quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Julio Gambina / Argentina: a eleição de Macri é uma viragem à direita, mas não um regresso aos anos 90

Argentina: a eleição de Macri é uma viragem à direita, mas não um regresso aos anos 90

Julio Gambina
09.Dez.15 :: Colaboradores
A vitória do candidato da direita nas eleições presidenciais na Argentina antecedeu a vitória da oposição de direita nas eleições legislativas na Venezuela. Argentina e Venezuela são países muito diferentes e passam por processos muito diferentes. Mas estes sucessos da direita em ambos os países ilustram debilidades nos processos progressistas latino-americanos acerca dos quais é urgente uma séria reflexão. Vitórias da direita nestes países são sobretudo vitórias do imperialismo. E isso diz respeito a todos os povos do mundo.

Após um ano de eleições, dissipou-se finalmente a incógnita acerca do novo turno presidencial que se inicia em 10/12/2015: Mauricio Macri foi eleito pelo voto de 12.903.301 pessoas, 51,40% dos votantes, contra 12.198.441, 48,60%, do oficialista Daniel Scioli. A diferença são 704.860 votos, 2,80%. Os votos em branco, nulos, objecto de recurso ou impugnados foram 636,818, uns escassos 2,47%. São dados relativos a 99,17% das mesas escrutinadas com mais de 80% de votantes sobre o universo eleitoral.
Trata-se de um final renhido para um novo ciclo de disputa política na Argentina. O resultado confirma a nossa tese relativa às novidades políticas na Argentina desde a crise de 2001. O bipartidismo tradicional entre peronistas (PJ) e radicais (UCR) cedeu o lugar às novas identidades que disputaram a recente votação, com coligações que em magnitudes diversas contêm peronistas e radicais, entre outras identidades políticas vigentes na Argentina. Macrismo e kirchnerismo são a novidade política destes anos.
Macrismo
Macri organizouo seu partido nestes últimos 10 anos, o PRO, com reforços substanciais de quadros e votos provenientes do peronismo e inclusivamente, embora menos, radicais e de outras tradições políticas e da gestão empresarial. Foi essa a base para dois períodos de governo na cidade capital da Argentina (2007-2011 e 2011-2015) e para assegurar um próximo terceiro mandato liderado pelo seu colaborador mais próximo. Soubenos tempos mais recentes organizar uma coligação, CAMBIEMOS, aproveitando a dilatada estrutura radical, presente em praticamente todo o país, e favorecendo a sobrevivência do velho partido de Irigoyen, que acumula agora uns quantos legisladores, intendentes e governadores quando parecia desaparecido da cena política.
O PRO apresenta agora os seus principais quadros à frente da gestão do distrito nacional, da cidade capital do país e da Província de Buenos Aires, expressão de uns 37/38% da economia, da população e do peso eleitoral, que além do mais foi a grande novidade nas eleições de Outubro ao desalojar ooficialismo, favorito em todas as sondagens e análises políticas. Trata-se de um peso importante na disputa da hegemonia política e na capacidade de consolidar poder territorial próprio para dar dimensão nacional a uma força surgida a partir da Cidade de Buenos Aires.
Os votos próprios conseguidos pelo PRO são os 25% conseguidos nas primárias (Agosto de 2015), nas quais a sua coligação, CAMBIEMOS, conseguiu 30%; ampliados a 35% nas eleições gerais de Outubro (25/10) e conseguindo os 51,40% na eleição presidencial (22/11). O candidato tem tradição na direita política e expressa pela primeira vez na história recente (1983-2015) – e inclusivamente mais atrás - a emergência de um partido de direita com votos na disputa institucional. A maioria dos seus votantes não são próprios e dificilmente pode considerar-se uma metade dos seus votantes como de direita, emboraconstituam uma base massiva para construir consenso ao projecto de restauração conservadora.
Kirchnerismo
O kirchnerismo emerge em 2003 como versão renovada do peronismo e com capacidade de incorporar sectores políticos com identidade à esquerda do peronismo, atraindo intelectuais e jovens, especialmente nos finais do primeiro mandato de Néstor Kirchner (2003-2007). O kirchnerismo não é necessariamente peronismo, tal como o foi o menemismo, antes constituiu a tentativa de construir um projecto transversal com capacidade de actuar sobre diversas organizações sociais e políticas para alargara sua base social.
