quarta-feira, 15 de outubro de 2014

As origens da crise do ébola

As origens da crise do ébola

Tariq Ali* e Allyson Pollock**
15.Out.14 :: Outros autores
A epidemia do Ébola combate-se combatendo as condições em que o vírus se propaga: a pobreza, a desnutrição, a ausência de condições mínimas de saneamento básico. A privatização dos cuidados de saúde está a criar, mesmo em países desenvolvidos, condições de desprotecção em cuidados de saúde que cada vez mais se assemelham às dos países onde esta epidemia mata aos milhares.


Tariq Ali (TA). Hoje vamos discutir medicina e o que está acontecer em África e não só ali, também em outras partes do mundo, e como a medicina privatizada está agora a dominar toda essa área excepto nuns poucos oásis que ainda restam: Cuba, Venezuela, etc. Comigo está a Professora Allyson Pollock, uma das cientistas e peritas em saúde pública mais reconhecidas na sua área em todo o mundo. Ébola: quais as origens e como se propagou tão rapidamente em três países africanos, Serra Leoa, Libéria e Guiné Conacri, e está agora a causar pânico por toda a parte?
Allyson Pollock (AP): Bem, o Ébola é um vírus, ninguém sabe com certeza quais as suas origens, alguns pensam que poderia proceder do morcego e é propagado através dos fluidos corporais, o que é um importante mecanismo de transmissão. Nas maioria das situações normais deveria ser facilmente controlado através de uma quarentena e pelo isolamento dos doentes, mas o grande problema nos países onde é mais prevalecente, aqueles que citaste, Serra Leoa, Libéria e Guiné Conacri, é que são países muito, muito pobres, onde a infraestrutura está cada vez mais destruída, especialmente no que diz respeito aos sistemas de saúde e o vírus está presente em áreas urbanas onde se verifica um estreito contacto entre humanos, e por isso é muito difícil de conter e controlar, sobretudo quando surge em zonas super povoadas e muito pobres, e com muito insuficiente saneamento básico.
T. A. A comunidade de saúde internacional ou, dito de outra forma, a Organização Mundial de Saúde, não reagiu de forma muito lenta em relação ao que poderia ter sido feito nas fases iniciais da doença?
A. P.: Bem, suponho que a OMS confiava que ia contê-la com bastante facilidade, tal como acontecera no anterior grande surto na década de 1970. Talvez tenha sucedido que não tivessem tomado em consideração o facto de que estes países onde está a emergir estão realmente entre os mais pobres dos pobres. Tanto a Libéria como a Serra Leoa têm passado por longos períodos de guerra civil, conflitos que provocaram a deslocação de refugiados, o produto interno bruto e a economia ficaram extremamente exauridos e o que temos visto em todos esses países é um esvaziamento de toda a espécie de serviços públicos, e especialmente dos sistemas de saúde. Por todas estas razões, é muito difícil contê-la, e que temos sobretudo pela frente são problemas muito concretos de pobreza. Suponho que confiavam em conter facilmente a doença, mas trata-se de um vírus uma uma taxa de mortalidade muito alta, fala-se em 55% de probabilidade de morte se é contraída. Isto é muito grave, mas um dos grandes problemas é que o mundo ocidental, sobretudo o governo dos EUA, está a responder com armas e soluções mágicas já muito vistas: o anúncio de Obama de que vai enviar 3000 soldados e o anúncio paralelo de que vão concentrar-se na produção rápida da vacina. E isto pressupõe a eliminação total do importante factor estrutural e social da saúde pública, e os fundamentos de toda a saúde pública residem em soluções muito simples e básicas. Trata-se de dispor de água potável, saneamento, boa nutrição, ou seja, que há que lutar contra os males da pobreza. E, acima de tudo, são precisos muito sistemas de saúde competentes que disponham de médicos e enfermeiros com boa formação e instalações onde pessoas possam ser isoladas e onde possa também fazer-se o que se chama “rastreio de contactos”: regressar à comunidade para averiguar com quem estiveram em contacto as pessoas afectadas para que possam ser colocadas em quarentena e isoladas até que exista a certeza de que realmente não contraíram a doença e não a transmitiram durante o período de incubação. Todas essas possibilidades desapareceram.
