domingo, 25 de maio de 2014

Monika Ertl: a justiceira do homem que cortou as mãos ao Che


Nina Ramón
25.Mai.14 :: Outros autores
A forma e o conteúdo deste texto não são habituais em odiario.info. Mas a trajectória da vida que evoca constitui, na sua escala própria, uma peça da história em construção que partilhamos. Em que a coragem de agir de acordo com as suas convicções, mesmo que com o risco da própria vida, faz parte daquilo que caracteriza o revolucionário. Seja ele homem ou mulher.


Eram dez menos vinte da manhã de 1 de Abril de 1971 em Hamburgo, Alemanha. Uma bela e elegante mulher de profundos olhos cor do céu entra no escritório do cônsul da Bolívia e espera pacientemente ser atendida. Enquanto espera, olha indiferente os quadros que adornam o escritório. Roberto Quintanilla, cônsul boliviano, vestindo elegantemente um fato escuro de lã, aparece no escritório e saúda, impressionado pela beleza dessa mulher que diz ser australiana, e que dias antes lhe havia pedido uma entrevista.
Por um instante fugaz ambos se encontram frente a frente. A vingança surge encarnada num rosto feminino muito atractivo. A mulher de beleza exuberante fixa-o nos olhos e sem mais palavras empunha um revolver e dispara três vezes. Não houve resistência, nem confronto, nem luta. Os disparos acertaram em cheio. Na sua fuga, deixou para trás uma peruca, a sua bolsa, o seu Colt Cobra 38 Special, e um pedaço de papel onde se lia “Vitória ou morte. ELN”.
¿Quem era esta audaz mulher e porque teria assassinado “Toto” Quintanilla?
Na milícia guevarista havia uma mulher que se fazia chamar Imilla, palavra cujo significado em língua quechua e aimara é menina ou jovem indígena (agora considerado um insulto na Bolívia). O seu nome de origem: Mónica (Monika) Ertl. A alemã de nascimento que havia realizado uma viagem de onze mil quilómetros desde a perdida Bolívia com o único propósito de justiçar um homem, o personagem mais odiado pela esquerda mundial: Roberto Quintanilla Pereira.
A partir desse momento ela converteu-se na mulher mais procurada do mundo. Surgiu nas primeiras páginas dos diários de toda a América. Mas ¿quais eram as suas razões e quais as suas origens?
Regressemos a 3 de Março de 1950, data em que Mónica havia chegado à Bolívia com Hans Ertl – seu pai – através da que seria conhecida como a “rota das ratazanas”, a via que facilitou a fuga de membros do regime nazi para a América do Sul no final do maior e mais sangrento conflito armado da história universal: a II Guerra Mundial.
A história de Mónica veio a ser narrada em grandes traços graças à investigação de Jürgen Schreiber. A que lhe apresento é apenas um esboço desta apaixonante história que envolve muitos sentimentos e personagens.
Hans Ertl (Alemanha, 1908 - Bolívia, 2000) alpinista, inovador de técnicas submarinas, explorador, escritor, inventor e materializador de sonhos, agricultor, converso ideológico, cineasta, antropólogo e etnógrafo amador. Muito cedo alcançou notoriedade ao retratar os dirigentes do partido nacional-socialista quando filmava a majestade, a estética corporal e a destreza atléticas dos participantes nos Jogos Olímpicos de Berlim (1936), sob a direcção da cineasta que glorificou os nazis, Leni Riefenstahl.
Entretanto, teve o infortúnio (e a posterior desgraça) de ficar conhecido para a história como o fotógrafo de Adolf Hitler, embora o iconógrafo oficial do Führer tenha sido Heinrich Hoffman, do esquadrão de defesa. Algumas fontes referem que Hans estava destacado para documentar as zonas de acção do regimento do famoso marechal de campo Erwin Rommel, apelidado ”Raposa do Deserto” , na sua travessia para Tobruk em África.
