quinta-feira, 23 de maio de 2013

A quem serve a MP dos Portos?

A quem serve a MP dos Portos?
A principal consequência da MP 595 – e a mais nociva – é a possibilidade de prestação de
serviço público de exploração de portos por empresas privadas sem licitação. Ele
põe fim ao modelo vigente, conhecido como 'Land Lord Port', que tem apenas 20
anos de implantação e é praticado em todo o mundo. O artigo é de José Augusto
Valente e Samuel Gomes
Por José Augusto Valente e Samuel Gomes*
Na primeira metade deste século, o PIB brasileiro cresceu em níveis próximos aos
níveis mundiais. A corrente de comércio exterior brasileiro passou de US$ 100 bilhões
para US$ 480 bilhões, a movimentação de contêineres elevou-se de 2 milhões para 5,3
milhões e o Brasil teve crescimento no comércio exterior maior que a China e muito
maior que os Estados Unidos e Alemanha, no período 2009-2011. Como 95% do
comércio exterior brasileiro se dá através dos portos, é razoável imaginar que o marco
regulatório do setor tenha contribuído para esta performance. Apesar disso,
surpreendentemente o país é sacudido por uma “urgência”: a imediata e radical
substituição do “caótico” modelo portuário brasileiro, acusado de ser a causa de
“gargalos” e responsável pelo “custo Brasil”. Esta “evidência” ocupa as manchetes dos
principais jornais, as capas das grandes revistas e
ganha
espaços crescentes nos
telejornais e rádio-jornais.
Coincidindo com o repentino alarido da mídia, o governo atua junto ao Tribunal de
Contas da União para impedir o julgamento de processo TC-015.916/2009-0. A base do
julgamento seria o robusto relatório da SEFID – Secretaria de Fiscalização de
Desestatização e de Regulação que, consolidando anos de extensa e profunda
investigação, relatório concluía pela inconstitucionalidade e ilegalidade da prestação de
serviço público sem licitação pelos terminais de Cotegipe (BA), Portonave
(Navegantes/SC, processo administrativo iniciado em 1999), Itapoá/SC (processo
iniciado em 2004) e Embraport (Santos/SP, processo iniciado em 2000) e declarava a
leniência fiscalizatória e regulatória da ANTAQ – Agência Nacional de Transportes
Aquaviários e da SEP - Secretaria de Portos da
Presidência
da República. As
informações da imprensa são de que o governo teria comunicado ao TCU que estaria
resolvendo o problema com a edição de uma medida provisória. O TCU suspende o
julgamento e o governo edita a Medida Provisória 595/2012, revogando a Lei dos
Portos e legalizando atividades ilegais dos referidos terminais privados de uso misto que
prestavam irregularmente serviço público sem licitação.
Editada a medida provisória, a pressão dirige-se ao Congresso Nacional. A grande mídia
passa a divulgar “informações de fontes do Planalto” de que a Presidente não admitiria
qualquer alteração na MP. A ministra da Casa Civil Gleisi Hoffman vai à Comissão
Mista da MP e repete a cantilena apocalíptica de que o sistema portuário é caótico, está
ultrapassado e precisa ser substituído por um outro, mais “moderno” e que estimule os
“investimentos privados”.
O modelo vigente até a edição da MP contava com apenas 20 anos de implantação (Lei

