segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Gilberto Maringoni / A esquerda e a tentação liberal

A esquerda e a tentação liberal

por Gilberto Maringoni — publicado 24/10/2016 10h24
Não se pode mais subestimar o papel do Estado como organizador da vida política, social e econômica
Roberto Parizotti / CUT
Esquerda - PT
Ato de apoio ao PT em maio, em São Paulo


Partido dos Trabalhadores vive seu inferno astral. Tomou uma surra nas eleições municipais apenas dois anos após vencer sua quarta disputa presidencial consecutiva. A derrota será inesquecível e atinge amplamente a esquerda e o movimento popular, já duramente impactados pelo golpe. 
Traçar o futuro para as forças progressistas é tarefa das mais árduas. O pior que pode acontecer é todos adentrarem em uma espécie de autoengano ao dizer que “o que passou passou”, “bola pra frente” e deixar “a vida me levar”. É essencial que se façam balanços detalhados e objetivos sobre avanços e recuos desses 13 anos e meio em que o País foi dirigido por uma coalizão encabeçada pelo PT. Sem um exame sério, a esquerda não avançará
Vale a pena, mesmo modestamente, esquadrinhar o terreno percorrido e verificar como as coisas se encadearam. É importante, de forma breve, tentar entender como o PT, ou pelo menos sua direção, chega aos dias de hoje.