Três períodos de governo (2003-2007; 2007-2011; 2011-2015) e uma importante votação e imagem de Cristina Fernández dão conta da eficácia na construção de consenso destes anos, favorecidos por uma conjuntura internacional de alta de preços internacionais das commodities, especialmente da soja e dos produtos mineiros, que sustentaram uma política social massiva que deu resposta às necessidades de melhoria de rendimentos de milhões de personas. Os principaissucessos sobre que construiu o consenso sustentam-sena referida política social; na posição assumida nas relaciones internacionais, orientada no sentido da região latino-americana e caribenha, coroada em 2005 na Cimeira de Presidentes das Américas realizada em Mar del Plata que, em convergência com la Cimeira dos Povos, impediu o ressurgimento da agenda em defesa da ALCA que o presidente dos EUAapregoava nessa altura; e numa política de Direitos Humanos, especialmente concentrada na memória relativa aos anos da ditadura genocida (1976-1983), na anulação das leis da impunidade e no incentivo ao julgamento dos genocidas.
No estilo de gestão kirchnerista está clara a falência na construção de poder próprio, que impediu assegurara continuidade do ciclo. O candidato seleccionado para a disputa eleitoral nunca satisfez os núcleos militantes do oficialismo e apenas se aguentou sobre os indicadores de consenso eleitoral proporcionados pelas consultoras de opinião e sobre a decisão da presidente. O kirchnerismo não pôde em 12 anos gerar uma linha de quadros para a sucessão, nem mostrou capacidade, para além de organizar força própria, para disputar consenso na organização do movimento social, nem entre os trabalhadores, nem nos territórios, os estabelecimentos educativos ou nas diversas expressões da organicidade popular. O alargado vínculo do consenso processava-se entre aliderança de Néstor e Cristina e os seus aderentes, dando conta de uma falênciana construção de mediações de poder nomovimento popular.Daqui surgem as incógnitas acerca do futuro próximo do kirchnerismo, uma vez que a base de poder decorria das posições na gestão do Estado.
Peronismo
Há peronismo na coligação que Macri lidera. Existe peronismo no kirchnerismo, e existem tambémos peronistas dissidentes, liderados pela coligação entre Sergio Massa e José Manuel De la Sota, que alcançaram o terceiro lugar nas eleições gerais de Outubro passado com 5,5 milhões de votos. Um universo que optou maioritariamente por Macri, com sinais orientadores nesse sentido por parte dos principais líderes.
Logo após a morte de Perón em 1974 ter legado o seu projecto ao Povo, o peronismo foi derrotado à saída da ditadura por Raúl Alfonsín (1983-1989) e ressurgiu com projecto reaccionário com Carlos Menem entre 1989 e 1999 para consolidar as mudanças estruturais regressivas imaginadas em tempos ditatoriais (1976-1983). Oprojecto oriundo do terrorismo de Estado foientão possívela partir do consenso conseguido pelo peronismo (menemismo) nogoverno. Destaca-se neste sentido a afirmação do modelo produtivo e de desenvolvimento subordinado à dominação das transnacionais de origem estrangeira, a exacerbação del extrativismo para a exportação e o aprofundamento da dependência e da especulação com eixos no endividamento público e na fuga de capitais.
Néstor Kirchner chega ao governo pela mão do peronismo e constróio seu próprio poder para além do peronismo. Isso gera as dissidências que permitem pensar em uma nova ronda de disputa pela liderança da identidade peronista. Já dissemos que boa parte dos votantes de Macri provém do peronismo, embora a disputa pelo legado peronista se vá processar entre o kirchnerismo e os governadores dessa tradiçãoemuito especialmente pela aliança entre Massa e De la Sota.
É provável também que o macrismo dispute uma transversalidade corrida à direita para captar dirigentes e referências do peronismo e outras identidades políticas.
¿Por que ganhou Macri?
Muito do voto nas eleições foi um voto contra. Contra Macri votou-se, emboa parte, por Scioli. Contra o kirchnerismo, ou contra Cristina Fernández,muitos votaram Macri. Esta opção foi mais fortee, dos 7,5 milhões de votos obtidos poroutros candidatos em Outubro passado, Macri recolheu 4,5 milhões e Scioli 3 milhões. A lógica da votaçãoé a opção entre um e outro, e assim foi entendida por 25 milhões de eleitores e por um escasso voto branco, nulo ou objecto de recurso.
O voto de castigo éa primeira explicação que se pode encontrar, embora o consenso do oficialismo seja amplo, não apenas pela votação (48,60%) como pela elevada imagem positiva com que Cristina Fernández deixa ogovernodepois de 12 anos.
Já mencionamos que o candidato oficialista não foi o melhor e não tinha grandes diferenças com Macri, nem pela sua origem empresarial, nem pelo seu início na política pela mão de Menem e uma gestão da Província de Buenos Aires por dois períodos (ídem Macri na Cidade de Buenos Aires) com resultados não muito diferentes em saúde, educação, segurança, insegurança, entre outros aspectos.