Como dado curioso o facto de Hans não ter pertencido ao partido nazi embora, apesar de detestar a guerra, exibisse com orgulho o casaco desenhado por Hugo Boss para o exército alemão, como símbolo das suas aventuras de outrora e do seu garbo ariano. Detestava que lhe chamassem “nazi”, não tinha nada contra eles, como tão pouco tinha contra os judeus. Por irónico que pareça foi outra vítima da Schutzstaffel.
No final da Segunda Guerra Mundial, quando o Terceiro Reich ruiu, os altos responsáveis, colaboradores e próximos do regime nazi fugiram da justiça europeia refugiando-se em diversos países, entre os quais os do continente americano, com o beneplácito dos respectivos governos e o apoio incondicional dos Estados Unidos. Diz-se que era uma pessoa muito pacífica e que não tinha inimigos, de modo que optou por ficar na Alemanha durante algum tempo trabalhando em tarefas inferiores ao seu status, até que emigrou com a sua família. Primeiramente para o Chile, no arquipélago austral de Juan Fernández, “fascinante paraíso perdido” onde realizou o documentário “Robinson” (1950) e outros projectos.
Após uma longa viagem, Ertl estabelece-se em 1951 em Chiquitania, a 100 quilómetros da cidade de Santa Cruz. Chegou até aí para se instalar nas prósperas e virgens terras, qual conquistador do século XV, entre a espessa e intrincada vegetação brasileiro-boliviana. Uma propriedade de 3.000 hectares onde construiria com as suas próprias mãos e com materiais locais o que foi o seu lar até aos últimos dias; “La Dolorida”.
O vagabundo da montanha, como era conhecido pelos exploradores e cientistas, deambulava com o seu passado às costas pela imensa natureza com a visão ávida de descobrir e capturar por meio da sua objectiva toda a percepção da sua mágica envolvente na Bolívia, ao mesmo tempo que começava uma nova vida acompanhado da sua esposa e das suas filhas. A mais velha chamava-se Mónica, tinha 15 anos quando teve lugar o exilio, e aqui começa a sua história…
Mónica tinha vivido a infância no meio da efervescência do nazismo na Alemanha e quando emigraram para a Bolívia aprendeu a arte do seu pai, o que lhe valeu trabalhar depois com o documentarista boliviano Jorge Ruiz. Hans realizou na Bolívia vários filmes (“Paitití” e “Hito Hito”) e transmitiu a Mónica a paixão pela fotografia. Na verdade facilmente podemos reivindicá-la como pioneira das mulheres realizadoras de documentários na história da sétima arte.
Mónica criou-se num círculo tão fechado como racista, no qual brilhavam tanto o seu pai como outro sinistro personagem a quem ela se acostumou a chamar com carinho “O tio Klaus”. Um empresário alemão (pseudónimo de Klaus Barbie (1913-1991) e ex chefe da Gestapo em Lyon, França) mais conhecido como o “Carniceiro de Lyon”.
Klaus Barbie mudaria o seu apelido para ”Altmann” antes de se envolver com a família Ertl. Este homem ganhou suficiente confiança no estreito círculo de personalidades em La Paz a ponto de o próprio pai de Mónica, que foi quem o apresentou, lhe ter inclusivamente conseguido o seu primeiro emprego na Bolívia como cidadão Judeu Alemão. Diz-se dele que posteriormente assessorou ditaduras sul-americanas.
A célebre protagonista desta história casou-se com outro alemão em La Paz e viveu nas minas de cobre do norte de Chile mas, ao fim de dez anos, o seu matrimónio fracassou e ela converteu-se numa activa política que apoiou causas nobres. Entre outras coisas ajudou a fundar um lar para órfãos em La Paz, agora convertido em hospital.
Viveu num mundo extremo rodeada de velhos lobos torturadores nazis. Não estranhava qualquer indício perturbador. Entretanto, a morte do guerrilheiro argentino Ernesto Che Guevara na selva boliviana (Outubro de 1967) tinha significado para ela o impulso final no que diz respeito aos seus ideais. Mónica – segundo a sua irmã Beatriz – ”adorava o “Che” como se fosse um Deus”.
