Jesus, o filho do carpinteiro
- 24 de dezembro de 2020
- Categoria: Cultura, Lutas e
Heróis do Povo, Últimas Notícias
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“Os cristãos, temos que lutar contra a economia da
exclusão e da iniquidade e o mal cristalizado em estruturas injustas” (Papa
Francisco)
José Levino
Jesus de Nazaré, o Cristo, é reivindicado pelos
pobres, explorados e também pelos exploradores. Falam em seu nome os que
defendem que Deus é Amor e os que proclamam que Deus é vingador, e em seu nome
bombardeiam países dominados (George Bush) ou oram fazendo o sinal de tiro com
os dedos à Bolsonaro. Afinal, Jesus era assim mesmo, abrangente e
contraditório, ou há setores usando seu nome em vão, falseando a doutrina e o
exemplo do jovem nazareno que desafiou os poderosos do seu tempo? Apesar das
limitações dos quatro evangelhos canônicos da Bíblia, aqueles selecionados pela
Igreja no século IV d.C, depois de ser cooptada pelo Império romano, é neles
que buscarei a resposta.
Jesus nasceu na Palestina. Filho de José, um
carpinteiro de Nazaré, aldeia da Galileia, e de Maria, uma bela jovem. Os
hebreus eram, em sua origem, um povo asiático nômade, que exercia a atividade
pastoril, e se dividia em comunidades tribais. Nelas, não havia propriedade
privada, os bens produzidos pertenciam a todos, num regime de comunismo
primitivo.
Em 1750 a.C, fugindo de uma terrível seca, emigram
para o delta do rio Nilo, em território egípcio, onde servem aos faraós por
quatrocentos anos. Deixam o Egito em 1250 a.C, liderados por Moisés, em busca
da Terra Prometida, onde chegam 40 anos depois, dominando os cananeus, que ali
residiam.
Surge a exploração do homem pelo
homem
Em Canaã (Palestina), foi curto o período de
tranquilidade, pois vieram os ataques e a dominação dos impérios da época:
assírios, babilônios, macedônios e, finalmente, os romanos. Quando Jesus
nasceu, a Palestina era província de Roma. O poder político era exercido pelos
fariseus e saduceus, aliados dos romanos, que só interferiam para cobrar o
tributo, nomear os sumo-sacerdotes (entre as quatro famílias mais ricas) e
decidir a pena quando alguém era acusado de crime político.
Os pobres e os setores médios eram contrários à
dominação romana. Alguns deles organizaram um movimento armado, chamado
ZELOTES, que queria expulsar os romanos e assumir o poder político,
representado pela tomada do Templo de Jerusalém, que era, de fato, a sede do
governo.
Existiam, ainda nas aldeias, os essênios, movimento
de camponeses pobres que nunca abandonaram a vida comunitária. Eles moravam nas
aldeias, não utilizavam a terra para fins comerciais, tirando dela apenas o
necessário para a subsistência. Viviam como irmãos. Seu princípio maior era o
amor ao próximo.
Quem é este homem?
Cedo, o menino revelou-se inteligente e interessado
em conhecer as doutrinas da época e a vida do povo. Morando numa aldeia,
Nazaré, conheceu os essênios, com quem aprendeu o desapego às riquezas,
partilha dos bens, amor ao próximo, vida coletiva. Com os estoicos (filosofia
helênica trazida pelo domínio de Alexandre, da Macedônia), identificou-se com o
apego à verdade (“A verdade vos libertará”), a dedicação radical à causa (“o
Pai não aceita o morno; ou se é quente ou se é frio) e a serenidade em qualquer
circunstância (enfrentou o martírio com dignidade e serenidade). Frequentou as
sinagogas e bebeu na fonte das profecias, especialmente de Isaias, de quem
gostava de citar: “Trago comigo o espírito de Deus, que me enviou para anunciar
a boa-nova entre os pobres…”. Assim, as três fontes constitutivas do
cristianismo foram: a prática dos essênios, a filosofia dos estoicos e a
religião dos profetas hebreus. A isso, Jesus acrescentou uma espiritualidade
mais profunda que a de todos eles.
Somente aos 30 anos de idade se sentiu preparado para
levar a mensagem ao povo. Inicialmente, a impressão é de que se tornaria um
líder zelote, pois dizia: “Não vim trazer a paz, e sim a guerra; quem não tiver
arma, venda seu manto ou seu arado e compre uma”. Mas logo mudou de estratégia.
