quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Sobre Engels e A guerra camponesa na Alemanha

 


por Prabhat Patnaik [*]

Camponeses em torno da cidade de Delhi.



 

No momento em que massas camponesas no país estão empenhadas numa luta corajosa para revogar as três infames leis do governo central e impuseram um cerco pacífico a Delhi, enfrentando chuvas e frio extremo, vale a pena recordar o estudo de Friedrich Engels sobre a guerra camponesa na Alemanha em 1525, também celebrada pelo seu destacado líder Thomas Muenzer. Tal recordação torna-se necessária por uma outra razão.

Entre muita gente há uma impressão de que apesar de a ideia de uma aliança operária-camponesa ter sido avançada por Lenine e retomada subsequentemente por Mao e outros revolucionários comunistas do terceiro mundo, tanto Marx como Engels haviam sido cépticos quanto ao papel potencial dos camponeses como aliados do proletariado na transição para o socialismo. A citação selectiva de observações esparsas de Marx, arrancadas do contexto, também contribuiu para a confirmação desta impressão.

Nesta matéria os anarquistas têm sido particularmente severos em relação ao marxismo. Bakunin acusou os comunistas alemães de encararem todos os camponeses como elementos de reacção e acrescentou: "O facto é que os marxistas não podem pensar o contrário; adoradores do poder estatal a qualquer preço, são obrigados a amaldiçoar toda revolução popular, especialmente uma revolução camponesa, a qual é anárquica pela sua própria natureza e que avança directamente para a aniquilação do Estado".

Contudo, esta impressão acerca de Marx e Engels é totalmente errónea. Foi Ferdinand Lassalle, o líder da classe trabalhadora alemã, que chamou à revolta camponesa do século XVI na Alemanha de "reaccionária" em "substância e princípio", apesar da sua "aparência revolucionária". Aqui, como noutras esferas, tais como a chamada "Lei de Ferro dos Salários" proposta por Lassalle (que salários sob o capitalismo nunca podem subir acima de um certo nível de subsistência física), as opiniões de Lassalle foram erroneamente identificadas como as de Marx e Engels. Na realidade, o estudo de Engels sobre a revolta camponesa do século XVI na Alemanha destinava-se precisamente a contrariar esta tendência no interior da esquerda alemã, partilhada até por líderes como Wilhelm Liebknecht, de ver os camponeses como uma massa reaccionária com a qual a classe trabalhadora não poderia ter qualquer aliança.

Engels, ao contrário, não só defendeu uma aliança operária e camponesa para a próxima Revolução Alemã, como também sugeriu que a revolta camponesa de 1525 havia falhado porque fora constituída por uma série de eventos locais com pouca coordenação nacional entre estes eventos (a Alemanha naquela altura não era um único país unificado) e também porque os camponeses não tinham conseguido ter alianças mesmo a nível local com as massas urbanas plebeias (as quais constituíam uma classe proto-proletária). De facto, eles foram capazes de erguer uma resistência muito mais forte naquelas regiões onde puderam ter uma aliança com as massas plebeias, como na Turíngia, onde Thomas Muenzer havia estado activo.

A Guerra Camponesa na Alemanha foi escrito em 1850, à sombra da derrota da revolução de 1848 por toda a Europa. Em 1870 Engels escreveu um Prefácio a uma nova edição do livro onde traçou um paralelo entre as revoluções de 1525 e 1848 e aprofundou o seu argumento a favor de uma aliança operária-camponesa.

No Prefácio de 1870, sugeriu que a burguesia alemã havia chegado demasiado tarde ao local, numa altura em que o desenvolvimento burguês noutras partes da Europa havia simultaneamente desenvolvido o proletariado em tal extensão que a burguesia, mesmo nesses países, estava politicamente em retirada, tendo de reforçar a sua posição através da construção de pontes com outros elementos conservadores e anti-classe trabalhadora. Em França, por exemplo, a burguesia teve mesmo de aceitar o domínio de Louis Bonaparte. Na Alemanha, onde a burguesia não havia sequer feito qualquer "avanço" rumo ao poder político para fazer um "recuo", teve de ter uma aliança com os senhores feudais desde o início, para forjar uma frente unida pela defesa da propriedade privada, tanto a da burguesia como a propriedade feudal.

Neste processo, a burguesia traía necessariamente os interesses do campesinato os quais só podiam ser atendidos pelo proletariado no poder, formando uma aliança operária-camponesa. Uma tal aliança poderia ser forjada e permitiria efectivamente ao proletariado chegar ao poder, devido à força numérica combinada dos aliados. Uma aliança operária-camponesa era portanto historicamente necessária e também possível, para enfrentar a aliança burguesia-senhores feudais.