Lutas dos anos 1970-80
O partido começou sua história como caudatário das formidáveis lutas operárias do ABC paulista, nos anos 1970-80. Recebeu influxos de militâncias de inúmeros movimentos sociais, entre eles o sindical e o estudantil, da Igreja progressista e de egressos da esquerda derrotada em anos anteriores, em especial de ativistas de grupos que foram para a luta armada. 
O PT não teve, em sua primeira década, um programa político claro. Organizava-se, na prática, como depositário de experiências variadas. Seus dirigentes à época repetiam que o programa seria definido "pela base". Era uma forma de não provocar dissensões em um período favorável à união dos de baixo. 
A agremiação encarnou uma oposição difusa ao que se convencionou chamar de "Estado autoritário". Essa oposição tinha razão de ser. O movimento sindical se opunha à lei de greve da ditadura, havia todo um arcabouço legal restritivo à organização popular e o aparato de repressão estatal reagia com brutalidade a qualquer contestação à ordem.
Tal comportamento não diferenciava muito o que eram iniciativas de Estado e o que se apresentava como resultado das ações de um regime montado a partir de uma determinada coalizão de classes. Na ditadura, Estado e governo não apresentavam marcos nítidos de distinção entre si.
A partir daí, criticar a ambos era quase a mesma coisa. E essa crítica, sem grandes formulações teóricas, ensejou uma peculiar leitura da História. De forma fragmentada, a contrariedade ao “Estado autoritário” deu curso a uma crítica histórica de duas vias.
A primeira ganhava corpo no ataque à "Era Vargas", em especial à CLT e à organização sindical. A segunda se consolidava em uma ojeriza frontal aos comunistas. Alguns, teoricamente, verberavam contra um documento intitulado Declaração de Março de 1958.
Trata-se de texto polêmico. Em uma situação de profundo isolamento e clandestinidade, a direção comunista pregava a ideia de uma "união nacional contra o imperialismo". Entrariam aí o operariado, o campesinato, as camadas médias e um setor do empresariado, que deveriam selar um pacto contra o latifúndio e o capital financeiro. 
Apesar de controverso, é um documento extremamente rico e contribuição positiva ao debate da época. Os grupos que saíram do PCB após o golpe de 1964, o classificam como uma elegia capitulacionista "à burguesia". O argumento maior é que, na hora do perigo, os possíveis aliados bandearam-se para o lado da quartelada.
Os petistas oriundos dos grupos armados, nos primeiros anos, tratavam de esconjurar a Declaração de Março como o supra-sumo do que chamavam de “conciliação de classes”.
Precisamos falar da nação
Nesses primeiros anos, o PT desconsiderava o conceito de nação ou nacionalismo como algo que tiraria de cena o conflito de classes existente na sociedade. Assim, os documentos dessa época pouco falavam da importância de se reorganizar o Estado, que vem a ser a concretização objetiva do conceito subjetivo de “nação”.
No máximo, havia em letra de forma apelos contra privatizações de estatais, sem maiores decorrências. Se é verdade que o PT é fruto das lutas dos anos 1970-80, não é menos verdadeiro que a agremiação foi profundamente impactada pelo tsunami neoliberal dos anos 1990.
O impacto do pensamento único somou-se à queda dos regimes do leste europeu. O fim do ciclo histórico da bipolaridade mundial parecia comprovar a tese de que o PT bem fizera ao se distanciar do comunismo e das teorias que embalaram parte essencial das lutas populares no século XX. De quebra, apartar-se de regimes que viam no fortalecimento do Estado sua razão de ser.
Como nos anos da ditadura, opressão de classe e opressão do Estado se confundiam, ser contra qualquer um dos dois equivalia a ser contra o regime.
neoliberalismo trouxe consigo um suporte teórico que tendia a exaltar a retirada do poder público da economia – o que na prática nunca se deu, no Brasil – em favor de um nebuloso conceito de “sociedade civil”. Não há nada a ver com a formulação gramsciana de sociedade civil. O que se dizia é que o partido não “tomaria” o poder, mas o construiria “a partir de baixo”.
A “sociedade civil”, na visão liberal, se compõe de indivíduos e suas organizações não “atreladas” ao Estado. Assim, estariam de fora sindicatos e partidos. Os representantes da sociedade seriam as Organizações Não Governamentais (ONGs) e uma miríade de organizações autodenominadas “autônomas”.
Sem querer, esse aspecto da teorização neoliberal encontrou em uma esquerda que fazia da pregação antiestado, antivargas e anticomunismo – sua pedra de toque.
O problema liberal
Embora sempre tenha se colocado em oposição ao governo FHC, o PT nunca foi claramente antiliberal na política. Não à toa que grandes pensadores que formularam a base do pensamento liberal brasileiro – em especial Sérgio Buarque de Hollanda e Raimundo Faoro – sejam também inspiradores de vários intelectuais petistas. A Fundação Perseu Abramo, vinculada ao PT, tem até mesmo o Centro Sergio Buarque de Hollanda de História e Documentação Política.
Como tem apontado Jessé Souza, SBH transplanta para o Brasil a tese cara ao liberalismo, a do Estado patrimonialista. É como se o centro dos problemas enfrentados por um país periférico e desigual como o Brasil estivessem no Estado e não nas classes sociais que o hegemonizam a partir de fora.
Assim, o giro à direita, empreendido paulatinamente pela direção petista a partir de 2003 não se deu por força de características como “burocratização”, ou adaptação a cargos ou coisas assim. Essa é a leitura rasa. Essa movimentação teve formulações que foram ganhando corpo ao longo do tempo, cuja melhor tradução é a “Carta aos Brasileiros”, de 2002.
Justiça seja feita, o liberalismo, a subestimação do papel do Estado como organizador da vida política, social e econômica vai muito além do PT, no campo da esquerda ou da centroesquerda. Adentram setores de partidos como o PSOL, o PSTU e o PCdoB.
O PT nunca teve um projeto mais profundo de Estado e sua democratização, o que implicaria pelo menos regulamentar alguns artigos da Constituição, como os do sistema financeiro ou das comunicações. Nunca aventou dar outro rumo para sua organização jurídico-institucional.
As formulações sobre um incerto “republicanismo” – visão na qual o aparato de Estado seria imparcial e comum a todos – vêm do liberalismo.
Assim, o círculo fecha sua quadratura. Tendo sua gênese na crítica ao encobrimento das classes sociais pelo conceito de nação, o PT – e parte da esquerda surgida a partir dos anos 1980 – chega à elisão das classes pela via de um liberalismo envergonhado, como teoria política, que relega o Estado como centro das disputas sociais.
Se a luta de classes ou conflito distributivo não existia, nenhuma disputa de hegemonia precisava ser feita nos 13 anos em que o petismo administrou o País. Tudo seria fruto de acordos, sem esforço ou lutas. ONGs, bancos, grandes empresas, movimentos sociais e indivíduos poderiam se entender no âmbito da sociedade civil. Parceiros em várias iniciativas estariam num jogo virtuoso em que todos só teriam a ganhar.
Bastava se entenderem. Até o dia em que a crise chegou pesada, escolhas tiveram de ser feitas, meu mundo caiu e a carruagem virou abóbora...
*Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC
Anterior Proxima Inicio

0 comentários:

Postar um comentário