Concluiu que de nada adiantaria expulsar os romanos e tomar o poder político,
se as pessoas permanecessem egoístas, ambiciosas, adoradoras do deus Mamon
(riquezas). Era preciso que os pobres se convertessem, se tornassem essênios.
E, para isso, é preciso “amar ao próximo como a si mesmo”. Este mandamento é
tão importante como aquele de Moisés, que dizia: “amar a Deus sobre todas as
coisas”.
Jesus não buscava confronto com o poder romano ou
local, mas este aconteceria inevitavelmente porque sua pregação implicava
mudança radical nos costumes. Deixava que seus discípulos colhessem aos
sábados, pois a necessidade humana está acima da lei que mandava guardar este
dia. “o homem não existe para o sábado, mas o sábado para o homem” (Marcos, 2);
condenava a exploração de classe: “Benditos vós, os pobres, pois o Reino de
Deus é vosso; malditos os ricos, porque já estão fartos”, e “Os pobres
possuirão a Terra”. (Sermão das Bem-Aventuranças).
Escolheu um grupo de 12 auxiliares diretos (os
apóstolos) para a missão entre os pobres, especialmente pescadores. “O Espírito
do Senhor está sobre mim porque Ele me ungiu para levar boas notícias aos
pobres, para anunciar a liberdade aos presos, dar vista aos cegos, libertar os
que estão sendo oprimidos” (Lucas, 4-18). Multidões (de pobres) o seguiram e
ele mostrou os benefícios da economia de partilha, alimentando cinco mil
pessoas com o pouco que cada um trazia, a partir dos cinco pães e dois peixes
dos apóstolos. Quer dizer, quando se colocam os bens em comum, o pouco de cada
um se multiplica e ninguém passa necessidade. E os ricos não poderiam aderir à
Boa-Nova? Sim, desde que coloquem seus bens em comum. Foi o que ele disse ao
jovem de família rica que pretendia segui-lo.
Três anos depois de pregar pelas aldeias
palestinas, resolve entrar na capital, Jerusalém, centro do poder econômico e
político. Simbolicamente, foi à frente da multidão montado em um jumento, para
dizer que não queria guerra (os zelotes andavam em potentes cavalos), mas
apenas dizer a Palavra para os peregrinos de todos os lugares, pois era a
celebração da Páscoa (passagem da escravidão do Egito para a liberdade).
Quando chegou ao Templo, encontrou-o tomado por
mercadores de todo tipo. Chamou seus seguidores e – no único momento de ira
registrado pelos evangelhos – expulsou os comerciantes à força, bradando: “A
Casa do meu Pai é casa de oração e não covil de ladrões”. O Poder sentiu-se
ameaçado; achou que por trás do pacifismo de Jesus, então conhecido como o
Cristo (enviado, ungido), gestava-se um movimento de massa contra a dominação
romana e o poder local. O Conselho do Sinédrio mandou prendê-lo. Mas não queria
fazê-lo no meio da multidão. Taticamente, à noite, Jesus e os mais próximos iam
dormir em um dos morros próximos da cidade, sem informar onde estavam. Um dos
apóstolos, entretanto, Judas Iscariotes, o traiu.
Barbaramente torturado em via pública, Jesus foi
levado para um dos morros, o Gólgota, e crucificado, pena máxima reservada para
os grandes salteadores e para os insurretos zelotes. O Cristo morria, apenas
fisicamente, pois como acontece com todos os seres especiais, sua mensagem
permaneceu e se propagou pelo mundo inteiro.
Fonte de libertação
Depois da morte de Cristo, os apóstolos organizaram
seus adeptos em comunidades, tanto na Palestina quanto nos países vizinhos e em
Roma. Estas comunidades praticavam o comunismo primitivo dos essênios: “Vendiam
tudo o que tinham, colocavam em comum, e não havia necessitados entre eles”
(Atos dos Apóstolos). Eram comunidades autônomas, não havia centralização.
Setores médios e ricos vão aderindo cada vez mais à
nova religião, cuja moral se apresenta muito superior ao judaísmo e ao
paganismo decadente. Mas os ricos não colocam seus bens em comum. Para
aceitá-los, o princípio é flexibilizado – basta ajudar os necessitados com uma
pequena parte do que se tem (a esmola substitui a partilha).