É por isto que estes países estão a passar, tendo uma erosão e um colapso totais dos seus sistemas de cuidados de saúde e é essa a tragédia. A população conta com pouquíssimos médicos e enfermeiros. Simplesmente não dão conta do recado e evidentemente as instalações públicas que existem estão superlotadas, estão numa situação horrível, carecem completa e totalmente de pessoal. Portanto o problema de uma epidemia vai atingi-los duramente, é o Ébola como poderia ter sido cólera ou qualquer outra doença. E vai atingi-los com toda a violência. Isto era completamente previsível e foi previsto desde há mais de 20 anos e é disso que o lobby a favor da saúde pública e os defensores do interesse público têm vindo a falar. A solução para esta epidemia nem são poções mágicas de vacinas nem é o envio de tropas. É um problema estrutural, social, económico, ambiental e resolve-se através da tomada de medidas de saúde pública em todas as frentes.
T. A. Mas, pelo que vemos, todo o sistema capitalista mundial se opõe aos serviços públicos de saúde, é a favor de soluções privatizadas, instalações privatizadas, o que significa que na maior parte dos países, e cada vez mais, existe dois ou três sistemas de níveis. Há bons hospitais de qualidade para os ricos e as pessoas que podem pagá-los, há um segundo nível para a maior parte da classe média, que também têm de pagar mas não tanto e suas instalações não são tão boas e depois há hospitais públicos, não só em África mas em países como a Índia, Paquistão e Sri Lanka, que são uma desgraça total mas nada é feito quanto a isso a nível global porque não é tido como prioridade. É um escândalo. Tendo em conta que é dessa forma que funciona o sistema de saúde de que falavas, a solução óbvia a médio e a longo prazo, é criar uma forte infra-estrutura social nesses países, mas é aí que o Fundo Monetário Internacional há quatro décadas insiste em que não invistam, que pensas que poderão fazer?
A. P.: Penso que estás a colocar dois temas importantes. Qual é o papel do FMI, do Banco Mundial, do Banco Africano de Desenvolvimento? Porque se olharmos de novo para a Libéria, Serra Leoa e Guiné Conacri, que na realidade dispõem de muitíssimos recursos naturais, o que está a suceder nesses países no que diz respeito às suas economias é que as terras estão a ser cada vez mais privatizadas e a serem ocupadas por investidores estrangeiros que estão a entrar e a saquear os seus recursos e activos. A Libéria em um PIB de um par de milhares de milhões de dólares e uma população de cinco ou seis milhões. Desse modo, como é que vão reconstruir o país quando na realidade apenas podes contar com altos executivos estrangeiros, companhias público-privadas e grandes fluxos de dinheiro a saír e não dispões de qualquer mecanismo de redistribuição porque redistribuição implica tentar construir uma sociedade mais justa e recuperar recursos.
Isso, portanto, começa com a economia, começa com o que está a acontecer com a terra, começa com o facto de o óleo de palma, o coco e a borracha serem importantes culturas comerciais e há terra, mas a sua propriedade foi transferida. Tudo isto foi muito bem documentado por organizações importantes como a Global Witness e também a Oakland Foundation dos EUA, que caracterizaram o que esta a acontecer com a terra e recordam que muitos dos camponeses, por exemplo na Libéria, constituem 70% da população e vivem em zonas rurais. Vão ser agricultores de subsistência, e isso é um problema grande, quando se tem uma população a gastar 80% do seu dinheiro em alimentos e se chega e se instalam cordões de isolamento à sua volta. Têm desde logo um problema real porque a pobreza vai acelerar ainda nesses países devido ao vírus do Ébola, porque as fronteiras estão ser encerradas ar e porque já não contas com qualquer fluxo económico. Por isso, penso que precisamos de começar pela economia porque é ela a causa dos problemas estruturais. Depois temos o papel que desempenha Organização Mundial de Saúde, que é a autoridade internacional mundial em matéria de saúde. Tem poderes para elaborar legislação mas desde há mais de 20 anos que vem sendo sistematicamente privada de fundos e o financiamento que obtém está vinculado a todo tipo de condições, condições são estabelecidas pelas grandes ONGs globais, como a Bill & Melinda Gates Foundation, que não têm uma base democrática, não prestam contas e que para além disso estão a fazer um dano incalculável através dos seus programas verticais de assistência à doença, porque não estão enraizados na saúde pública e nos sistemas de saúde pública. E um bom exemplo de um programa vertical de assistência à doença é quando se pega no Ébola e se monta uma operação para o enfrentar ignorando todas as outras causas da doença que, tal como com a tuberculose ou a malária, são a pobreza e a desnutrição e, ao mesmo tempo, se centram todos os esforços na indústria do desenvolvimento de vacinas.
