésperas do 25 de Abril» (p. 74). Ora, Carlos Brito esqueceu-se de transcrever o parágrafo seguinte do mesmo documento que diz o seguinte: «Para derrubar o fascismo é necessário promover um levantamento nacional, uma insurreição popular armada com a participação das mais vastas massas populares e duma parte das forças armadas.» Aliás, note-se, estas afirmações estão incluídas num capítulo deste documento da Comissão Executiva do Comité Central, o último que antecede o 25 de Abril, cujo título é o seguinte: «A crise do regime estende-se às forças armadas». No último capítulo do documento «Unir, Organizar e Lutar», é proclamado o seguinte, para tirar quaisquer dúvidas: «Os soldados e marinheiros, os sargentos e oficiais honestos, todos os verdadeiros patriotas das forças armadas (incluindo os homens honestos da PSP, GNR e GF), todos devem ser atraídos ao exército político que derrubará o fascismo.» (in Documentos do Comité Central, 1965/74, pp. 434-436)
A revisão da história desmente-se numa penada. O lugar do PCP no 25 de Abril, antes e depois, está bem documentado. Só faltava que Carlos Brito pretendesse que a direcção do PCP fosse o Estado-Maior da sublevação…
Na senda desta linha de rumo, Carlos Brito irá discorrer num esforço de preciosismo semântico para levar a água ao seu moinho. À cata de contradições formais, Carlos Brito vai fazer a leitura da obra de Álvaro Cunhal, citando (p. 79), o seguinte, a propósito do 25 de Abril: «…todo o mundo falou num golpe militar. O PCP nunca aceitou tal definição. A própria acção revolucionária não foi um “golpe”, mas um “levantamento.”» (Álvaro Cunhal, A Revolução Portuguesa. O Passado e o Futuro, p. 57). Por este modo original visa dar uma bicada póstuma no documento, datado de 26 de Abril de 1974, do Secretariado do Comité Central do PCP sobre o Movimento Militar do 25 de Abril. Diz Carlos Brito: «Não admira que Cunhal, na vertiginosa aceleração da revolução portuguesa, tenha esquecido o que ele próprio escreveu (no documento acima referido), e que foi isto – «O golpe militar culmina o agravamento da crise do regime.» E, um pouco mais à frente: «O golpe militar é ao mesmo tempo a expressão da adesão de parte importante das forças armadas às reclamações democráticas fundamentais do povo português.» (in Carlos Brito, p. 79). Nesta passagem insiste na ideia de que era «uma maneira de (Álvaro Cunhal) meter o (golpe militar) dentro da estratégia definida pelo PCP, nomeadamente no Rumo à Vitória.»
Pelo que aqui se vê, a divergência calada de Carlos Brito em relação à direcção do PCP e em relação ao papel de Álvaro Cunhal vem de longa data, embora, ao que se sabe, tenha levado um longo tempo a eclodir como dissidência.
Para remate desta parte convém lembrar a obra de Álvaro Cunhal, A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril (Edições «Avante!», 1999), precisamente sobre «O dia 25 de Abril»: «A nosso ver, a acção militar do dia 25 de Abril começou por ser um golpe militar, mas no desenrolar dos acontecimentos o golpe foi ultrapassado no próprio dia. (…) «O golpe militar dos capitães do MFA no dia 25 foi determinante, mas não foi, nesse dia, o único acontecimento revolucionário importante. Dois outros acontecimentos lhe sucederam: um levantamento militar, no qual, em várias unidades, eclodiram iniciativas próprias imediatas com desenvolvimentos autónomos, de oficiais, sargentos, soldados e marinheiros; e quase simultaneamente, um levantamento popular, com vastíssima mobilização e intervenção das massas populares. O levantamento militar e o levantamento popular imprimiram aos acontecimentos um processo próprio e uma nova e revolucionária dinâmica.» (p. 102)
O pensamento dialéctico não se prende a uma fôrma, desenvolve-se de modo criativo, serve-se dos termos não para um preciosismo de opinião, mas para melhor desenvolver os conceitos necessários para explicar e apreender de modo concreto as verdades da vida, neste caso, do início auspicioso da Revolução de 25 de Abril. O formalismo abstracto, ao serviço de uma argumentação sofistica, aferra-se às palavras sem aprofundar o conhecimento do real no seu processo contraditório.
