quinta-feira, 14 de julho de 2016

O silêncio da esquerda: Brexit, euro-austeridade e TTIP

O silêncio da esquerda: Brexit, euro-austeridade e TTIP


por Michael Hudson [*]
Os media nos Estados Unidos trataram a votação do Brexit contra a permanência na União Europeia (UE) como se fosse um "trumpismo" populista, uma votação inarticulada surgida da ignorância daqueles deixados para trás pela política de crescimento económico neoliberal. O facto de Donald Trump por acaso estava na Escócia para promover o seu campo de golfe ajudou a estruturar a narrativa estado-unidense que descreve a votação do Brexit como um psicodrama "Trump versus Hillary" – cólera populista e ressentimento contra política inteligente.

O que fica de fora deste quadro é que há uma lógica saudável para opor-se à condição de membro da UE. É o slogan de Nigel Farage, "Recupere o controle".

A questão é, recuperar de quem? Não só dos "burocratas", mas das regras anti-trabalho e favoráveis à banca escritas nos tratados da eurozona de Lisboa e Maastricht.

Os tablóides britânicos opuseram-se à UE ao retratarem burocratas não eleitos de Bruxelas a fazerem leis que obrigavam a Grã-Bretanha. O argumento era em grande medida um apelo nacionalista a "leis britânicas para ajudar o povo britânico".

O problema real não é simplesmente que burocratas estejam a fazer as leis, mas a espécie de leis que estão a fazer:   a favor da banca, da austeridade anti-trabalho. A política fiscal e da despesa pública foi retirada das mãos dos governos nacionais e entregue aos centros bancários. Eles insistem na austeridade e em desescalar pensões e programas de gastos sociais.

Os tratados de Maastricht e Lisboa – juntamente com a constituição alemã – privam a eurozona de ter um banco central que gaste dinheiro para ressuscitar a economia europeia. Em vez de trabalhar para aliviar a economia da deflação da dívida que se tem verificado desde 2008, o Banco Central Europeu (BCE) financia bancos e obriga governos a salvar de perdas os possuidores de títulos ao invés de cancelar parcialmente (writing down) dívidas podres.

Em matérias importantes, os burocratas de Bruxelas parecem bastante inclináveis às pressões estado-unidenses para assinar o TTIP: o neoliberal Tratado Transatlântico e de Parceria de Investimento da administração Obama. Isto é um programa corporatista que transfere a política regulatória para mãos corporativas, afastando-a do governo: política ambiental, política de saúde pública e de etiquetagem de alimentos para começar.

A burocracia de Bruxelas foi sequestrada não só pelos bancos como também pela NATO. Ela pretende que há um perigo real de a Rússia montar uma invasão militar da Europa – como se algum país no mundo de hoje pudesse montar uma guerra terrestre contra outro.

Esta ameaça fictícia é a desculpa para reservar 2% dos orçamentos europeus para gastos com compras de armas do complexo militar-industrial dos EUA e dos seus congéneres em França e de outros países. Belicistas de Bruxelas-NATO são utilizados para descrever a esquerda favorável ao trabalho como "frouxa" quanto à segurança nacional – como se a Europa realmente enfrentasse um problema de invasão russa. Oponentes à euro-austeridade são pintados como agentes de Putin.

A voz dissidente tem sido o partido da Frente Nacional de Le Pen, em França. Ela condena a participação francesa na NATO, considerando que esta cede controle militar aos EUA e ao seu aventureirismo.

Aquilo que costumava ser uma esquerda socialista tem estado silenciosa acerca do facto de que há muito boas razões para o povo dizer que esta não é a espécie de Europa de que pretende fazer parte. Está a tornar-se uma zona morta. E ela não pode ser "democratizada" sem substituir os tratados de Lisboa e de Maastricht sobre os quais está fundamentada e remover a oposição alemã a gastos públicos com a recuperação da Espanha, Itália, Portugal, Grécia e outros países.

O que é notável é que face à ascensão de ressentimento por parte dos "perdedores" do neoliberalismo – os 99 por cento – só partidos nacionalistas de direita tenham criticado o neoliberalismo da UE e o TTIP. Os partidos socialistas antes de esquerda da França e Espanha, os social-democratas alemães, socialistas gregos e assim por diante endossaram o programa de austeridade neoliberal e a favor da finança e reduzem o poder de sindicatos, salários e pensões.

Assim, a charada é:   como é que partidos originalmente favoráveis ao trabalho se tornaram anti-trabalho?

Corrupção burocrática de todos os partidos ao longo do tempo 

O filósofo islâmico do século XIV, Ibn Khaldun, estimava que toda dinastia se esgota em cerca de 120 anos (quatro gerações). A tendência é arrancar com um progressista "sentimento de grupo" de ajuda mútua. Mas com o tempo, as dinastias sucumbem ao luxo e à cobiça e tornam-se corruptas e facilmente manejáveis por interesses especiais.

O mesmo pode ser dito de partidos políticos. Todo partido que se identificou com a esquerda na Era Progressista – o Labour e partidos socialistas da Europa, bem como o Partido Democrata nos EUA – moveram-se agora para a direita neoliberal pois tornaram-se parte do "establishment".