Mas do que estes países precisam não é de vacinas mas de medidas apropriadas de redistribuição e de saúde pública. Não aprendemos nada com história, e isso é desesperante. Todas as grandes reformas, todos os grandes colapsos de epidemias de doenças infecciosas não foram debelados com medicamentos e vacinas, mas com medidas redistributivas, que incluem saneamento, nutrição, habitação digna e, sobretudo, uma verdadeira democratização. E com isso chega a educação e todas as outras medidas de que precisamos. Não estou a dizer que não precisamos de vacinas, mas um dos grandes problemas é que o desenvolvimento de vacinas agora está nas mãos destas fundações muito poderosas, de ONGs, como a GAVI – Global Alliance for Vaccine Initiative, que em conjunto com grandes companhias como a GSK e Merck, estão determinadas a impor patentes e a razão porque gostam de vacinas é porque elas são um meio de imunização em massa, o que implica grandes números e esses números significam dinheiro. É certo que esse dinheiro está a ser pago pelos governos ocidentais e pelo ocidente mas esse dinheiro poderia fluir com muito maior facilidade para os próprios governos [africanos] para reconstruírem os seus sistemas de saúde, porque estamos a falar da reconstrução da infra-estrutura de saúde pública e isso inclui investir em cuidados de saúde primários, sistemas comunitários de saúde, unidades de controlo das infecções a nível da comunidade, construir hospitais e formar enfermeiros e médicos. E o outro grande problema em todos estes países é o da fuga de cérebros, porque os poucos médicos e enfermeiros que ali há querem ir-se embora, e é o que está a acontecer também na Nigéria, querem trabalhar no sector privado ou querem trabalhar para estas ONGs porque ganham muito mais dinheiro, e é dessa forma que todo o sistema de saúde público se vai esvaziando. Esta situação é um problema grande porque a Fundação Gates, Bill & Melinda Gates, não acreditam no sector público, eles não acreditam num sistema democrático, de propriedade pública, ao qual se possam exigir contas publicamente.
T.A: A OMS deixou realmente de fazer aquilo que devia devido às políticas governamentais e às prioridades do consenso de Washington, isto é, neoliberalismo, privatização da medicina, incapacidade para controlar as grandes firmas farmacêuticas, no sentido de que não pode fazer o que precisa ser feito, construir se necessário sistemas de saúde pública em alguns destes países?
A. P.: Bem, há um relatório recente e muito importante no British Medical Journal, creio que de David Legg, que realmente mostra o que tem estado a acontecer à OMS no decurso das duas décadas em que os EUA se recusaram a assumir a sua parte do financiamento, e deparas-te com a situação em que quando os governos ocidentais e os EUA entram em acção, impõem as suas condições, que habitualmente giram em torno das prioridades de Bill & Melinda Gates e não em torno das prioridades essenciais da saúde pública, porque a OMS está de mãos atadas. E é efectivamente a organização mundial da saúde quem tem poderes para fazer leis e ainda assim nunca exerceu essas funções de que estamos a falar no que diz respeito aos défices democráticos que se estão a verificar quando grandes fundos globais como o Fundo Gates ou o Fundo Buffett determinam de facto quais são as prioridades mundiais, desvinculando-as da saúde pública porque as vinculam ao interesse económica, precisam de industrializar, precisam de medicalizar e precisam de farmaceuticalizar. Mas está a fermentar um grande contra ataque, uma grande reacção no mundo ocidental, há agora muito mais pensamento crítico acerca da ética, da segurança e da adequação dos medicamentos e das vacinas e este grupo começa a ser cada vez mais articulado e cada vez mais comprometido. Mas um dos grandes problemas é que, devido a esta enorme quantidade de dinheiro que o Bill & Melinda Gates Fund tem, os técnicos como eu própria, os grupos da saúde pública, se sentem tolhidos porque as suas possibilidades de conseguir trabalho ou de investigar estão ligadas aos interesses do Fundo Global. E assim sucede que o pensamento crítico se vai esvaziando, mas ao mesmo tempo temos as funções essenciais da saúde pública porque a saúde pública está ali, como diria Ibsen no “Inimigo do povo”; temos de ser realmente críticos para poder avaliar e pensar racionalmente e para recordar a toda a gente acerca quais são as determinantes sociais da saúde, o que não é nada de transcendente. Não é necessário poções mágicas nem gastar milhões em genética e em laboratórios, são necessárias coisas muito, muito básicas, mas que são essenciais porque é delas que depende a infra-estrutura da saúde pública.