O processo revolucionário e a original tese dos «sete fôlegos»
A tentativa de explicação de Carlos Brito da táctica e estratégia do PCP no processo revolucionário iniciado em 25 de Abril irá centrar-se, como adiante demonstramos, em Álvaro Cunhal. De tal modo, que o próprio partido comunista, o grande colectivo, o partido histórico da classe operária e dos trabalhadores, vector principal da luta antifascista e vanguarda do movimento popular da Revolução de Abril, se vê caricaturalmente reduzido a correia de transmissão do pensamento de Álvaro Cunhal. A magnificência do Secretário-geral é um estratagema retórico para personalizar a sua crítica, enquanto o próprio se distancia do processo como se não participasse das mesmas lutas e objectivos. O narrador Carlos Brito de hoje está visivelmente divorciado do outro Carlos Brito, combatente no processo revolucionário.
Na terceira parte do livro de Carlos Brito, «Carisma e singularidades», o pensamento do autor tem uma expressão sintética no pequeno capítulo «O ideólogo e a ideologia» (pp. 343-351). Em que consiste então a tese original de Carlos Brito sobre as tácticas e a estratégia do PCP, antes e depois do 25 de Abril?
A fórmula inventada por Carlos Brito é de tal maneira valorizada como uma chave universal que figura no título do seu livro: «Os sete fôlegos do combatente». O que são os «fôlegos»? Diz Carlos Brito que as iniciativas e propostas políticas inovadoras de Álvaro Cunhal, em vários períodos da história, desde a década que antecede o «25 de Abril», são precedidas pelo que designa «um sobressalto ideológico» a que se seguem as medidas políticas. A «teoria» dos «fôlegos» figura como uma grande originalidade ideológica de Carlos Brito na análise do papel de Álvaro Cunhal na Revolução. E entretém-se a contar os ditos «fôlegos»… Escreve assim: «Foi o primeiro, (segundo, terceiro, até ao sétimo), fôlego que lhe conheci.» A depreciação está contida subtilmente na formulação, como se a táctica e a estratégia do PCP, em que Álvaro Cunhal teve um papel determinante como Secretário-geral, fosse ditada como a resposta a um «sobressalto», adjectivado de ideológico, não o fruto de uma profunda reflexão e aturado estudo envolvendo o Partido, na prática e na teoria. Carlos Brito parece não alcançar, como se vê pela sua caricatura, a complexa ligação entre teoria e prática na acção e luta do partido comunista, guiado pelo marxismo-leninismo.
Quais os fôlegos «contados» e «conhecidos» por Carlos Brito, no seu posto de observação? O «primeiro» foi a «Revolução Democrática e Nacional; o «segundo», o que chama o «recuo programático do VII Congresso do PCP (depois da derrota do golpe de estado spinolista); o «terceiro», «o avanço impetuoso do 11 de Março de 1975», «não isento de excessos…» (Carlos Brito dixit); o «quarto», «A linha conciliatória do comité central de Alhandra, Agosto de 1975»; o «quinto», «A valorização revolucionária da Constituição da República», aprovada após o 25 de Novembro; o «sexto», «A teoria do campo social politicamente vazio», formulada em 1983 (génese do PRD); o «sétimo» fôlego, «A ideia da democracia avançada no limiar do século XXI».
Ressalta a qualquer leitor atento que o fundamento da teoria de Carlos Brito não tem consistência, pois é apenas um artifício descritivo que visa banalizar o significado do que ele próprio chama a «Versatilidade táctica e constância estratégica» de Álvaro Cunhal e do PCP. Que significado tem meter no mesmo saco o Programa da «Revolução Democrática e Nacional» e o que chama de «teoria do campo socialmente vazio»? E como explicar como um «fôlego», depois de um «sobressalto», o «Programa da democracia avançada»? Carlos Brito (p. 251) rotula este programa como «um bom lema», uma «boa ideia» para o Congresso… O que é programático, de longo curso, é objecto de um tratamento equivalente a viragens de orientação conjunturais, pela confusão de Carlos Brito entre táctica e estratégia. Mas a intenção é, como se disse, conotar com o subjectivismo e o voluntarismo a linha definida pelos órgãos dirigentes do Partido e pelos Congressos, antes e depois da Revolução de Abril.
