quinta-feira, 14 de maio de 2015

Uma perspectiva argelina: os miseráveis do mar

Uma perspectiva argelina: os miseráveis do mar

Hamza Hamouchene
14.Mai.15 :: Outros autores
A tragédia da imigração que vemos no mar Mediterrâneo durará o tempo que que continuem vigentes as arreigadas estruturas autoritárias de poder e opressão, enquanto esteja em marcha o saque dos recursos naturais de África, enquanto o profundamente injusto sistema em que vivemos prossiga o seu domínio e a exclusão dos miseráveis da terra e dos condenados do mar.


Aqui [Argelia], como em outras partes de África, o abandono económico e o desespero face aos regimes autoritários corruptos obrigam os jovens do continente a arriscar-se a morrer para escapar para a Europa.
Nas últimas semanas, a política de vizinhança da UE e as políticas exteriores ocidentais, juntamente com a dominação económica actual do continente africano, mostraram de novo as suas letais consequências na tragedia da imigração através do mar Mediterrâneo.
Milhares de pessoas, na sua maioria de África e Síria, arriscam cada ano as suas vidas cruzando o mar em frágeis barcaças para escapar das áreas devastadas pela guerra, da pobreza, perseguição e miséria, para alcançar as costas da Europa em busca de uma vida melhor e mais segura. Lamentavelmente, um número importante delas perece na tentativa ou acaba em campos e prisões humilhantes nos países do sul da Europa apenas para serem deportados e devolvidos e verem destroçados os seus sonhos.
O que distingue as tragedias deste ano das anteriores é a alta taxa de afogados, que este ano supera o número de 1.500, cinquenta vezes mais do que o verificado na mesma altura de 2014. Esta diferença deve-se aos actuais conflitos na Síria, Líbia e Mali, bem como à desumana decisão de vários governos da UE de recusar o financiamento da operação de resgate Mare Nostrum dirigida pela Itália, preferindo abandonar os emigrantes à sua sorte, e proclamando que isto pode actuar como dissuasão para as pessoas não desejadas que tentam alcançar a fortaleza europeia.
Procurar deter este fluxo humano tem sido durante anos a lógica da EU, mediante a imposição de sanções e fortes multas aos operadores marítimos que não comprovem a validade dos passaportes e dos vistos dos passageiros. Já em Setembro de 2007, sete pescadores tunisinos foram processados e encarcerados por um juiz italiano por “apoio à imigração ilegal”, confiscando-lhes os barcos porque se atreveram a salvar uma barcaça que transportava passageiros para Lampedusa (Sicília), impedindo que se afundasse, como estipulam as leis do mar.
Vale a pena recordar aqui como os países europeus externalizaram a protecção das suas fronteiras aos regímes autoritários norte-africanos. Um exemplo edificante foi o acordo Berlusconi-Kadhafi para devolver imigrantes à Líbia sem exame dos seus pedidos de asilo, em troca de lucrativos contratos económicos entre ambos os países. Marrocos está também cumprindo zelosamente o seu papel de guardião da fortaleza europeia. En 2005, 20 pessoas da África Subsaariana encontraram a morte quando tentavam cruzar as valas levantadas em Ceuta e Melilla, na fronteira entre Marrocos e Espanha, morrendo alguns em consequência das quedas, outros por asfixia e o resto, de forma mais escandalosa, sob o fogo do exército marroquino.
A deslocalização e militarização do controlo da emigração reflectem-se na agência FRONTEX da UE, criada em 2005 para interceptar os imigrantes que chegam entre as costas africanas e as ilhas Canarias, bem como pelo canal de Sicília, sem ter em conta a legitimidade de certos casos de asilo e longe de qualquer controlo democrático.
A Argélia não escapou a esta lógica de cooperação com os seus vizinhos europeus na “guerra contra os imigrantes”. Foi assim que, em 2009, a “imigração ilegal” passou a ser um delito na sua legislação. A Argelia, que se gaba de ser um farol de estabilidade na região e que alberga imensas riquezas em recursos de gás é petróleo, é entretanto um dos principais países a produzir o que chamamos “migrantes ilegais”, mais exactamente Harraga, na língua magrebina. Harga  (o fenómeno) refere-se literalmente ao verbo “حرق“ (queimar, em árabe) no seu sentido estrito (queimar os seus papeis e documentos) e metaforicamente: superar uma restrição, como cruzar uma linha vermelha ou ultrapassar uma fila de espera ou, neste caso, cruzar as fronteiras e os mares.
Argelia e as suas harragas
Em 2014 foram detectadas 7.842 travessias ilegais de fronteira na região do Mediterrâneo ocidental, que compreende várias áreas da costa sul de Espanha e as fronteiras terrestres de Ceuta e Melilla. Em termos de nacionalidade, a maioria dos emigrantes são da África ocidental, especialmente de Camarões e Mali. Os argelinos e marroquinos estão também entre as dez principais nacionalidades, mas sobretudo nas fronteiras marítimas.
Segundo a análise de risco anual do Frontex 2015, a Argelia ocupa o terceiro lugar depois da Síria e Afeganistão nas entradas clandestinas detectadas nos pontos de transposição de fronteiras (BCPs, na sua sigla em inglês). A Argelia ocupou também o oitavo posto no que se refere a residentes ilegais.