T. A: Contrasta com o que está a acontecer na maior parte do mundo a situação de um país minúsculo como Cuba, que conseguiu construir um sistema de saúde pública a partir de muitos dos factores que defendes. É muito centrado na medicina preventiva, que impede que uma doença se propague, e tem um dos melhores registos de saúde pública para os cidadãos cubanos, e também ajuda a Venezuela, os cidadãos venezuelanos e de outros países da América do Sul, que estão agora em melhores condições do que muitos povos, como por exemplo os da Europa do Leste ode foi levada a cabo uma grande privatização, sem falar já em África e grandes zonas da Ásia. Estudaste este sistema?
A. P.: Sim, penso que o sistema de Cuba é muito encorajador e qualquer um que tenha estado em Cuba não pode deixar de sentir os benefícios da saúde pública. Quero dizer que é um país que realmente sabe o que significa austeridade e o seu PIB é equivalente ao de muitos destes países pobres. Mas eles não têm estas desigualdades extraordinárias porque a sua visão da medicina e as campanhas que têm levado a cabo incentivaram a saúde pública e os cuidados para todos. Portanto, actuaram extraordinariamente bem, muito, muito bem. O problema real que sucede agora surge como consequência das políticas neoliberais e da necessidade de conseguir os produtos, os medicamentos, no mercado; é um momento importante para Cuba pensar acerca disso. Têm de ter sempre presente qual é o seu PIB e o que têm alcançado com o seu produto bruto em comparação com alguns destes países mais pobres do mundo como Serra Leoa e Libéria – Libéria especialmente.
T. A: O outro aspecto é que os cubanos enviaram um bom número dos seus médicos para zonas da África, América do Sul, para qualquer lugar onde tivesse tido lugar um desastre. Recordo que durante as terríveis inundações no Paquistão, realmente horríveis, uma equipe inteira de médicos cubanos chegou e foram levados para as zonas mais remotas do país onde os homens não permitiam às mulheres que fossem vistas por médicos porque estes eram homens na sua maioria. E quando viram que na equipe cubana havia 60% de mulheres, os homens naquelas comunidades disseram: ah, vocês têm mulheres médicas, ok, podem ver as mulheres nos lugares aonde forem. Foi algo de surpreendente, as mulheres estavam encantadas e os seus filhos também, e uma médica cubana contou-me que lhe perguntaram: “de onde vêm vocês?” Ela respondeu: “viemos de Cuba”. “Onde é isso?” E ela disse: “É uma pequena ilha no Caribe”. E eles disseram: “Quem é o vosso líder? Que governo tendes?”. Foram muito cuidadosos porque estavam numa missão médica, mas disseram: “quereis ver uma foto de Fidel Castro que é o nosso líder?” Eles disseram que sim e mostraram-lhe uma foto de Castro e as mulheres disseram: “Meu deus, ele tem uma barba como a que têm naquela aldeia a 20 milhas daqui, vá lá e veja aquelas barbas”. [risos] Mas estavam incrivelmente impressionados e todos os media do Paquistão falavam do que haviam feito. Os cubanos disseram: “não queremos ajuda do governo, viemos com as nossas tendas, o nosso equipamento, a única coisa que queremos são recipientes para ferver a água, do resto ocupamo-nos nós: trazemos medicamentos connosco”. E o outro ponto a destacar é que ao contrário dos serviços de saúde construídos na Europa Ocidental após a II Guerra Mundial, incluindo o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido, os governos destes países nunca estabeleceram realmente indústrias farmacêuticas para complementar os serviços de saúde. Nem sequer pouco consideraram seriamente a possibilidade de as nacionalizar, porque isso teriam baixado os preços dos medicamentos e nunca precisariam cobrar pelas receitas. Vamos abordar um pouco um assunto que conheces muito bem – o serviço de saúde na Grã-Bretanha e nos países da União Europeia. O que está a acontecer? Uma coisa é falar de África, mas que está a acontecer com os serviços de saúde na Europa?