O estilo narrativo de Carlos Brito, com opiniões pouco fundamentadas, à mistura com factos objectivos, dá uma perspectiva confusa da revolução e da contra-revolução. A mais clara omissão, no entanto, numa visão geral da sua obra, é a sua minimização do inimigo de classe, da própria luta de classes e dos movimentos de massas, do adversário político, do golpismo de direita, do terrorismo fascista, do «socialismo» de cartaz e do esquerdismo pseudo-revolucionário.
A revolução, na convergência e aliança do Movimento das Forças Armadas e do movimento popular, desafia e vence muitos obstáculos e traições. Progride. Conquista parte do poder, afronta o grande capital e o latifúndio, e parece por um período vencer. Depois, o processo recua, sofre derrotas. A dinâmica revolucionária é interferida pelo eleitoralismo, após a eleição da Assembleia Constituinte. Os militares de Abril dividem-se, reflexo das divisões ideológicas e políticas da sociedade «civil». Depois, o golpe de 25 de Novembro, num compromisso entre a facção moderada dos militares de Abril, o PS e as forças mais reaccionárias, vai abrir caminho à reconstituição do poder económico do grande capital e à destruição da reforma agrária pelo governo de Mário Soares do PS sozinho, em 1976, e depois aliado aos partidos da direita parlamentar.
A descrição do processo pelo Carlos Brito historiador parece estar revestida por uma crítica implícita ao empenho revolucionário do PCP na luta contra o grande capital, como se fosse esse ímpeto o causador dos recuos da revolução. Se a revolução não avançasse, que significado teria o recuo, diria Monsieur de La Palissse. Curiosamente, no entanto, na fase conturbada, pós-eleitoral, depois do PS ter sido o partido mais votado para a Constituinte, as provocações que surgem no caso do jornal República e no caso da Rádio Renascença, focos para propaganda contra o PCP sob o lema da ameaça comunista contra as liberdades e a Igreja, são referidas por Carlos Brito como não tendo tido «interferência directa» do partido (p. 156). Nem directa, nem indirecta, foram severamente reprovadas pelo PCP! Ora, sabe-se que os grupos esquerdistas foram os responsáveis por essas e outras acções desastrosas que contribuíram para a derrota da revolução. O autor omite estranhamente esse dado.
Outro facto que merece ser comentado. Carlos Brito e Raimundo Narciso foram destacados pela direcção do PCP para reunir com a FUP (Frente de Unidade Popular). Desse encontro saiu uma declaração conjunta, que Carlos Brito considera ter sido beneficiada na redacção e expurgada dos «esquerdismos mais acentuados» (p. 176). Qual não é a sua desilusão ao ver a sua acção criticada por Álvaro Cunhal e rejeitada depois pela Comissão Política. Confessa Carlos Brito: «O que me disse em substância (A. C.) é que eu tinha envolvido o partido num compromisso com o esquerdismo, que ia ao arrepio da orientação aprovada pelo comité central e que prejudicava seriamente as pontes que estávamos a lançar com os “nove”». (p. 177) Adverte-lhe Álvaro Cunhal: «Encontrarmo-nos é uma coisa, atrelarmo-nos a uma organização esquerdista que nos quer impor a sua disciplina é outra». E adiante: «A tua FUP assenta numa concepção sectária de exclusão dos “nove” considerados fora do processo.»