É como se partidos de esquerda e direita houvessem comutado de posições politicamente. A esquerda socialista não está a protestar contra a austeridade da eurozona, mas aplaude-a. Tal como Tony Blair e Gordon Brown na Grã-Bretanha, eles tornaram-se thatcheristas, pressionando pela privatização e o corporatismo.

Pelo menos o sistema político da Europa apresenta um caminho de saída. Novos partidos podem ser formados para substituir os velhos e a representação parlamentar reflecte aproximadamente a votação pública. Foi isto que permitiu ao movimento Cinco Estrelas da Itália, o Podemos da Espanha e mesmo o Syriza da Grécia organizarem e conquistarem assentos parlamentares. O seu programa é restaurar uma ala esquerda, governo favorável ao trabalho regulando a economia para elevar salários e padrões de vida, não sugar rendimento para pagar os centros financeiros e o Um Por Cento. [NR]

O que bloqueia uma esquerda política progressista nos EUA? 

Os Estados Unidos estão trancados num sistema de dois partidos que bloqueia opositores do neoliberalismo. Nosso sistema de eleição presidencial foi distorcido desde o princípio pelo favoritismo a escravocratas sulistas. Ele fixou a sua representação para reflectir uma população escrava que não podia votar, mas era contada na representação do Sul no Congresso, bem como em eleições presidenciais através do colégio eleitoral.

Não entrarei em pormenores aqui, mas o modo pelo qual o sistema de dois partidos emergiu impede um terceiro partido de obter controle de comités chave do Congresso ou outros instrumentos importantes de governo. Eis porque Bernie Sanders considerou necessário concorrer como Democrata – apesar do facto de que o aparelho do Partido Democrata está firmemente controlado pelos seus principais contribuidores de campanha da Wall Street e corporativos.

Assim como a UE não é reformável sob os tratados de Lisboa e Maastricht – o sistema político dos EUA parece irreformável. Nas mãos de neoliberais ele favorece a Wall Street em relação ao trabalho e o poder corporativo em relação à protecção ambiental, a saúde pública e a recuperação económica.

Exemplo: Na semana passada o Comité Democrático Nacional rejeitou a insistência de Bernie Sanders de que a plataforma para as eleições deste ano rejeitasse o TPP e o TTIP. Estas políticas comerciais foram chamadas "NAFTA com esteróides". Apesar de Hillary inicialmente as apoiar, ela está a fazer uma simulação de esquerda afirmando opor-se – mas não permitirá que isto seja posto por escrito na plataforma, muito embora seja "apenas um pedaço de papel", como disse Jane Sanders.

Isto deixa a Donald Trump [a oportunidade de] denunciar os democratas como apoiantes do corporativismo a expensas do trabalho. Coloca-o na posição de Nigel Farage na Grã-Bretanha ou de Marine Le Pen em França, ou dos nacionalistas na Áustria e Hungria.

E coloca os democratas tão solidamente ao lado dos neoliberais, anti-trabalho e anti-regulação na equação política, tal como os socialistas franceses e seus equivalentes de direita em outros países. Lorrie Wallach, Paul Craig Roberts e outros estão a defender a tese contra o TPP e o TTIP, mas só o Sr. Trump parece ser capaz de jogar esta carta política chave.

Assim, o grande problema do nosso tempo é como criar uma alternativa ao neoliberalismo, o TPP e o TTIP que seja a favor do trabalho e do ambiente. Por que a América não pode criar um partido que tenha uma capacidade realista para estabelecer a política do governo? Muitos membros do Partido Verde procuram fazer isto. Mas o sistema estado-unidense de dois partidos marginalizou-os.

Embora os socialistas e outros movimentos de terceiro partido um século atrás acabassem por influenciar o Partido Democrata, a campanha de Sanders mostra como é pequena a probabilidade de que isto aconteça hoje. Os doadores corporativos de Hillary endureceram o seu controle sobre o aparelho do partido. Eles sequestraram a retórica e os slogans da Era Progressista, para embrulhá-lo nas políticas neoliberais da direita.

Assim, há dois problemas para reagir à austeridade e deflação da dívida. O primeiro deles é que o sistema eleitoral dos EUA impede uma alternativa.

O segundo é que antigos partidos de esquerda idiotizaram-se e rejeitaram suas origens favoráveis ao trabalho para apoiar o thatcherismo, a privatização, orçamentos equilibrados e austeridade em favor da banca. Ao rejeitarem Marx, eles aderiram à Nova Guerra Fria.

Há uma outra economia europeia que é possível. Mas ela não pode ser construída sobre as fundações actuais. É necessário dissolver a eurozona para reconstruir uma Europa favorável ao trabalho. 
01/Julho/2016

[NR] O autor é absurdamente optimista quanto aos programas reais do Cinco Estrelas, Podemos e Syriza. 

[*] Autor de Killing the Host (Matando os hospedeiro), email: mh@michael-hudson.com

O original encontra-se em www.counterpunch.org/... 


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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