Aevolução da economia, especialmente desde 2011, com os 54% de apoio eleitoral ao segundo período de Cristina Fernández, não obteve os melhores dados. Acrise mundial golpeou com baixas dos preços internacionais. A inflação elevou-se consideravelmente afectando os rendimentos populares. As reservas internacionais, de um máximo de 52.000 milhões de dólares em 2011,reduziram-se a metade no presente, o que é explicado pela fuga de capitais e pelo cancelamento de uma dívida que hipoteca e condiciona o presente e o futuro do país, juntamente com uma sentença passada em julgado nos EUA que anula 100% da dívida de investidores não incluídos no cancelamento da dívida de 2005 e 2010, os fundos abutres. O emprego deixou de crescer e a queda da produção industrial deixou à vista os limites do processo de produção fabril, reduzido a uma engrenagem dependente de insumos estrangeiros, e em particular comum défice energético.
Nem a política nem a economia foram dados favoráveis para um quarto período de gestão kirchnerista. O resultado assentou na oferta de “mudança” proposta por Macri, que adoçou o seu programa tradicional mostrando-o mais amigável em relação a vários projectos do governo kirchnerista. Tudo parecia que a oferta era mudar o estilo de gestão, embora se reconheça que o espectro intelectual profissional por detrás do futuro presidente pressupõe a restauração de um programa mais favorável às classes dominantes.
Um elemento a destacar foi o papel dos media favoráveis à oposição, que instalaram um senso comum de crítica à gestão do governo. Por seu lado, a imprensa oficialista não foi capaz de superar o estilo de propaganda orientado para os convencidos, sem assumir a mínima crítica às políticas oficiais e eludindo os descontentamentos acerca do candidato e da campanha oficialista.
O carácter contrario ao processo de mudança latino-americano na imprensa hegemónica organizada a partir de monopólios privados de comunicação propagandeou uma crítica ao ciclo inaugurado com a eleição de Hugo Chávez na Venezuela em 1999 e outros processos regionais que tentaram impulsionar uma integração não subordinada. A imprensa instalou com êxito a crítica à experiencia venezuelana e identificou a proposta da revolução bolivariana com o destino do governo kirchnerista, quando este nunca assumiu o projecto anticapitalista formulado em Caracas.
Primeiras mensagens
Reorientar a política internacional, com iniciativas contra Venezuela e Irão, promovendo novas e renovadas relações coma China e especialmente com os EUA. Trata-se de uma clara mensagem de alinhamento com o programa liberalizador que o imperialismo e as classes dominantes sustentam, impulsionando a aproximação com a Aliança do Pacífico a partir do Mercosur.
As nomeações para o Gabinete não têm surpresas, salvo a continuidade do Ministro da Ciência e Tecnologia que acompanhou Cristina Fernández nos seus dois períodos de Governo. O elenco do governo são quadros técnicos e políticos de concepção neoliberal e com orientação no sentido de promover a iniciativa privada, o acesso dos investimentos estrangeiros e a reinserção da Argentina no sistema financeiro mundial. Boa parte dos funcionários do novo governo têm currículo em empresas privadas.
A mensagem cuidadosa na campanha eleitoral pode continuar na primeira parte da gestão, embora a anunciada unificação do tipo de cambio (desvalorização da moeda) possa ter impacto não apenas em alterações dos preços relativos, mas também na percepção da população sobre o sentido da política da nova gestão presidencial. É algo que se tornará visível nos próximos dias, depois da tomada de posse a 10 de Dezembro.
Os mercados responderam ao estímulo de um governo pró-mercado e nestes primeiros dias mostraram-se em alta e inclusivamente com tomadas de lucro no curto prazo, dando conta de uma sensibilidade para a especulação pró-capitalista.
Para pensar
O quadro descrito é de crise do sistema político, com emergência de novos actores que disputam a identidade do povo argentino;com o macrismo pretendendo uma transversalidade no sentido da direita. Ao mesmo tempo permite pensar na possibilidade de construir alternativa política popular. É algo não conseguido desde a crise de 2001; especialmente atravessado pela emergência do kirchnerismo e sua transversalidade no sentido da esquerda. O desafio é suscitado pela potencialidade de construir alternativa política para impedir a restauração e ir mais além do possível permitido pela ordem capitalista contemporânea em processo de crise mundial.
Requer caracterizar-se adequadamente o momento actual, que não é o retorno puro e simples aos anos 90 mas uma proposta de modernizar o projecto político das classes dominantes, que pela primeira vez acedem ao governo com o consenso dos votos.
Na reeleição de Menem em 1995 existiu consenso para o processo regressivo de reestruturação desenvolvido no primeiro mandato entre 1989 e 1995. Não éo que sucede agora, com uma maioria alcançada como voto de castigo ao governo. Não há mandato explícito para a restauração dos anos 90,ainda que o governo venha a sustentar o seu programa liberalizador no apoio eleitoral.
É sob estas condições que se requer pensar criticamente a realidade propor uma perspectiva de emancipação social para além do regime do capital.

Buenos Aires, 27 de Novembro de 2015
ODiario.info
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