Engels enumerou quais segmentos da população, nas condições concretas do final da Alemanha do século XIX, poderiam constituir aliados do proletariado. Estes eram: a pequena burguesia, o proletariado de grau mais baixo das cidades, os pequenos camponeses e os trabalhadores assalariados da terra. Dentro da população rural, esta lista inclui apenas duas classes: os pequenos camponeses (Engels usa os termos grandes, médios e pequenos, em vez de ricos, médios e pobres, para descrever as várias classes camponesas) e os trabalhadores agrícolas (ou o que ele chama trabalhadores assalariados da terra). Ele explica o seu argumento como se segue:

"Os pequenos camponeses (os camponeses maiores pertencem à burguesia) não são homogéneos. Ou estão em servidão ligados aos seus senhores e mestres e, por mais que a burguesia não tenha cumprido o seu dever de libertar essas pessoas da servidão, não será difícil convencê-los de que a salvação, para eles, só pode ser esperada da classe trabalhadora; ou são arrendatários, cuja situação é quase igual à dos irlandeses. As rendas são tão altas que mesmo em tempos de colheitas normais, o camponês e a sua família dificilmente conseguem ter uma existência simples; quando as colheitas são más, ele virtualmente passa fome. Quando não consegue pagar a sua renda, fica inteiramente à mercê do senhor da terra. A burguesia só pensa em alívio sob coacção. Onde, então, os arrendatários deveriam procurar socorro além dos trabalhadores?

"Há outro grupo de camponeses, aqueles que possuem um pequeno pedaço de terra. Na maior parte dos casos, eles estão tão sobrecarregados com hipotecas que a dependência do usurário é igual à dependência do arrendatário para com o senhor da terra. O que eles ganham é praticamente um magro salário, o qual, uma vez que as boas e más colheitas se alternam, é altamente incerto. Estas pessoas não podem ter a mínima esperança de obter nada da burguesia, porque é a burguesia, os usurários capitalistas, que lhes espremem o sangue vital. Ainda assim, os camponeses agarram-se à sua propriedade, embora na realidade, esta não lhes pertença, mas aos usurários. Será necessário deixar claro a estas pessoas que só quando um governo do povo houver transformado todas as hipotecas em dívida para com o Estado, e assim reduzido a renda, é que eles serão capazes de se libertarem do usurário. Isto, no entanto, só pode ser cumprido pela classe trabalhadora.

"Onde quer que prevaleça a média e grande propriedade da terra, os trabalhadores assalariados das mesmas constituem a classe mais numerosa. Este é o caso em todo o norte e leste da Alemanha e é aqui que os trabalhadores industriais da cidade encontram os seus aliados mais numerosos e naturais. Da mesma forma, quando o capitalista se opõe ao trabalhador industrial, o grande proprietário ou grande arrendatário opõe-se aos trabalhador assalariado da terra. As medidas que ajudam a um devem também ajudar ao outro. Os trabalhadores industriais só se podem libertar transformando o capital da burguesia, ou seja, as matérias-primas, máquinas e ferramentas, os alimentos necessários à produção, em propriedade social, a sua própria propriedade, para serem por eles utilizados em comum. Do mesmo modo, os trabalhadores assalariados da terra só podem ser libertados da sua miséria horrenda quando o objecto principal do seu trabalho, a própria terra, for retirada da propriedade privada dos grandes camponeses e ainda grandes senhores feudais, e transformada em propriedade social a ser cultivada por uma associação de trabalhadores da terra numa base comum".

Engels está a visualizar não uma revolução em duas fases, mas uma revolução socialista, o que significa que a partir do dia seguinte da revolução todo o esforço deve ser no sentido do desenvolvimento do socialismo e não de qualquer construção inicial do capitalismo num período de transição. É por isso que ele exclui não só os grandes camponeses mas até os camponeses médios da lista de aliados revolucionários. Ele sugere a nacionalização da terra em vez da distribuição radical da terra, após a dissolução dos latifúndios feudais.

Obviamente, a composição precisa da aliança operário-camponesa e a agenda precisa desta aliança variará de país para país, dependendo das condições concretas. Além disso, no contexto actual, a questão camponesa deve envolver a libertação não só da opressão feudal mas também do grande capital, compreendendo tanto as corporações nacionais como o agronegócio multinacional. Mas como Engels e Marx haviam reconhecido (o livro apareceu inicialmente como artigos no Neue Rheinische Zeitung editado por Marx, o qual obviamente partilhava a posição de Engels), uma aliança adequada com o campesinato é uma condição essencial para a realização do socialismo.

17/Janeiro/2021

Ver também:
  • Why the CPI(M) opposes the Farm Laws and calls on all Parties to Unitedly Support the Kisan Struggle

    [*] Economista, indiano, ver Wikipedia

    O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2021/0117_pd/engels-peasant-war-germany


    Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ .
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