Os harraga argelinos seguem diferentes rotas marítimas desde a Argelia para alcançar a Europa: uma vai das costas de Orão (oeste da Argelia) para a Espanha continental; outra (menos desenvolvida) une as costas de Dellys (100 quilómetros a leste de Argel) com a ilha de Palma de Maiorca; e a última vai das costas orientais (Annaba e Skikda) para a ilha italiana da Sardenha.
Entretanto, também utilizam outras rotas através da Tunísia, Líbia e Turquia. De facto, desde Novembro de 2010 a Março de 2011, 11% dos 11.808 emigrantes irregulares interceptados na Grécia pelo Frontex foram identificados como argelinos, depois vinham os paquistaneses (16%) e os afegãos (23%). Estas alarmantes estatísticas resultaram surpreendentes porque o número de argelinos era duas vezes maior do que o de marroquinos e seis vezes maior do que o de tunisinos, apesar dos distúrbios que se verificaram nesses dois países com o começo dos levantamentos árabes.
A harga, consequência da pobreza e a hogra
Todas as classes sociais são afectadas por este fenómeno: a classe trabalhadora, os desempregados, os licenciados universitários e inclusivamente os médicos e engenheiros. E interrogamo-nos: ¿porque está tão ampliada esta chaga social, chegando muito mais além das classes pobres? Esta pregunta merece ser seriamente considerada, e responder-lhe de forma adequada será uma tarefa difícil, mas vou tentar dar umas quantas respostas possíveis.
A harga representa de algum modo a procura de um futuro que chegou a um beco sem saída no país de origem. É um meio para superar as restrições à liberdade de movimento, a precariedade de emprego e a marginalização por parte das redes clientelistas; em poucas palavras, tudo o que torna a vida insustentável, um projecto de vida impossível de conseguir na Argelia dadas as actuais condições. Um habitante de uma povoação marginalizada, Sidi Salem em Annaba, no leste da Argelia, declarava ao seu irmão harrag: “Perdi as chaves do meu futuro num cemitério da Argelia chamado Sidi Salem”.
A imigração ilegal a partir da Argelia é também a consequência lógica de mais de três décadas de liberalização da economia, que pronunciou uma sentença de morte sobre uma economia produtiva e geradora de emprego, provocando um desemprego massivo e a perpetuação de uma mentalidade de busca da captação de rendas exportando gás e petróleo e importando tudo o resto.
A harga não pode realmente entender-se sem se considerar outro flagelo que consideramos hogra na Argelia. Hogra significa desdém, desprezo, exclusão e também descreve uma atitude que aprova e propaga a violência contra muitos, os laissés pour compte  (as massas esquecidas e marginalizadas).
“Preferimos morrer comidos pelos peixes do que pelos vermes”
Em consequência das restrições à liberdade de expressão e associação y também devido à falta de espaços de entretenimento, arte e criatividade, a gente jovem sente-se afogada, humilhada, sem dignidade: estrangeiros no seu próprio país e o único horizonte que podem vislumbrar é o que está além do mar. Nesse aspecto, é um acto de denúncia do autoritarismo e de certo modo trata-se de uma cultura de impugnação por parte de um grupo social que se sente marginalizado e esquecido. Numa mensagem poderosa às classes dominantes na Argelia, os jovens dizem: “Roma wa’la N’tuma”, que significa “Roma é melhor que vós”. Também diz: “Preferimos morrer comidos pelos peixes do que pelos vermes”.
Os jovens argelinos arriscam as suas vidas procurando alcançar as costas norte do Mediterrâneo para escapar do desespero de viver marginalizados e relegados a ser Hittistes, literalmente, os que se encostam às paredes, um termo utilizado para referir os ociosos que deixaram de participar na Argelia pós-colonial. Mas em vez de re-industrializar o país e investir no povo, as autoridades argelinas solicitaram apoio financeiro ao FMI, ferramenta neocolonial para o saque que antes de tudo paralisou a economia. A corrupção endémica, que converteu em situação normal na Argelia, piorou ainda mais as coisas.
Harga é apenas o reflexo do que se passou na Argelia e outros países africanos cinco décadas depois da independência, com elites dominantes que só se dedicam a satisfazer as exigências do capital estrangeiro e a seguir as ordens dos seus amos ocidentais. É também o culminar da supremacia branca, da exploração capitalista e do domínio imperialista que acompanham os regimes corruptos e repressivos em África e em outros lugares.
A tragédia da imigração que vemos no mar Mediterrâneo durará o tempo que que continuem vigentes as arreigadas estruturas autoritárias de poder e opressão, enquanto esteja em marcha o saque dos recursos naturais de África, enquanto o profundamente injusto sistema em que vivemos prossiga o seu domínio e a exclusão dos miseráveis da terra e dos condenados do mar. É necessário e urgente que nos envolvamos na luta pela justiça global contra um sistema que coloca o lucro à frente dos seres humanos. 
Hamza Hamouchene é um escritor e activista argelino co-fundador de Argelia Solidarity Campaign (ASC). Os seus artigos publicam-se no Guardian, Huffington Post, CounterPunch, Jadaliyya, New Internationalist e openDemocracy.
Fonte: http://www.middleeasteye.net/columns/wretched-sea-algerian-perspective-1568213008

ODiario.info
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