domingo, 24 de abril de 2016

Sílvia Ribeiro / «Se calarmos, as pedras gritarão»

«Se calarmos, as pedras gritarão»



23.Apr.16 :: Outros autores
Não é apenas um episódio marcante da história do Movimento dos Sem Terra que Sílvia Ribeiro nos traz neste seu regresso ao Brasil. Não é apenas um episódio da luta heroica de centenas de famílias organizadas no Movimento dos Sem Terra, por terra, por trabalho, por pão, por paz, por vida.
Sílvia Ribeiro relata-nos um episódio da luta contra a barbárie, mostra-nos o verdadeiro papel do Estado numa sociedade de classes, e ilustra a impunidade que gozam os seus servidores.
Registe-se: foi no Brasil, era presidente da República Fernando Henrique Cardoso.


Raimundo Gouveia, 61 anos, tem um olhar sereno e profundo. Este 17 de abril de 2016, dia internacional da luta camponesa, recebe um grupo de companheiros da Via Campesina que viajaram de 28 países do mundo até ao seu assentamento «17 de abril», no Pará, Brasil.
É um território emblemático em tantos sentidos, que só com pisá-lo todos os sentidos despertam, apesar do solo e da humidade penetrarem em cada poro deste Estado amazónico. Olhos, coração e mente não param de registar sentir e tratar de expressar-se em uníssono. Os companheiros do assentamento matam-nos a sede com água fresca, sumo de cajá e cupuaçu. Numa mesa comprida partilham uma diversidade de frutos amazónicos, cultivados no seu assentamento, e contam-nos a sua história.
Raimundo, tal como muitos das 690 famílias que hoje vivem neste assentamento, foi ao inferno e voltou. Há 20 anos caminhava com a sua mulher, os seus dois filhos e mil e quinhentos camponeses, homens e mulheres, do Movimento dos trabalhadores rurais Sem Terra (MST), para Belém, capital do Estado. Exigiam a entrega de terras do latifúndio Fazenda Macaxeira que, por lei da reforma agrária, devia ser entregue aos camponeses sem terra. Depois de sete dias a caminhar, cansados e famintos, ocuparam uma estrada no município Eldorado dos Carajás para pedir transporte até Belém. O governo prometeu-lhes 50 autocarros e alimentos se desocupassem a estrada, pelo que se saíram para uma berma. Na manhã de 17 de abril comunicaram-lhes que não lhes dariam nada e deviam sair daquele lugar imediatamente. Então, os camponeses decidiram ocupar outra via mais importante, a chamada Curva S da estrada PA 150, agora BR155.
Às cinco da tarde de 17 de abril de 1996, 155 soldados da polícia militar dos Estados do Pará e Maranhão fizeram trincheiras, fecharam a estrada em dois lados, e lançaram-se contra os camponeses lançando gases lacrimogéneos, disparando espingardas e rajadas de metralhadora. Homens, mulheres e crianças camponeses correram para a selva, os soldados foram atrás para os caçar. Os que ficaram extenuados na estrada, trataram-nos á paulada porque, segundo declararam depois, «a ordem era desocupar a estrada a qualquer custo». Assassinaram 19 camponeses e deixaram 69 feridos graves, com sequelas de longa duração. Dois mais morreram devido aos ferimentos.
Não houve qualquer advertência, os Sem Terra não iniciaram nenhum confronto como a Secretaria de Segurança divulgou nesse mesmo dia à imprensa, versão falsa que manteve até as evidências a desmascararem.
A ordem da matança veio do então Secretário de Segurança Paulo Sette Câmara, depois de reunir com o governador do Estado, Alvir Gabriel, do PSDB, Partido Social Democrata Brasileiro.
Os custos do ataque pagou-os a mineira Companhia Vale do Rio Doce (agora apenas Vale) – que também tem as maiores minas de ferro do planeta – porque os camponeses interrompiam o tráfego dos seus camiões [1].
