sábado, 14 de abril de 2012

O xadrez global da crise (IV): Neoliberais e keynesianos








Claudio Katz (*) (Argenpress)
13.Abr.12 :: Outros autores

Na actual conjuntura estreitou-se o espaço que permitiria levar a cabo reformas sociais sem acções anti-capitalistas. Para neutralizar a resistência dos banqueiros seria necessária a adopção de medidas mais contundentes, como a suspensão do pagamento da dívida, a auditoria aos passivos, ou a nacionalização do sistema bancário. O mesmo acontece com o relançamento do crescimento e a criação de empregos.


O debate económico sobre a crise continua centrado na oposição entre pontos de vista ortodoxos e heterodoxos. Os neoliberais atribuem a crise à irresponsabilidade fiscal e investem contra os governos que esbanjam dinheiro em despesas improdutivas. Mas omitem a lembrança de que esses gastos sustentaram inicialmente a expansão das economias industrializadas e que o descontrolo posterior resultou do resgate dos bancos. Na Europa, por exemplo, existia antes de 2007 superavit fiscal na maioria dos países.
O discurso neoliberal oculta esse auxilio e atribui o descalabro actual aos povos que viveram acima das suas possibilidades, como se melhorar o nível de vida constituísse um pecado.
E não explica, igualmente, por que razão os mais ricos são isentos de qualquer sacrifício. Inclusivamente, o carácter prolongado da crise é utilizado para justificar esses atropelos. Já ninguém apresenta a flexibilização laboral como um passaporte para a prosperidade. É necessário apertar o cinto por uma questão de sobrevivência(1).
Os mesmos argumentos são esgrimidos nos EUA pelos republicanos para exigir maiores reduções nas despesas sociais, ao mesmo tempo que mantêm os privilégios dos banqueiros, as despesas militares e o saldo de impostos para os ricos. Reclamam a fixação de um tecto limitado para o endividamento sob a supervisão dos bonzos do establishment e evitam mencionar que os apoios concedidos aos financeiros contradizem todos os princípios do mercado livre.
Os keynesianos consideram, em contrapartida, que a crise resulta de uma persistente desregulação financeira e da contracção da procura. Por isso Krugman propõe taxar os ricos, relançar o investimento público e recompor os rendimentos. Na mesma linha, Stiglitz apela a cancelar as hipotecas e à penalização dos bancos(2).
Estes autores mostram acertadamente como o descontrolo do risco, os malabarismos financeiros, os empacotamentos de títulos e as operações com derivados desencadearam o actual tsunami. Mas ocultam o facto de que esses desvios irromperam em resultado da própria competição que o capitalismo impõe na gestão do crédito. E o mesmo acontece em relação ao endividamento das famílias e à exclusão social, que não se desenvolveram apenas em resultado de erros na política económica.
Os teóricos heterodoxos esquecem que a própria acumulação gera divórcios entre o consumo e a produção, juntamente com acréscimos da produtividade desligados do poder de compra. Estas contradições foram exacerbadas pela rivalidade introduzida à escala global pela mundialização neoliberal.
Os economistas keynesianos consideram que é igualmente viável atenuar estes desequilíbrios através de uma repartição equitativa da crise. Propõem uma distribuição paritária das perdas financeiras entre devedores e credores. Mas basta observar a forma como os banqueiros reagiram perante a possibilidade de uma renegociação da dívida grega para constatar quão dura seria semelhante batalha. O simples anúncio desencadeou uma tempestade entre as agências de notação financeira e precipitou um reajuste fiscal na União Europeia. Já anteriormente os financeiros tinham reagido com igual violência perante iniciativas visando a supressão dos paraísos bancários, ou a anulação das bonificações para os executivos.
Para neutralizar essa resistência dos banqueiros seria necessária a adopção de medidas mais contundentes, como a suspensão do pagamento da dívida, a auditoria aos passivos, ou a nacionalização do sistema bancário. O mesmo acontece com o relançamento do crescimento e a criação de empregos. Para alcançar esses objectivos será necessário fechar a torneira dos pagamentos aos credores, controlar os movimentos de capitais e a introdução de drásticos impostos progressivos(3).
Na actual conjuntura estreitou-se o espaço que permitiria levar a cabo reformas sociais sem acções anti-capitalistas. Existe um clima de salve-se-quem-puder que deixa uma escassa margem para políticas de capitalismo humanitário. Prevalece a pressão no sentido de preencher as perdas dos bancos, de emagrecer as empresas e desvalorizar a força de trabalho.
Essas tendências não correspondem apenas à ideologia direitista dominante ou à influência determinante dos financeiros. Todas as classes dominantes estão de acordo com o apoio aos banqueiros. Esta convergência reflecte-se também no comportamento dos sociais-democratas europeus. Na hora de apertar a tarraxa não se diferenciaram dos seus adversários direitistas e aceitam a verticalidade autoritária que Merkel e Sarkozy impõem. Esta cúpula impôs, por exemplo, a substituição de Papandreou - face ao atrevimento deste em pretender a realização de uma consulta popular – e enviou uma contundente mensagem de intervencionismo neocolonial à Grécia.(4)
A mesma tendência verifica-se na indiferença do governo estado-unidense face às solicitações dos liberais. Atitude que contrasta com a permeabilidade reformista que dominava nos anos 30 durante o mandato de Roosevelt.
Muitos keynesianos reconhecem que estes cenários são adversos. Mas consideram viável a aplicação, à escala internacional, das soluções intermédias que a Argentina aplicou a partir do momento em que se declarou em situação de incumprimento e procedeu à renegociação da dívida.(5)
