sábado, 6 de outubro de 2012

Venezuela: os dilemas de Outubro

 



Néstor Kohan
05.Out.12 :: Outros autores

O combate na Venezuela não é apenas eleitoral. O imperialismo estado-unidense, a grande burguesia venezuelana e os seus sócios políticos estão desenvolvendo um plano extra-eleitoral destinado a sabotar o processo e/ou a não reconhecer os resultados. Planeiam desestabilizar até conseguir os mesmos objectivos intervencionistas da Líbia ou da Síria. Por isso mesmo, a solidariedade com a revolução bolivariana deve exprimir-se em todos os cenários de luta até garantir a derrota definitiva desses esforços sediciosos e o aprofundamento e desenvolvimento definitivo da passagem ao socialismo.


A direita argentina desloca-se à Venezuela para fazer força contra Chávez.
O PRO, partido liderado pelo empresário Mauricio Macri que aglutina o mais rançoso do velho videlismo [referência à ditadura militar do general Videla], empenha-se abertamente em derrubar Chávez, juntamente com todo o “novo” empresariado capitalista que promoveu o neoliberalismo dos últimos 20 anos.
¿Fazem mal? Não! Fazem muito bem. Admitem publicamente, de forma transparente, que na Venezuela se trava uma batalha internacional. A direita é nítida, definida e não se baralha. A esquerda do continente deveria fazer exactamente o mesmo em sentido oposto. Não perder o rumo nem paralisar-se perante a confusão dos detalhes ou desorientar-se face às limitações do processo bolivariano. A escolha é clara e não vale a pena assobiar para o lado. Há que apoiar Chávez e o processo bolivariano aprofundando as transformações em direcção ao socialismo.
Mas a urgência das eleições de Outubro e a necessidade imperiosa da vitória eleitoral não devem desorientar-nos. O combate na Venezuela não é apenas eleitoral. O imperialismo estado-unidense (sob o disfarce sorridente e “multicultural” do presidente Obama, tão belicista como os anteriores mandatários ianques), a grande burguesia venezuelana e os seus sócios políticos estão desenvolvendo um plano extra-eleitoral destinado a sabotar o processo e/ou a não reconhecer os resultados. Planeiam desestabilizar até conseguir os mesmos objectivos intervencionistas da Líbia ou da Síria. Por isso mesmo, a solidariedade com a revolução bolivariana deve exprimir-se em todos os cenários de luta até garantir a derrota definitiva desses esforços sediciosos e o aprofundamento e desenvolvimento definitivo da passagem ao socialismo.
Os dilemas de Outubro inscrevem-se num condensado nó geopolítico. O imperialismo e as suas burguesias servis querem varrer completamente do mapa a insolência de um militar latino-americano, mestiço e bolivariano, anti-imperialista e admirador do Che Guevara, que lhes desobedece e os desafia desde há duas décadas. Necessitam imperiosamente de recuperar a renda petroleira e “ordenar” o norte da América do Sul, arredando Chávez, neutralizando e desarmando de vez as FARC-EP e semeando o continente de novas bases militares que garantam o seu monopólio sobre os recursos naturais. Face a essa ofensiva imperial, a geopolítica bolivariana não deveria satisfazer-se com o UNASUR e a unidade institucional dos estados. A longo prazo, o que definirá a contenda será a unidade dos povos (incluindo as suas expressões sociais e insurgentes), e não apenas os pactos entre os estados. Os apertos de mão com Santos, presidente corrupto e assassino, não conterão o para-militarismo e a lumpenagem da burguesia colombiana nem garantirão uma estabilidade duradoura na região enquanto as forças armadas colombianas continuarem a manter meio milhão de soldados crioulos — dirigidos ao vivo e em directo por generais ianques e assessores israelitas — que ameaçam invadir a Venezuela se se aprofunda o caminho para o socialismo. Que continue a existir o bolivarianismo das FARC-EP como ponta de lança do movimento popular colombiano é a melhor garantia para que Venezuela não seja invadida pelos Estados Unidos por meio do vizinho exército colombiano.
A unidade continental dos povos é a chave do triunfo bolivariano à escala internacional (nenhuma revolução pode triunfar isolada, num só país). No plano nacional, em contrapartida, a luta de classes exprime-se em todos os terrenos, e não apenas no eleitoral (sem dúvida o mais visível). A garantida vitória de Chávez em Outubro não deve fazer-nos esquecer que no interior do processo bolivariano também existe conflito. Um segmento que apoia o líder histórico da revolução bolivariana, mantendo embora a retórica oficial, faz tudo o que pode (e mais ainda) para retardar ou desviar a opção socialista. Dia a dia finge “inventar” pseudo alternativas, sempre qualificadas como “populares”, “autogestionárias” e “bolivarianas”, para não aprofundar o caminho para o socialismo. Como se se pudesse caminhar para o socialismo permanecendo amigo de todo o mundo e socializando apenas as margens da sociedade (aquelas que não afectam o mercado nem interessam às grandes empresas porque não são rentáveis). Como se se pudesse construir a transição para o socialismo sem afrontar os milionários da burguesia e o empresariado.
