quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Jorge Cadima / Ils sont Abdallah

Ils sont Abdallah*



10.Fev.15 :: Outros autores
Jorge CadimaA hipocrisia sem limites dos chefes imperialistas homenageando o falecido déspota saudita revela algo importante: o racismo e a islamofobia que de forma cada vez mais aberta é promovida na comunicação social é – tal como o anti-semitismo dos anos 30 – apenas uma arma das classes dirigentes para dividir os trabalhadores e povos e para os arregimentar às suas políticas de guerra, exploração e rapina.


Aproveitando-se da indignação pelos crimes de Paris, dirigentes políticos mundiais desfilaram de braço dado para TV ver, longe da multidão. Na primeira fila dessa alegada marcha antiterrorista seguia boa parte dos principais responsáveis pelo terrorismo de Estado nos nossos dias: os criminosos Hollande e Cameron, seguidores de Sarkozy e Blair nas guerras de rapina e destruição no Médio Oriente e África; o carniceiro de Gaza, Netanyahu; e o carniceiro do Donbass, Porochenko. Por razões não totalmente claras, Obama faltou à chamada.
Duas semanas depois, grande parte dos mesmos dirigentes foi em peregrinação à Arábia Saudita, prestar homenagem ao falecido rei Abdallah. Não foram poupados elogios. Obama valorizou «a nossa amizade genuína e calorosa»(International New York Times, 24.1.15). Blair disse que era «um modernizador», «amado pelo seu povo e cuja falta será profundamente sentida» (declaração do seu gabinete, 23.1.15). O International NYT chama-lhe um «reformador saudita»(24.1.15). David Cameron louvou a sua «dedicação à paz» e a directora-geral do FMI declarou que «era um grande dirigente, que introduziu muitas reformas internas e, de forma muito discreta, era um grande defensor das mulheres» (Channel 4 News, 23.1.15). O Presidente de Israel, Rivlin, disse que «as suas sábias políticas contribuíram muito para a nossa região e a estabilidade do Médio Oriente» (Times of Israel, 23.1.15). A verdade é que a Arábia Saudita é uma férrea ditadura governada por uma casta de multimilionários que devem a sua riqueza, o seu poder e o seu próprio país, às manobras do imperialismo e que sempre retribuíram esses favores. O Reino é um dos mais activos patrocinadores dos bandos terroristas ao serviço do imperialismo, e não apenas os de raiz religiosa. Quando em meados dos anos 80 o Congresso dos EUA proibiu o financiamento da contra-revolução nicaraguense, os sauditas entraram com o dinheiro (NYT, 13.1.87). Não são tolerados partidos nem sindicatos, nem se faz de conta que existe um Parlamento. Não existe qualquer liberdade de expressão. Nos meses finais do reinado «reformador» e «amigo das mulheres», duas mulheres foram levadas a um tribunal antiterrorista por conduzir um automóvel (NYT, 25.12.14) e um cidadão foi condenado a 1000 chicotadas e 10 anos de prisão por criar um blog para discutir questões religiosas (Human Rights Watch, 10.1.15). O que não impediu que Hollande e Fabius se deslocassem a Riade para prestar tributo ao rei saudita e à «sua visão duma paz justa e duradoira no Médio Oriente» (Libération, 23.1.15) – visão partilhada pela França e bem patente na Síria. Sem pestanejar, Je suis Charlie deu lugar a Je suis Abdallah. O desplante é estonteante, mas não surpreendente. A Arábia Saudita nunca foi alvo das grandes campanhas mediáticas e políticas contra o fundamentalismo islâmico. Porque a verdadeira questão é outra. A Arábia Saudita e o seu «capitalismo avançado» (International NYT, 24.1.15) estão do mesmo lado da barricada que Obama, Hollande, Cameron e o sionismo.
A hipocrisia sem limites dos chefes imperialistas revela algo importante: o racismo e a islamofobia que de forma cada vez mais aberta é promovida na comunicação social é – tal como o anti-semitismo dos anos 30 – apenas uma arma das classes dirigentes para dividir os trabalhadores e povos e para os arregimentar às suas políticas de guerra, exploração e rapina. Os elogios a Abdallah mostram que não há «choque de civilizações» quando se trata de arranjar acordos entre o grande capital e garantir a continuidade dos seus chorudos lucros. Poderão existir choques de interesses. E se algum dia a classe dirigente saudita decidisse seguir outro rumo, então sim ouviríamos falar dos crimes e pecados da sua ditadura e todo o arsenal imperialista – dos mísseis Cruzeiro às agências de notação, dos drones às pseudo-ONG – cairiam sobre a Península. E se, ‘pior’ ainda, o povo saudita se erguer para varrer a sua corrupta e serventuária classe dirigente, serão ensurdecedoras as campanhas imperialistas sobre o «perigo duma nova ditadura». Foi assim no nosso país, há 40 anos.
*Este artigo foi publicado no ”Avante!” nº 2149, 5.02.2015
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