segunda-feira, 4 de maio de 2020

A trágica disfuncionalidade de um sistema que tem de ser substituído: o capitalismo (2)


por Daniel Vaz de Carvalho

 
Muss es sein? (Grave) Es muss sein! Es muss sein! (Allegro)
(Tem de ser? Tem de ser! Tem de ser!)

Beethoven, frase final do quarteto opus 135
Cartoon de Ivan Lira.3 - A UE não existe

Na realidade, o que existe é uma burocracia ao serviço do país dominante (a Alemanha) e da finança. Uma burocracia que se sobrepõe ao poder de governos e parlamentos democráticos para determinar as orientações políticas e sociais, designadamente através dos orçamentos de Estado, vigiando o cumprimento das regras neoliberais adotadas, podendo propor a aplicação de sanções aos "não cumpridores".

A vontade popular é tanto quanto possível ignorada; os povos voltam-lhe as costas num conformismo desencantado, mantido pelo receio de represálias e abstêm-se massivamente nas eleições.

A deriva federalista, sem qualquer correspondência nem em orçamento, nem num parlamento com reais poderes, nem numa constituição referendada, serve apenas para maior centralização burocrática, favorecer a concentração monopolista e financeira, retirar soberania aos Estados, sobrepor-se à vontade democrática dos cidadãos.

O "europeísmo" encobre o interesse das burguesias dos países mais frágeis em obterem proteção, que a UE garante, contra eventuais políticas progressistas. Desempenham papel análogo às dos países da América Latina em relação aos EUA. Tudo isto é mascarado com os "valores" da UE, alimentando ilusões que representam um refinado processo de alienação.

A solidariedade europeia é uma fábula, válida para a finança, desmascarada com as intervenções da troika na Grécia e em Portugal, a ameaça de sanções a Portugal em 2015. Com ou sem troika os processos em Espanha, Itália, França – sobretudo com Macron – não foram distintos dos de Portugal e Grécia.

Para além das tragédias pessoais, o Covid-19, veio mostrar a incapacidade de a UE ser solidária e ter algo para dar aos povos para além de fórmulas vazias de conteúdo, medidas paliativas que mantêm as distorções e desigualdades existentes e cuja preocupação prioritária é apoiar a finança, criando dívida para os povos, que não se sabe como vai ser paga.

Os Estados mais endividados vão ser tratados como vencidos. Haverá muito barulho, protestos patrióticos, os "comentadores" vão fingir que se indignam, desdizer-se, contradizer-se, conforme as circunstancias. No final, tratarão de justificar, as verbas que a CE e o BCE irão dar à banca – dívida dos Estados – como "muito positivas". Quanto às insuficientes "ajudas" ou "subvenções" são apenas o "queijo na ratoeira" para serem mantidas as "regras" neoliberais e a burocracia federalista.

Mesmo face ao desastre atual, a UE persiste nos erros preexistentes, enredada em contradições insanáveis: exige rigor nas contas públicas, mas mantêm a infame "competitividade fiscal" dos paraísos fiscais, livre transferência de rendimentos, e o BCE entrega liquidez à banca em vez de diretamente aos Estados obrigando-os a submeterem-se aos "mercados". A detenção da emissão de moeda pela BCE e os procedimentos dos tratados, permitem exercer um controlo praticamente absoluto sobre o funcionamento das sociedades. Afinal que "ciência económica" justifica estes atentados ao desenvolvimento e bem-estar dos povos?

Mantêm-se o euro, concebido para favorecer a Alemanha e parceiros mais próximos como a Holanda e a Áustria. Os propagandistas que repetiam que com o euro deixaria de haver problemas de liquidez, foram os primeiros a dizer em 2009-2010 que o país estava falido, sem uma palavra de crítica ou indignação pelo facto dos "mercados" aplicarem taxas de juro de 7% e 10%. A liquidez do euro afinal era e é só para a finança…

Com a crise de 2009 a prioridade da troika foi salvar a finança, principalmente a alemã e francesa, à custa da fragilização do Estado (privatizações) e da pobreza (a austeridade…). A destruição do sector público e as privatizações eram prioridades, defendidas pelos mesmos que agora exigem apoios do Estado, subsídios, SNS operacional e sem falhas. [1]

A Alemanha necessita de uma finança forte, pois as exportações dependem não só de qualidade técnica, mas também de favoráveis condições financeiras. Por isso é ilusório sonhar com "eurobonds" que iriam nivelar a Alemanha por baixo. Claro que o euro e outras "regras" da UE servem também para retirar capacidade competitiva aos outros Estados, designadamente financeira.

Reconheça-se que a Alemanha lidera graças às condições dadas à sua economia, designadamente pagamento de dívidas após a 2ª Guerra Mundial e quando absorveu a RDA. Seria ilusório porém imaginar que em consequência das disfuncionalidades que atingem os outros países não seria também afetada.