Este flirt radicalista de Carlos Brito destoa de resto de toda a sua proverbial moderação, bem visível pelo séquito que o vem homenagear no seu aniversário, volvidos 38 anos. E destoa também do esforço que faz para salientar as divergências ideológicas entre Álvaro Cunhal e o Major Melo Antunes, «o ideólogo» do MFA, divergências que atribui ao facto de, na «esfera da ideologia», o pensamento de Álvaro Cunhal se mover «com maior rigidez» (!) (p. 165). E, com certeza, o pensamento do Major não…
Outro aspecto que merece reparos é a questão da Constituição, território de excelência em que Carlos Brito, como parlamentar, se movia com grande à vontade. Carlos Brito acha que embora Álvaro Cunhal tivesse colaborado no projecto de Constituição do PCP, «não era uma tarefa que encantasse o secretário-geral». E acrescenta que Álvaro Cunhal terá afirmado que «o peso da lei é decidido pela correlação de forças em cada momento.» (p. 207 e 208). Tudo isto para «contar» mais um «fôlego» de Álvaro Cunhal, quando este, diz Carlos Brito, «reconhece repentinamente» o conteúdo progressista do projecto constitucional e se «torna um dos maiores, senão o maior apologista da Constituição» (p. 205). Carlos Brito quer dizer, com toda a modéstia, que viu antes, como nas vésperas da revolução, o que o Secretário-geral só viu depois dele. A crítica de Carlos Brito a Álvaro Cunhal por se empenhar em tantos trabalhos e na elaboração de muitos dos textos do Partido é aqui virada do avesso. Por ter confiado no bom trabalho dos camaradas deputados constitucionalistas, leva uma repreensão.
A «contra-revolução legislativa», iniciada pelo primeiro governo constitucional do PS, dirigido por Mário Soares, iria fazer marcha à ré nas conquistas da revolução e nas suas garantias constitucionais. A «recuperação capitalista, agrária e imperialista», é citada por Carlos Brito como «a fórmula rigorosa e cantante que Cunhal inventou para repetida e sistematicamente a denunciar». A ironia de Carlos Brito detecta-se bem na atribuição a Álvaro Cunhal do invento da fórmula «cantante»… A «cassete» incomodava porque era a verdade. Eis a questão da correlação de forças a aparecer em força, como previu Álvaro Cunhal, que não inventou nada.
O Partido Socialista, numa Assembleia com maioria de esquerda votada pelo povo português, em liberdade, desfraldou a sua verdadeira bandeira, a da restauração do capitalismo. Quem se enganou?
Do livro A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril (Edições «Avante!», 1999) vale a pena ler e reflectir sobre este extracto: «Mesmo em tão complexas situações, mesmo quando, com a extinção do MFA, a revolução ficou privada do apoio militar, o Processo Revolucionário impulsionado pela sua dinâmica própria teve força bastante para continuar ainda com novas realizações. Esta realidade contraditória tornou-se possível, porque se é certo que a revolução acabou por ser vencida, nunca se rendeu.» (p. 269)
E ainda, Álvaro Cunhal, contra o derrotismo como atitude dos vencidos da vida:
«…A revolução de Abril é até hoje o mais alto momento da história do nosso partido.» (Duas Intervenções numa Reunião de Quadros, Edições «Avante!», 1996, p. 34) E mais adiante: «A participação na Revolução de Abril e nas transformações políticas, económicas e sociais é o grande momento de realização do nosso Partido na luta por objectivos que propôs e conseguiu em grande parte levar a cabo. É uma experiência que não morre. Este é um ponto importante da história do Partido, para a luta ideológica, para os problemas que hoje estão em discussão no mundo.» (p. 36)
Para Carlos Brito, pelo contrário, o essencial foi fazer a errata da revolução nas suas memórias de ex-combatente.
O Partido, eis a questão
Na obra de Carlos Brito tem um particular destaque a história de todo o processo de contestação dentro do PCP, que surge nos finais dos anos oitenta e se irá arrastar por mais de uma década, até ao ano 2002. No texto de Carlos Brito é o chamado «Ensaio renovador sob duas tempestades» (2.ª parte, cap. II, p. 253), onde consta a matéria sensível das divergências políticas não já apenas sobre orientações sobre o processo da revolução, mas sobre a própria constituição e orgânica do Partido. Os protagonistas dessas tendências constituíram-se em grupos e facções. De um modo geral estes grupos reclamaram uma espécie de «perestroika» nacional, influenciados pelos acontecimentos nos países socialistas da Europa de Leste e a URSS. A derrota do socialismo nesses países é uma das «tempestades» da metáfora de Carlos Brito. A outra é o «movimento de contestação dentro do partido».