Um dos grandes desafios para o presidente Chávez e para todo o processo bolivariano, posterior ao certo triunfo eleitoral de Outubro, consiste em apoiar-se na organização política das classes populares, exploradas e subalternas (a sua principal e mais leal força de combate) e ir encontrando formas concretas de gestão da propriedade estatal ou nacionalizada que debilitem socialmente o inimigo e fundamentem as primeiras bases económicas da transição socialista. Há que golpear e debilitar os adversários não apenas na retórica, na comunicação, nas urnas e na sensibilidade cultural (algo fundamental e imprescindível) mas também na coluna vertebral do mercado capitalista da economia venezuelana. Para vencer o tigre há que ter a coragem de lhe pôr sal na cauda. Ou se enfrenta a burguesia debilitando-a socialmente ou a burguesia acabará por devorar o processo bolivariano tal como sucedeu com a revolução sandinista em 1990. Não se pode “civilizar a burguesia” (expressão pouco feliz de Tomás Borge em 1986). ¡Há que enfrentá-la e derrotá-la!
Chávez pode fazê-lo. Sobram-lhe energia, projecto, valentia e decisão política. Inclusivamente pôs em risco a sua própria vida (recordemos o golpe de estado e a digna atitude que então assumiu, tão diferente da pusilanimidade e da cobardia da maior parte da elite política da América Latina). A sua decisão pessoal não é o único factor em jogo. A revolução bolivariana apoia-se em muitos resultados que vão para além da liderança carismática de um individuo:
* Internacionalizou a disputa política e cultural a ponto de envolver todo um continente em cada um dos combates sociais internos da Venezuela.
* Politizou completamente a sociedade: até o mais indiferente ou distraído deve hoje pronunciar-se (a favor ou contra). Ficou para trás a era do “pragmatismo eficientista” e a despolitização pós-moderna das massas populares que nos anos 90 percorreu não apenas a Venezuela mas toda a Nossa América.
* Recuperou uma concepção histórica (bolivariana) da nossa identidade popular pondo em crise o individualismo cínico do pós-modernismo que nos convidava falsamente a desconfiar das “grandes narrativas” e a viver dia a dia, pensando unicamente em consumir, sem ideais, sem historia e sem projectos colectivos.
* Relegitimou os símbolos, a cultura e a tradição política do socialismo, que constituíam um palavrão demoníaco nos anos ’90.
* Redistribuiu a renda petroleira pelos sectores populares e em projectos políticos regionais, quando antes era um espólio de guerra da burguesia venezuelana destinado ao seu consumo frívolo e sumptuário.
* Reinstalou uma opção anti-imperialista a nível regional e continental, e inclusivamente diríamos mundial, estabelecendo vínculos com muitos povos e governos do mundo (os “maus” na linguagem hollywoodense das administrações norte-americanas), desde a América Latina até a África e a Ásia.
Por tudo isso, é vital apoiar resolutamente a continuidade do projecto encarnado por Chávez ao mesmo tempo que se torna inadiável o aprofundamento da revolução bolivariana apontando para a expropriação das grandes fortunas, das grandes firmas, dos grandes bancos e das grandes empresas (nacionais e estrangeiras). Se a revolução bolivariana não caminha para o socialismo de uma vez por todas — socializando a sério as grandes empresas, nacionalizando as alavancas fundamentais da economia e estabelecendo, contra a regulação mercantil, uma planificação socialista de grande escala, mais alargada até do âmbito nacional e no sentido do regional através do ALBA—, necessariamente retrocederá e será derrotada pelos seus inimigos históricos, internos e externos.
Não será estendendo a mão ao presidente Santos, vizinho perverso, hipócrita e sinistro, nem oferecendo de novo a outra face perante as ameaças golpistas esquálidas da direita venezuelana, que conspira para atirar com o tabuleiro ao chão se não ganham as eleições, não será assim que se aprofundará a revolução. Não é hora de dar ouvidos aos mansos e aldrabões social-democratas que em nome do «realismo» aconselham sempre a moderar a caminhada — como fizeram no Chile em 1973, na Nicarágua em 1990 e por aí adiante — para terminar, invariavelmente… em derrota. Não. O comandante Chávez e a revolução bolivariana devem aproveitar esta crise mundial do capitalismo e a actual debilidade dos EUA e da Europa ocidental para carregar no acelerador. Estamos atentos, não apenas o povo venezuelano mas todos os povos do mundo. O que está em jogo nesta disputa terá sem dúvida repercussões muito mais além da terra natal de Simón Bolívar.
- La Haine, 26 de Setembro de 2012
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