A UE tem pés de barro e oscila de crise em crise. A UE é militarmente débil, economicamente frágil e em estagnação [2] , política e socialmente instável se não disfuncional, pelas contradições entre os seus membros. O euro é um sucedâneo do dólar, o BCE uma sucursal do FMI, a sua posição no mundo totalmente desacreditada como vassalo dos EUA – o "atlantismo" via NATO.

Mesmo contra os seus mais evidentes interesses, os países europeus submetem-se às orientações de Washington, caso da aplicação de sanções e participação em guerras de agressão que desacreditam todos os seus "valores". Recordemos a Jugoslávia, o Iraque, o Afeganistão, a Líbia, a Síria, o Iémen, o apoio aos fascistas de Kiev, o silenciamento perante as ditaduras da América Latina, as intervenções em África. No Leste, países já se encaminharam para formas fascizantes e estão mais preocupados em agradar a Washington que a Bruxelas.

Socialmente assistiu-se a um descontentamento generalizado, tentando ser apaziguado com episódicos recuos. Os conflitos sociais estão apenas latentes. Protestos como os dos "coletes amarelos" em França, mostram como os objetivos neoliberais das cúpulas da UE são insustentáveis, apesar da vigarice política de certa dita esquerda.

Alterar as regras existentes, seria alterar a estrutura de poder, desligando-se do imperialismo, recusando as dívidas ilegítimas, insustentáveis ou ilegais, iniciando transformações progressistas, que não podem ser confundidas com somente retomar alguns rendimentos e direitos que estavam a ser retirados.

A UE em vez de paz nas suas fronteiras e cooperação mutuamente vantajosa com todos os povos do mundo, prefere ser um mero agente da oligarquia transnacional. Esta UE tem de ser substituída, retomando a soberania plena dos Estados, estabelecendo formas de democracia com ampla participação popular.

Claro que são necessárias relações de cooperação mutuamente vantajosas entre Estados independentes, através de tratados bi e multilaterais, mas a UE que existe é um subproduto do imperialismo em decadência.

4 - Que fazer?

Perante as dificuldades que as forças progressistas enfrentam, vem a propósito o título do livro de Lenine, uma reflexão sobre as respostas do proletariado ao sistema capitalista.

Portanto, que fazer, perante um sistema que domina pela propaganda e intimidação. Um sistema que conta no seu currículo mortes pela fome (milhões cada ano), miséria, obscenas desigualdades, conflitos éticos e racismo. Que se serve do que mais negativo pode existir nos seres humanos (tortura, terrorismo, fanatismo religioso, ódios étnicos, raciais e políticos), sofrimentos inauditos em guerras de agressão, para se impor como "sem alternativa".

Um sistema orientado pela ganância sem limites da oligarquia, apoiada numa teoria económica, a regressão neoliberal, que não vai além de uma espécie de "ciência dos negócios", principalmente financeiros e transnacionais.

Perante uma crise, mesmo as que as suas contradições dão origem, apressa-se a recorrer ao Estado "despesista", antes alvo de ataques que visavam privatizar o máximo de recursos do Estado e as funções sociais. Porém, os problemas quer económicos quer sociais, sejam o desemprego, a depressão psicológica, ditaduras, crime organizado, nunca são atribuídos ao capitalismo, nem é considerado um "regime".

O Estado só é despesista para o que é social, nunca para resgatar bancos falidos, para a despesa fiscal dos benefícios ao capital monopolista e transferências para paraísos fiscais. Os que pretendiam em 2015 cortar 600 milhões de euros nas despesas do Estado, agora exigem subsídios e criticam as insuficiências do SNS que queriam privatizar, etc.

Os media tornaram-se o principal organizador, ou melhor, desorganizador do proletariado e da sua consciência de classe. Já que, para o sistema se manter são necessários cidadãos passivos, sem memória política, isto é, sem perspetiva do passado, que não compreendam o presente e não antecipem a realidade futura, como se tivessem perdido a cidadania, que a abstenção eleitoral comprova, simplesmente "público" de uma propagandeada sociedade de consumo – apenas para alguns.

Qualquer mentira, falsa notícia, acusação absurda, desde que tenha origem nas centrais de informação do império ou entidades ao seu serviço – como certas ONG – passa por verdade absoluta, sem provas, sem investigação, sem contraditório, é promovida a caso mediático, A deontologia jornalística é posta em "quarentena" nestes casos. Quanto maior a mentira mais gente acredita nela, dizia Goebbels. A calúnia transforma-se, quando muito, em "polémica", conferindo-lhe credibilidade. É uma espécie de terrorismo informativo.