Tudo isto acontece num contexto de vitória da direita em Portugal, com a maioria absoluta de Cavaco obtida em 1987. Brito sintetiza bem, que uns («Os seis» e Zita Seabra) actuaram mais «no terreno da crítica e das declarações públicas», enquanto o outro (a «terceira via») privilegiou a crítica interna, incluindo as reuniões do Comité Central. E diz que o Secretário-geral teve que enfrentar «um vendaval de contestação.» (p. 253)
Carlos Brito refere com franqueza as suas amizades por elementos dos dois grupos, tanto do convívio parlamentar como na direcção do Partido. Mas esclarece, seguro de si, que não teve qualquer espécie de ligação, nem com o grupo dos «Seis», nem com a «terceira via». E afirma o seguinte: «nem da parte deles houve qualquer tentativa para me envolverem na conspiração, julgo que por respeito pelos cargos que desempenhava na Comissão Política e como líder parlamentar do Partido.» (p. 271) Diremos que a «renovação» se confessa, com posições em várias instâncias, por dentro e por fora, em ato e em potência.
Sendo este o miolo da questão do Partido, convém dar a palavra a Carlos Brito: «No fundo concordava com algumas ideias que tinham avançado tanto no plano político, como do funcionamento interno do Partido e tinha bastante apreço pelos camaradas mais em destaque nos dois movimentos contestatários. Mas na altura eu estava convencido de que o processo renovador do Partido era imparável e que se faria a partir dos próprios órgãos estatutários, a começar pela Comissão Política.»
Cada um, a seu modo, calculava como dar a volta ao colectivo, por fora ou por dentro, de cima ou de baixo. Carlos Brito terá ficado expectante. Mas já não se conteve perante as medidas estatutárias tomadas contra os elementos que subverteram todas as regras de funcionamento do Partido, em «movimentos de contestação» e «conspiração» (palavras de Carlos Brito!). A brandura com que Carlos Brito encara a rebelião, além de traduzir um laxismo incompreensível para uma figura tão destacada da direcção, é forte indício de complacência e inconfessada conivência. A quebra clara da disciplina partidária é um evidente desrespeito pelas normas do Partido. Não se tratava de uma «conspiração»?!… Carlos Brito faz o papel de bom, de tolerante, esquecendo a sua obrigação de fazer cumprir os estatutos do Partido.
A prova real da total desafeição ao PCP e à ideologia comunista por parte da quase totalidade dos membros que romperam veio a confirmar-se pouco tempo depois, quando muitos emigram bem depressa para lugares de relevo no PS (e até no PSD), sem qualquer pudor, ávidos de pertencer à «classe política» regente. E sobre isto, Carlos Brito nada diz. Se estes elementos tivessem levado de vencida os seus projectos teríamos certamente em Portugal um irmão gémeo do PS, com uma bandeira quiçá mais encarnada, para ajudar a festa comum da social-democracia.
Aplicando a conceptualização do autor, diremos que foi este o primeiro fôlego do projecto denominado de renovação do PCP, mas, de facto, projecto de liquidação do Partido. À escala internacional, tenha-se em vista, como exemplo, que a restauração do capitalismo nos países da Europa de Leste e na URSS, foi iniciada com o lema de mais democracia e socialismo: fingir aperfeiçoar para perverter e subverter o sistema. No trânsito de alguns partidos comunistas europeus, do «eurocomunismo» até à sua liquidação total, não se revelou logo na primeira muda a metamorfose final. Este tema é tratado no Prefácio de Álvaro Cunhal, de Julho de 1997, à reedição do Informe ao IV Congresso do PCP. (O Caminho para o Derrubamento do Fascismo, Edições «Avante!», 1997)
No anexo do livro de Carlos Brito está inserida a sua carta à direcção do Partido de Março de 2000, cuja difusão pública viria a ser efectuada pela Visão de 31-08-2000. É o epílogo da divergência provada até à dissidência confirmada, num longo caminho de mais de uma década. Aí Carlos Brito diz, com todas as letras: «Não se trata de recuar no carácter comunista do partido, mas de torná-lo mais comunista.» Esta lengalenga é proverbial, já vem de longe. É raro que a divergência não se vista com as cores da ideologia, mesmo quando é só décor. É o segundo e último fôlego de Carlos Brito, na terminologia da sua ciência política, virada contra si neste golpe de retórica.