A polícia militar bloqueou o lugar durante horas, impedindo o tratamento aos feridos ou a chegado de pessoal forense ao local, enquanto tentava esconder as evidências do massacre. Amontoaram corpos em camiões e quando começaram a chegar pessoas de fora, subiram os feridos que algemaram aos autocarros.
Uma televisão filmou os corpos mutilados e as primeiras reações dos sobreviventes, imagens que mostraram pela primeira vez este tipo de ataques. Análises forenses mostraram que 13 dos 19 mortos foram executados à queima-roupa, a maioria morta com machetes e armas brancas. Os feridos foram atacados pelas costas quando tentavam fugir, salvo um pequeno grupo que procurou resgatar os primeiros caídos, a esses os feriram ou mataram de frente.
Oziel Alves Pereira tinha 19 anos. Chegou ao acampamento do MST uns anos antes e cresceu com essa comunidade de famílias camponesas. Descobriu que a ocupação não era só por terra, também era caminho de luta pela dignidade, justiça e liberdade para todos, indígenas, camponeses, negros ou caboclos. No dia do massacre, Oziel estava no camião de som a incentivar a mobilização. Os soldados apontaram-lhe as armas, obrigaram-no a ajoelhar-se enquanto vociferavam «vamos ver se te atreves a gritar como fazias quando estavas no camião». Oziel volta a gritar «MST, a luta é pra valer ! Foram as suas últimas palavras. Dispararam com raiva acumulada de soldados do latifúndio contra os pobres que se organizam, contra os negros e os índios, contra todos os que tendo nascido para escravos dos senhores se atrevem a rebelar-se.
«Fomos ao fundo do horror. Mas este brutal massacre também foi um tiro no pé dado dos soldados, do governo estadual e do nacional, dos latifundiários e de todos os que chegavam para saquear a Amazónia», reflete Charles Trocate que, tal como Oziel, tinha então 19 anos e fazia parte do protesto. «Pensavam que seria mais uma matança, como as que fizeram com toda a impunidade desde há décadas contra indígenas, camponeses, quilombas que moramos nesta região. A grande diferença foi que nós, os que estávamos em Eldorado dos Carajás, éramos do MST, que já se tinha estabelecido na região há 5 anos, era um movimento nacional com muitas ligações internacionais e não íamos deixar que aqueles factos fossem esquecidos ou ficassem impunes».
Charles, militante do MST em Pará, poeta e filósofo da vida, marcado a fogo pelo massacre de Eldorado dos Carajás, converteu-se num incessante investigador e transmissor da história da região.
Desde a Conquista, os latifundiários sempre viram a região como um lugar de saque, onde matar os que ali estavam era «normal». Segundo contam os assentados, os Pinheiro Neto, donos da Fazenda Macaxeira, gabavam-se de ter introduzido o rifle Winchester na Amazónia, arma que fez estragos matando índios para poderem invadir os seus territórios. Esse tipo de mentalidade continuou com as empresas que chegaram depois que a ditadura militar declarou uma grande faixa de vários Estados como a Amazónia Legal, onde tudo era permitido porque se ia «desenvolver o país» com grandes projetos de mineração, ganadaria e fileira de madeiras exóticas. Abriram imensas galerias mineiras, contaminaram água, arrancaram centenas de milhares de castanhos, árvore nativa da selva, desflorestaram enormes áreas da Amazónia, fazendo uma devastação ambiental histórica, acompanhada de incontáveis conflitos e assassínios.
Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), desde 1985 a 2015 houve 775 assassínios no Estado do Pará, 40% de todos os assassínios por conflitos do campo brasileiro, desde que a CPT começou a registá-los.