De uma maneira geral, os media assumiram o papel de difusores da alienação. Mas há ainda os subprodutos do jornalismo, difundido gratuitamente pela televisão ou em jornal, a ideologia da direita e extrema-direita, em locais públicos como cafés, nos mais recônditos lugares.

Tudo o que o proletariado obteve no passado foi apenas quando, sobretudo motivado pelo marxismo, a relação de forças sociais lhe foi favorável. Porém, sob a ação das crises processam-se invariavelmente retrocessos civilizacionais e reversão do que foi anteriormente obtido. As crises com seu cortejo de falências e desemprego têm servido para proceder a privatizações, transferir custos (dívida…) para o Estado, retirar direitos laborais, atacar sindicatos, potenciar a concentração mono e oligopolista.

Passada a pandemia, ou a sua fase mais crítica, a oligarquia vai tentar aproveitar ao máximo os seus efeitos, para levar a cabo o seu programa de aumento da exploração e retirada de direitos. As cúpulas da UE vão querer por a "Europa" novamente na "ordem" estabelecida nos tratados e desígnios que considera "justos", independentemente das aspirações populares. Mesmo agora, grandes oligopólios despedem trabalhadores (o Estado que trate deles), enquanto distribuem centenas de milhões de euros aos acionistas. A sua "ciência económica" justifica tudo isto.

A vida mostra a que ponto a ortodoxia vigente é absolutamente incapaz de resolver quaisquer crises, mesmo as provocadas pela sua prática. Como se sabe, a melhor maneira de prever comportamentos futuros é compreender os do passado. Assim, coloca-se a questão: será possível um outro capitalismo?

A social-democracia acredita que sim, por isso torna-se o recurso transitório para salvar o sistema capitalista sempre que a correlação de forças sociais lhe é desfavorável. Nos casos limite, o grande capital não hesita em avançar para fórmulas fascistas, mais ou menos disfarçadas de democracias formais.

A social-democracia nas suas variantes sempre se caracterizou por recusar o marxismo. Podem falar em desigualdade, mas não refletem sobre isso ser um resultado da luta de classes, nem sobre as sua próprias cedências, nem sobre as contradições antagónicas do capitalismo.

Inicialmente, a social-democracia considerava que o socialismo podia ser alcançado por meio de reformas. Na realidade, tratou-se sempre de salvar o capitalismo, não superando o seu modelo de sociedade, com a agravante que para a social-democracia contemporânea as "reformas" perderam o cariz ético inicial, para se tornarem abertamente reacionárias.

O oportunismo da social-democracia toca as raias do abandalhamento ideológico, como se viu com o Syriza na Grécia, o PSOE em Espanha, o PS em França, o PSD e grande parte do PS em Portugal. Não esquecendo as ilusões à volta de Bernie Sanders nos EUA.

Alguma social-democracia dita de esquerda, não apoia o mercado livre, mas também é contra a planificação (estatal e democrática), mas a cadeira onde se quer sentar não existe. A adoção de "causas" serve para disfarçar as confusas bases ideológicas e indefinir prioridades. A esta corrupção ideológica não ficaram imunes partidos com passado de heroísmo e programas com uma visão marxista da sociedade.

As dificuldades das forças progressistas são muitas e não podem ser iludidas. É necessário substituir a orientação capitalista para a maximização do lucro monopolista e da especulação bolsista, por uma economia baseada na máxima satisfação das necessidades sociais. Uma economia estruturada na planificação democrática, o que implica a detenção pelo Estado dos principais sectores básicos e estratégicos da economia.

Substituir a submissão ao imperialismo, pela plena soberania nacional baseada na democracia participativa e relações mutuamente vantajosas com todos os povos. Substituir a subordinação à burocracia da UE e aos ditames de potências dominantes, pela cooperação entre os povos europeus em pé de igualdade.

Tarefa imensa nas condições atuais, que começa, quanto a nós, pelo esclarecimento militante. O marxismo, permanece o verdadeiro guia do proletariado, sendo por isso omitido, deturpado ou caluniado.

O que as oligarquias mais temem é que a sua "democracia liberal" seja substituída por formas de democracia participativa. Daí que o esclarecimento militante, seja necessário nesta conjuntura dramática a vários títulos, opondo-se à trágica disfuncionalidade de um sistema que terá de ser substituído: o capitalismo. Tem de ser? Tem de ser! Tem de ser!"
[1] Representantes do império em inspeção a uma província: "IMF Country Report 12/77", http://www.odiario.info/?p=2458
[2] Entre 2001 e 2019 o crescimento médio anual da UE foi de 1,5%: na Zona Euro 1,3%, na Alemanha 1,3%, França 1,28%, Espanha 1,6%, Itália 0%, Grécia 0%, Portugal 0,6%. ( Dados AMECO )


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