Este fôlego foi precedido por um sobressalto ideológico, que se manifestou por um «Novo Impulso» e um «Pacto de Insubmissão», manifestando a guinada desejada e a rebeldia consumada, mas sem sequência. Como um impulso insubmisso mas efémero. Carlos Brito diz que «a iniciativa renovadora que teve expressão concreta no “Novo Impulso” (…) não tinha nada de social-democratizante» (p. 311). E acrescenta: «Aliás o tempo encarregou-se de mostrar que “os renovadores” mais destacados de 1998, 1999 e 2000, ao contrário do que aconteceu com os participantes de outros movimentos críticos anteriores, não tiveram uma evolução no sentido da social-democracia, mantiveram-se comunistas (…).” E acrescenta que alguns fundaram a «Associação renovação comunista», outros aderiram ao Bloco de Esquerda ou permaneceram independentes.
É o reconhecimento de que aprenderam a refrear o impulso dos que os antecederam, numa conjuntura em que a máscara de esquerda do PS tinha caído. O nome da coisa, «a Associação», conserva o nome de «comunista». Não é portanto renovado o nome, mas a identidade é incerta, bem-vinda pelos dissidentes das primeiras vias e pelos sócios do «socialismo» da II Internacional. Se seguirmos Carlos Brito, inspirador e guia da Associação referida, a originalidade dos seus propósitos seria, caso vingasse, de «libertá-lo (ao PCP) do derrotado marxismo-leninismo» e do «centralismo-democrático» (…), p. 311.
A associação «renovadora comunista» lá vai emitindo pareceres, um ou outro comentário insubmisso, e a comemoração de uma data festiva ou um jantar de amigos. Numa coisa desta dimensão e com finalidades recreativas e de clube de discussão, não serve de facto para nada o centralismo-democrático. Não é uma questão de partido, muito menos de partido comunista.
A questão do Partido está na unidade da teoria e da prática, está na vinculação orgânica à classe operária e às classes trabalhadoras, está na capacidade de direcção da luta das classes exploradas em todos os planos, por uma sociedade sem exploradores nem explorados, está na firmeza das ideias e na independência em relação ao capital, está na unidade na acção e trabalho do colectivo sob uma direcção unida. Centralismo e democracia, conjugados.
Diz Álvaro Cunhal no tema sobre «Marxismo-leninismo» do livro Duas Intervenções numa Reunião de Quadros: «Nós vemos na realidade do nosso país e na realidade mundial que temos razão para actualizar e desenvolver alguns destes conceitos fundamentais do marxismo-leninismo sem termos de nos arrepender de fazer essa análise criativa, procurando responder às situações novas e aos novos fenómenos, mas mantendo ideias e conceitos e métodos de análise essenciais do marxismo-leninismo.» (Edições «Avante!», 1996, p. 62)
E noutro texto, o prefácio datado de Julho de 1997 (reedição de O Caminho para o Derrubamento do Fascismo, Álvaro Cunhal, Edições «Avante!»), escreve como síntese da pugna pela identidade do Partido, que foi o campo de duras lutas: «Daí a definição de duas características identificadoras dos partidos comunistas e do movimento comunista em geral. Uma, a completa independência dos interesses, da política, da ideologia, das pressões, ameaças e medidas repressivas das forças do capital. Outra, a par da luta com objectivos imediatos, a luta pela transformação revolucionária da sociedade, pelo socialismo e o comunismo.» (p. 48)
A revisão preconizada não é a teoria nova, não é a transformação criativa do marxismo. É a cedência em toda a linha. É o abdicar, é rever os princípios. É a nova mensagem para agradar ao adversário. É o desapego da luta de classes, é o parlamentarismo como fim em si. Era, até há bem pouco, a visão idílica da Europa…com todos. O oportunismo é um derrotismo histórico reformista. Mesmo que o embrulho seja em papel de cor vermelha.
(*)Este artigo foi publicado em “O Militante” nº325, Jul/Ago 2013
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