Ainda agora, os ataques contra o MST continuam por todo o país, porque o movimento continua a denunciar, a ocupar e a reclamar terras e direitos para os camponeses em todo o país. Para não ir mais longe, a 7 de abril, polícias e pistoleiros da empresa Araupel no Paraná, emboscaram uma camioneta do MST do acampamento Dom Tomás Balduíno, próximo de Cataratas do Iguazú, mataram duas pessoas e feriram mais seis, outra vez sem confronto, outra vez pelas costas. O próprio Estado já tinha reconhecido que a Arapuel invadiu terras públicas, mas face à falta de medidas o MST ocupou essa terra para exigir que fosse entregue à reforma agrária.
Vinte anos depois do massacre de Eldorado dos Carajás, reina a mais absurda impunidade nesses e em muitos outros assassínios. Depois de muitos esforços de várias organizações e anos de vários avanços e retrocessos judiciais, somente dois comandantes policiais foram condenados pelo massacre de Eldorado: o coronel Mário Colares Pantoja e o major José Maria Oliveira que dirigiram os ataques. Têm, respetivamente, condenações de 280 e 158 anos, mas nunca estiveram na cadeia, porque os seus advogados solicitaram trocar a sua condenação por prisão domiciliária. Mais de 150 soldados acusados foram absolvidos, porque foram eliminadas provas, e apesar de estarem registadas as armas que levavam, não se pôde individualizar as responsabilidades, sentenciaram os juízes.
Mas a memória coletiva dos homens não esquece e continua a construir. O massacre de Eldorado dos Carajás marcou e afirmou a luta e construção do MST, que denunciou o crime em todo o mundo. Pará é hoje um dos Estados com mais assentamentos do MST. A Fazenda Macaxeira foi desapropriada e é hoje o território do assentamento 17 de abril, onde a memória dos que morreram no massacre continua viva entre os castanhos e muitas outras árvores e terrenos semeados, continua a crescer entre os camponesas e camponesas das quase 700 famílias que ali vivem e trabalham, cresce entre as crianças e jovens, povoa a sua escola, chamada Oziel Alves Pereira, onde 683 filhos dos assentados aprendem e desaprendem muitas coisas, desarmando cada dia a realidade dominante ao mesmo tempo que uma outra, sua, baseada na pedagogia de Paulo Freire.
A Via Campesina decidiu assinalar o 17 de abril como dia internacional da luta camponesa, para que nunca mais se esqueça. Ao cumprirem-se 20 anos do massacre de Eldorado, A via Campesina e o MST convocaram uma Conferência Internacional sobre a Reforma Agrária Popular, com membros das suas 10 regiões do planeta, para avaliar e redefinir metas e caminhos, acompanhando o ato que se realiza todos os anos na Curva S, com um acampamento de formação e cultural (teatro, dança, música e outras artes) organizado todos os anos pelos jovens do MST de todo o país.
Ali, no monumento de homenagem aos camponeses assassinados colocaram troncos altos de castanhos e pedras manchadas de sangue, que recordam cada um dos caídos. Trazem todos os anos novas forma de se encontrarem, de manterem e recriarem a memória coletiva. Dizem-nos «se calarmos, as pedras gritarão».
Allí, en el monumento de homenaje a los campesinos asesinados han colocado altos troncos de castaños y piedras manchadas de sangre, que recuerdan a cada uno de los caídos. Traen todos los años nuevas formas de encontrarse, mantener y recrear la memoria colectiva. Nos dicen, “si calláramos, las piedras gritarán”.
Notas:
[1] La minera Vale, una de las más grandes del mundo, es la misma que por su ambición provocó la reciente tragedia de Mariana, en Minas Gerais, envenenando toda la cuenca de más de 700 kilómetros del Rio Doce.
O título deste texto é um verso do poema de Pedro Terra, escrito em homenagem aos mártires de Carajás
* Silvia Ribeiro, é brasileira e investigadora do Grupo ETC, reside no México.

Este texto foi originalemente publicado na revista mexicana «Desinformemo-nos»:http://desinformemonos.org.mx/?s=Si+call%C3%A1ramos%2C+las+piedras+gritar%C3%A1n

Tradução de José Paulo Gascão
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