8.630/93). É o modelo
Land Lord Port
, praticado em todas as economias organizadas
em todos os continentes, culturas, países novos e antigos e com diferentes regimes
políticos. É um modelo universal que resulta da experiência de cinco mil anos de
comércio marítimo, do qual o portuário é parte. É como funcionam os principais portos
do mundo, como o Porto de Rotterdam, anterior à criação da Holanda, o de Gênova,
anterior à Itália, o de Hamburgo, anterior à Alemanha.
No modelo
Land Lord
, ao Estado cabe o planejamento estratégico, zoneamento,
localização e finalidade, metas, segurança, regulação. À iniciativa privada a operação
dos terminais. O seu adequado funcionamento pressupõe que o Estado cumpra sua
parte. Mas, segundo o TCU, a SEP e ANTAQ atuaram no sentido de sabotar o
funcionamento do modelo, ao tempo em que se mostravam candidamente complacentes
com a prestação ilegal de serviço público pelos terminais privados de uso misto.
A MP elimina a distinção entre terminais privados de uso público nos portos
organizados (arrendatários públicos ou privados selecionados mediante licitação) e
terminais de uso privativo misto construídos por empresas públicas ou privadas dentro
ou fora do porto organizado, simples autorizatários da ANTAQ. No marco regulatório
revogado, os terminais portuários de uso privativo deviam ter por justificativa de
implantação e operação o transporte da carga própria da empresa autorizatária,
admitindo-se, no caso das áreas de uso misto, a movimentação de cargas de terceiros,
em caráter eventual e subsidiário, tão somente para evitar a ociosidade na operação do
terminal. Tais terminais exerciam atividade econômica: instalações de auto-serviço que
serviam ao seu titular em processos de verticalização logística integrante de processos
de integração produtiva. Por isso, poderiam funcionar mediante simples autorização do
poder da ANTAQ.
Assim, a principal consequência da MP 595 – e a mais nociva – é a possibilidade de
prestação de serviço público de exploração de portos por empresas privadas sem
licitação, com contratos eternos. Logo, sem a obrigação de ofertarem serviço adequado,
universal, contínuo e com modicidade tarifária, por prazo determinado e com previsão
de reversão dos bens afetados em favor do porto organizado, em evidente assimetria
concorrencial em relação aos terminais privados e públicos nos portos organizados,
submetidos a todos estes condicionantes. É o que vinham ilegalmente fazendo os
terminais privados beneficiados pela suspensão do julgamento do TCU e pela edição da
MP. O terminal da Portonave, por exemplo, movimentava apenas 3% de carga própria e
97% de cargas de terceiros (serviço público) em frente ao Porto de Itajaí/SC e sob as
barbas lenientes da ANTAQ e da SEP.
Ocorre que a Constituição veda a hipótese de prestação de serviço público de
titularidade de União por particular sem a realização de licitação e submissão ao regime
público. O artigo 21, XII, da Constituição estabelece que compete à União explorar
diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão os portos marítimos,
fluviais e lacustres. E o art. 175 prevê que incumbe ao poder público, na forma da lei,
diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a
prestação de serviços públicos. Neste sentido, a MP é inconstitucional.
Do ponto de vista da eficiência do sistema portuário e da redução dos custos da
movimentação portuária, a MP produzirá efeitos contrários aos preconizados pelos seus
defensores. Não existirá a decantada redução de custos pela “competitividade”, em

razão de uma imaginária competição entre terminais. A experiência internacional
mostra que o que assegura redução de custos portuários é a escala. Por isso, os
principais portos do mundo possuem não mais que três terminais. O verdadeiro escopo
da MP é o comércio de contêineres. Quem define o tamanho do navio e o terminal a ser
utilizado na carga e descarga de contêineres são os donos dos navios, conforme a
demanda e o calado dos portos numa rota comercial. A demanda é resultado do nível da
atividade econômica. Calado depende de dragagem. Nada a ver com uma imaginária
competição entre terminais.
Os armadores são os grandes beneficiários desta MP, já que são eles e não os usuários
que escolhem os terminais onde irão atracar. As dez maiores empresas de navegação do
mundo são responsáveis por 70% do comércio marítimo. Na realidade, são os
armadores que recebem a remuneração dos exportadores e importadores e pagam aos
operadores pela movimentação portuária. Normalmente, repassam 50% a 60% do valor
recebido pela movimentação. O restante incorporam à remuneração global da operação
(frete). Ao vincularem-se a portos privados não submetidos ao regime de prestação de
serviço público e diante do enfraquecimento dos portos públicos, os armadores poderão
camuflar preços das operações portuárias, simulando reduções de custos e aumentando a
gritaria contra o “custo Brasil” e a “ineficiência dos portos públicos”. Em seguida,
destruídos os portos públicos e dominado o mercado, imporão suas condições para o
transporte marítimo, controlando a logística portuária e reduzindo a competitividade dos
produtos industriais brasileiros no comércio internacional. Simples assim.
Outros aspectos poderiam ser objeto de análise, como o regime de trabalho dos
portuários e a centralização das decisões de investimentos dos portos organizados no
nível federal, mas a exiguidade do espaço e a gravidade dos efeitos da privatização e da
desnacionalização dos portos para a economia e a soberania nos levam a privilegiar os
aspectos destacados. Este artigo é escrito antes da votação da MP 595 pela Câmara e
pelo Senado. Nossa esperança é a de que, pelo bem do Brasil, ela seja rejeitada ou,
quando menos, modificada substancialmente de modo a mitigar o estrago que sua
edição já provoca.
* José Augusto Valente, consultor em Logística e Transporte, Diretor Executivo do
Portal T1 de Logística e Transporte.
Samuel Gomes
, advogado, membro da REI –
Rede de Especialistas Iberoamericanos em Infraestrutura e Transporte, ex-presidente
da Estrada de Ferro Paraná Oeste S/A – Ferroeste
           Fonte: Economes.info



Anterior Proxima Inicio

0 comentários:

Postar um comentário