Os cristãos, antes perseguidos e massacrados pelos
imperadores romanos, no governo de Constantino (312 d.C) veem o cristianismo
tornar-se religião oficial do Império romano e adotar a estrutura da Corte
(hierarquia, culto, vestes, etc.). Nasce a Igreja Católica, integrante ou
aliada das classes dominantes no fim do Império romano, por toda a Idade Média,
promovendo a Inquisição, abençoando a colonização da África e da América na era
Moderna, ditando que negros e índios não têm alma e, por isso, podem ser
escravizados. A Reforma Protestante, ocorrida no século XVI, não teve caráter
popular; ao contrário, teve como objetivo adequar o “cristianismo” aos
interesses da nova classe dominante (burguesia), visto que a Igreja Católica
estava comprometida com a velha ordem feudal.
A Teologia da Prosperidade é
cristã?
Ora, se Jesus endureceu quando viu o comércio na
porta do Templo de Jerusalém, imagine-o diante das suntuosas igrejas,
especialmente as neopentecostais com sua Teologia da Prosperidade, estimulando
o enriquecimento individual e a doação de tudo o que a pessoa tem, pois o
Senhor restituirá em dobro? O que diria o Nazareno ao ler no Jornal Folha
Universal o bispo Edir Macedo escrever que sua relação com Deus é uma relação
de negócio exitosa, pois sua Igreja tem se espalhado pelo mundo inteiro? Ao
observar que autoproclamados servos fiéis colocam suas igrejas a serviço de
candidaturas que adotam a violência contra os pobres, retiram direitos históricos,
abrem caminho para retorno às relações de escravidão? Não se surpreenderia,
pois afirmara aos seus seguidores: “Muitos virão em meu nome, muitos falsos
profetas, e enganarão muitas pessoas” (Mateus, 24), mas, certamente, ficaria
mais colérico que no episódio de Jerusalém.
Onde estão os verdadeiros
cristãos?
A essência da mensagem transformadora de Jesus
Cristo sempre ressurgiu. Na Idade Média, os movimentos heréticos procuraram
mantê-la e refundar as comunidades até serem exterminados pela Inquisição e pelas
Cruzadas. Renasce durante a invasão das Américas com a criação das comunidades
comunistas guaranis no Sul do Brasil, com as Comunidades Eclesiais de Base após
o Concílio Vaticano II. Fomentadas por bispos do povo do quilate de dom Helder
Câmara, dom Fragoso, dom Paulo Evaristo Arns, dom Tomás Balduíno. E numa
homenagem especial, pela passagem recente para a eternidade (08/08/2020), dom
Pedro Casaldáliga.
Dom Pedro, que faleceu aos 92 anos de idade, era um
sacerdote espanhol que deixou sua terra, seu trabalho de professor e diretor de
uma revista para viver e dedicar-se durante 50 anos aos indígenas, camponeses
pobres e peões, assim chamados trabalhadores rurais sem terra de todo o país
que migravam para trabalhar nas grandes fazendas do Mato Grosso em regime de
semiescravidão.
Chegou a São Félix do Araguaia em 1968, quando o
Brasil já vivia sob ditadura militar endurecida com o AI-5 em dezembro daquele
mesmo ano. Mas isso não o atemorizou. Em 1970, enviou para a CNBB e para
autoridades o documento de denúncia “Escravidão e Feudalismo no Norte do Mato
Grosso”. Daí em diante, passou a ser perseguido, caluniado, recebeu ameaças de
morte, mas não recuou nem se escondeu. Nomeado bispo da Prelazia de São Félix
em 1971 pelo papa Paulo VI, continuou morando numa casinha de madeira, usando
um chapéu de palha no lugar da mitra e um cajado indígena em vez do báculo.
Manteve-se a serviço dos oprimidos. Poeta que era, disse no poema Canção da
Foice e do Feixe: “Me chamarão subversivo e lhe direi: eu o sou. Por meu povo em
luta, vivo. Com meu povo em luta, vou”.
Hoje, as comunidades de base, pastorais, como o
Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Pastoral da Terra, Movimento de
Trabalhadores Cristãos, Teologia da Libertação, Teologia da Enxada e outros
expressam o verdadeiro cristianismo, autêntico, fundamentado nos evangelhos e
na prática das primeiras comunidades cristãs. Desse modo, a Religião
verdadeiramente cristã, está longe de ser “ópio do povo”, sendo, ao contrário,
energia libertadora de toda forma de opressão.
fonte: A Verdade
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