A. P.: O que está a acontecer na Europa, e que preocupa muitos de nós, é que se estão a importar neoliberais provenientes dos EUA, tudo o que diz respeito à indústria dos cuidados de saúde nos EUA, políticas que exauriram os fundos do país porque os cuidados de saúde atingem os 18% do PIB, em comparação com 9% ou 10% da média europeia, pelo que os investidores em cuidados de saúde necessitam de descobrir novos mercados e ocupam-se em tentar penetrar e abrir os sistemas de saúde da Europa. E naturalmente o maior troféu para eles é o SNS do Reino Unido porque durante muito tempo foi o mais socializado de todos os sistemas de cuidados de saúde. Houve uma descentralização; a Escócia, Gales e Inglaterra têm os seus próprios serviços de cuidados de saúde e a Escócia e Gales, que são territórios muito pequenos, não cobrem mais do que 8 ou 9 milhões de pessoas, mantiveram um serviço nacional de saúde mas a Inglaterra não - algo de que muitas pessoas não se aperceberam -. A Inglaterra aboliu o seu serviço nacional de saúde em 2012 com o Health and Social Care Act. O que permanece do SNS é um fluxo de financiamento e um logotipo e o que o governo agora está a fazer é acelerar o desaparecimento do que resta do SNS sob propriedade pública, encerrando hospitais, encerrando serviços e privatizando ou subcontratando tudo. Portanto, do mesmo modo que vimos na Libéria e Guiné com as terras públicas a serem transferidas como confinamentos (enclosures) para proprietários privados do estrangeiro, a mesma coisa está a acontecer com nossos serviços públicos, os nossos hospitais públicos, as nossas instalações públicas. Estão a ser encerradas e entregues a investidores privados que apenas procuram o lucro e isto está a acontecer a uma velocidade extraordinária na Inglaterra. Muito mais rapidamente do que em qualquer outro lugar da Europa, no quadro de um grande projecto neoliberal global.
T. A: Para privatizar a saúde.
A. P.: Sim, para privatizar não só o sistema de cuidados de saúde mas também em última análise o financiamento. Agora nos EUA, pouco menos da metade daqueles 18% do PIB é realmente pago pelo governo mas o governo é com efeito um contribuinte e canaliza o dinheiro para corporações privadas em busca de lucro. O governo na Inglaterra aboliu a lei dos cuidados de saúde e sociais porque queria abrir novos fluxos de financiamento. Assim, quer reduzir o nível de serviços públicos disponíveis, criando um clima de descontentamento em relação ao SNS, forçando as pessoas das classes médias, como tu e eu, a irem para o privado e pagarem do seu bolso ou com seguros de saúde, de modo que nós desertamos, saímos do que resta e, ao mesmo tempo, o governo está a reduzir todos os nossos direitos porque já não há um dever de proporcionar cuidados universais de saúde. Esse dever esteve em vigor desde 1948 e foi abolido em 2012. Ou seja, o governo reduz todos os nossos direitos, reduz tudo o de que dispunhamos e cada vez mais vamos ter de pagar do nosso bolso ou através de seguros de saúde. E a indústria privada dos seguros de saúde está aqui, está nos EUA e estão a incrementar as novas estruturas que o governo pôs em marcha para nos entregar nas mãos dos seguros de saúde privados; é a isso que estamos a assistir.