Mas esquecem-se de mencionar as causas específicas que tornaram possível essa experiência. A Argentina pode permanecer relativamente desligada do financiamento internacional porque está inserida no comércio mundial como grande exportadora de produtos alimentares. Beneficiou dos altos preços internacionais e converteu-se em fornecedora privilegiada das economias asiáticas em ascensão. Para além disso, utilizou os enormes rendimentos das exportações para reanimar a procura interna, depois de uma brutal desvalorização que limpou capitais, embarateceu os salários e facilitou a recomposição cíclica da taxa de lucro.
É evidente que a maioria das economias dependentes afectadas pela crise não dispõe dos recursos e das condições que tornaram possível essa recuperação. Poderiam certamente adoptar certas iniciativas que a Argentina adoptou, mas apenas como ponto de partida para medidas mais radicais e audazes(6).
A intensidade da crise exige assumir um horizonte anti-capitalista que se afaste do actual espartilho de diferentes variantes do mesmo regime social. O pensamento dominante impõe esse enquadramento, obrigando a optar entre o modelo anglo-saxónico, o esquema alemão ou a opção chinesa(7).
Este enquadramento nega as raízes intrinsecamente capitalistas da actual crise e oculta as contradições que o processo de acumulação gera periodicamente e amplia de forma itinerante. Um sistema baseado na rivalidade na disputa pela apropriação dos lucros resultantes da exploração produz necessariamente o tipo de abalos que se verificam no presente.
Se se reconhece que o capitalismo não é nem o único nem o melhor sistema possível, é viável conceber um outro leque de alternativas para resolver a crise. Esta abertura permite superar a resignação, consolidar a vontade de luta e imaginar saídas proveitosas para a maioria da população.
Resistências sociais
O desenvolvimento da crise pode ser abruptamente transformado pelas movimentações populares que ganharam dinâmica nos últimos meses. As análises que omitem esta reacção raciocinam sobre os processos económicos como se estes se verificassem num vazio social, que quando muito é preenchido por funcionários e por financeiros.
O eclodir da crise provocou de início uma grande desorientação, entre populações acostumadas a identificar os desastres económicos com o Terceiro Mundo. Este espanto foi também marcado pelo temor do desemprego. Mas no final de 2010 os levantamentos do mundo árabe introduziram uma inflexão nesse comportamento. Mostraram como podem ser conquistadas grandes vitórias democráticas.
Este impulso aprofundou a resistência na Grécia, que se transformou no principal bastião da resposta popular. Existe um estado de sublevação entre os manifestantes que ocupam praças e cercam o parlamento. Estes protestos deram por sua vez alento aos indignados espanhóis, que questionam o socorro aos banqueiros e reclamam “democracia verdadeira”. Este movimento já conquistou legitimidade, apoio e presença nacional.
Outro tipo de reacções sociais verificam-se em Inglaterra, tanto entre os jovens desempregados e fustigados pela polícia como entre os trabalhadores sindicalizados. Despontam greves em Itália e há mobilizações em Portugal. Estas lutas começam a alargar-se ao mesmo tempo que se desmorona a benevolente imagem que a União Europeia anteriormente tinha. Uma vitória imposta a partir de baixo permitiria actualizar o grande legado de rebeliões que o Velho Continente acumulou.
Mas o dado mais apelativo do ano verificou-se na outra costa do Atlântico, com o surgimento do movimento “Ocupar Wall Street”. Esta organização já conseguiu alcance nacional, simpatia popular, solidariedade intelectual e apoio sindical. Pela primeira vez em décadas reintroduziu manifestações de massas no coração do capitalismo.
Os movimentos que abalam a China obtiveram menor difusão internacional. No ano passado registaram-se 180.000 protestos, na sua maioria inspirados por reclamações contra a exploração fabril. Uma nova geração de operários – já emancipada da emigração rural – recuperou confiança e obtém conquistas em confrontos directos com os patrões(8).
Em todos os continentes se verifica o mesmo protagonismo juvenil, em movimentos que utilizam as redes sociais para informar e organizar. O primeiro embrião de uma articulação internacional verificou-se no passado 15 de Outubro na marcha global que reuniu multidões em 950 cidades de 80 países. Não se verificava uma acção coordenada desta amplitude desde as mobilizações contra a guerra no Iraque (2003).
Se se consolidar a convergência regional e internacional, poderá gerar-se uma resposta ao objectivo burguês de colocar uns contra os outros os trabalhadores dos diferentes países. Os dominadores da Alemanha encabeçam essa estratégia, difundindo a afirmação de que os operários alemães “já tiveram a sua parte de sacrifício” e não devem ser eles a pagar a factura dos mandriões do sul. Esta mensagem procura opor assalariados contra assalariados, escondendo as vantagens que uma tal divisão tem para os capitalistas. As campanhas da direita contra os emigrantes têm o mesmo objectivo(9).
Uma saída progressista da crise exige o combate contra estas fracturas entre irmãos de classe.
As tensões entre assalariados alemães e gregos, estado-unidenses e chineses, ou espanhóis e marroquinos levam a que as consequências do desastre actual recaiam sobre os povos. As respostas internacionalistas neutralizariam essa ameaça e permitiriam um reencontro da juventude com os sectores da classe operária, que ainda não se recompuseram da barragem neoliberal. O ano de 2012 abre a oportunidade de mudar o cenário da crise a favor dos trabalhadores.
(*) Claudio Katz é economista, investigador, professor. Membro do EDI (Economistas de Izquierda).
Fonte: http://www.argenpress.info/2011/12/el-ajedrez-global-de-la-crisis-parte-iv.html
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