Esse novo sistema que o governo está a por em prática é modelado no dos EUA e significa uma perda imensa para nós e será também uma catástrofe para a saúde pública porque significará que muitos, muitos milhões, ficarão cada vez mais sem cuidados e naturalmente os mercados tornam as pessoas invisíveis, não são vistas, ninguém dá conta. O médico à tua frente apenas vê o paciente que vem a ele; não vê as muitas dezenas de milhares aos quais é negado acesso a cuidados de saúde, razão pela qual nos EUA os médicos não vão à rua em campanhas. Mas no Reino Unidos os médicos saem à rua em protesto, estão a favor do National Health Alliance Party, estão a apresentar candidatos contra os partidos convencionais. E assim se vê que os médicos ainda estão preparados para combater por cuidados de saúde universais; uma vez que o nosso SNS acabou completamente, foi abolido, quando tudo o que restava foi liquidado, tens que utilizar o paralelo do carvalho, árvore que parece brotar e florescer mas cujas raízes foram cortadas e que pode levar muitos meses ou anos até entrar em decadência total. Mas quando se tiver ido os médicos já não estarão ali. Serão como os médicos dos EUA que apenas se interessam por si próprios, interessados no seu próprio bolso e alheios ao acesso a cuidados universais de saúde. E isto é o crime do século, o modo como a coligação inglesa, tanto de conservadores como de democratas liberais, aboliu realmente o SNS – mas pelo caminho contaram com a enorme ajuda do governo trabalhista que os antecedeu.
T. A: Os trabalhistas lançaram as bases de toda esta situação quando estiveram no poder?
A. P.: Absolutamente. Alan Milburn, o secretário da Saúde, realizou a operação em 2000. Em 1997 o governo trabalhista teve oportunidade de reverter as políticas de privatização e mercantilização, livrar-se da iniciativa financeira privada e eles tiveram um secretário de Estado muito bom que estava bastante determinado a fazê-lo…
T. A.: Frank Dobson?
A. P.: Frank Dobson. Mas eles livraram-se dele rapidamente e no seu lugar puseram Alan Milburn e o seu plano de dez anos; agora entrou ao serviço das mesmas empresas de cuidados de saúde que ajudou a construir. Penso que é uma tragédia, como quando foi aprovado o projecto de lei para abolir o SNS muitos dos pares e muitos dos deputados tinham conflitos de interesse porque tinham realmente interesses nas empresas de cuidados de saúde que estavam a ser estabelecidas.
T. A.: É realmente ultrajante. E o Milburn é um deles.
A. P.: Sim, é uma paródia de democracia, e como médica de saúde pública considero que é uma catástrofe absoluta porque neste momento sabemos que pessoas de todas as idades, com graves doenças mentais, não podem obter acesso a cuidados de saúde, pessoas com derrames cerebrais, pessoas com doenças crónicas, é-lhes negado o acesso a cuidados de saúde e são vozes que clamam no deserto, às quais ninguém dá ouvidos, não são ouvidos porque não há mecanismos colectivos para possam já ser ouvidos. E os médicos e enfermeiros estão totalmente desesperados. Mas temos a solução; os meus colegas elaboraram um projecto de lei para restaurar o SNS e esperamos que o restaure seja qual for o partido que chegue ao poder. Portanto há uma solução, está redigida, escrita e pronta, para restaurar e restabelecer o SNS.
T. A: Será legítimo alcançar enormes lucros à custa das necessidades básicas das pessoas comuns e vulgares?
A. P.: É isso que está a acontecer, realizar lucros à custa da doença das pessoas. A história começou com a indústria farmacêutica e com a produção de vacinas, era perfeitamente aceitável conseguir lucros com elas, e portanto pensaram: porque é que não avançamos e realizamos lucros com as doenças e os cuidados? Evidentemente, o SNS na Inglaterra foi estabelecido para ser redistributivo. Era financiado através dos impostos, era progressivo, o que significava que o dinheiro fluía de acordo com as necessidades. Mas o que estamos a ver agora é que o dinheiro flui de acordo com as necessidades dos accionistas e não dos pacientes, e isso é caso para grande preocupação. Naturalmente, tudo depende da vontade política. Tudo pode ser revertido mas depende da política, da democracia e de que o povo faça com que a sua voz seja ouvida.
T. A: Estou de acordo.
**Allyson Pollock é professora de Política e Investigação da Saúde Pública na Universidade Queen Mary de Londres.
*Tariq Ali é um escritor e director de cinema paquistanês. Escreve habitualmente para The Guardian, Counterpunch, London Review of Books, Monthly Review, Z Magazine. Ali é, além disso, editor e assíduo colaborador da revista New Left Review e de Sin Permiso, e é assessor do canal de televisão sul-americano Telesur. O seu último livro, publicado por Verso, é The Obama Syndrome: Surrender at Home, War Abroad’.
Fonte: http://www.counterpunch.org/2014/10/10/the-origins-of-the-ebola-crisis/
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