Em resultado disto a relação entre pai e filha tornou-se difícil pela combinação desse fanatismo associado a um espírito subversivo, que constituíram talvez os factores detonantes na geração de uma postura combativa, idealista, perseverante. O seu pai foi o mais surpreendido e, embora isso lhe custasse, expulsou-a da granja. Talvez esse desafio tenha produzido nele, nos anos 60, uma certa metamorfose ideológica, a ponto de se converter em colaborador e defensor indirecto dos esquerdistas na América do Sul.
“Mónica foi a sua filha favorita, o meu pai era muito frio em relação a nós e ela parecia ser a única que amava. O meu pai nasceu como resultado de uma violação, a minha avó nunca lhe mostrou afecto e isso marcou-o para sempre. O único afecto que mostrou foi para Monika”, disse Beatriz em entrevista à BBC News.
Em finais dos anos sessenta tudo mudou com a morte do Che Guevara. Rompeu com as suas raízes e empreendeu uma viragem drástica para entrar em pleno na milícia empunhando a bandeira da Guerrilha de Ñancahuazú, tal como o seu herói fizera em vida no combate contra a desigualdade social.
Mónica deixou de ser aquela rapariga apaixonada pela objectiva para se converter em “Imilla a revolucionária” refugiada num acampamento das colinas bolivianas. À medida que foram desaparecendo da face da Terra a maior parte dos que integravam a guerrilha, a sua dor transformou-se em força para reclamar justiça convertendo-se numa peça chave operacional para o ELN.
Durante os quatro anos que permaneceu retirada no acampamento apenas uma vez por ano escreveu ao seu pai , para dizer textualmente; não se preocupem por mim… estou bem. Lamentavelmente, nunca mais voltou a vê-la; nem viva, nem morta.
Em 1971 cruza o Atlântico e volta à sua Alemanha natal, e em Hamburgo executa pessoalmente o cônsul boliviano, o coronel Roberto Quintanilla Pereira, responsável directo pelo ultraje final a Guevara: a amputação das suas mãos, na altura do seu fuzilamento em La Higuera. Com essa profanação assinou a sua sentença de morte e, desde então, a fiel “Imilla” propôs-se uma missão de alto risco: jurou que vingaria o Che Guevara.
Depois de cumprir o seu objectivo começaria uma perseguição que atravessou países e mares e que apenas encontrou o fim no ano de 1973 quando Mónica caiu morta, numa emboscada que segundo algumas fontes fidedignas lhe montou o seu traiçoeiro “tio” Klaus Barbie.
Depois da sua morte, Hans Erlt continuou a viver e a filmar documentários na Bolívia, onde morreu com a idade de 92 anos (ano 2000) na sua granja agora convertida em museu graças à ajuda de algumas instituições de Espanha e Bolívia. Ali permanece enterrado, acompanhado pelo seu velho casaco de militar alemão, seu fiel companheiro dos últimos anos. O seu sepulcro permanece entre dois pinheiros e terra da sua Baviera natal. Ele mesmo se encarregou de o preparar e a sua filha Heidi de tornar realidade seus desejos. Hans tinha expressado numa entrevista concedida à agência Reuters:
“Não quero regressar ao meu país. Quero, mesmo morto, ficar nesta minha terra.”
Diz-se que num cemitério de La Paz descansam “simbolicamente” os restos de Mónica Ertl. Na realidade nunca foram entregues ao seu pai. Os seus pedidos foram ignorados pelas autoridades depois do acontecimento. Os restos permanecem em algum sítio desconhecido do país boliviano. Jazem numa fossa comum, sem uma cruz, sem um nome, sem uma bênção do seu pai.
Assim foi a vida desta mulher num período em que, no dizer da direita fascista daqueles anos, campeava “o comunismo” e por conseguinte “o terrorismo” na Europa. Para uns o seu nome ficou gravado nos jardins da memória como guerrilheira, assassina ou talvez terrorista, para outros como uma mulher valente que cumpriu uma missão.
Na minha opinião, é a costela feminina de uma revolução que lutou pelas utopias da sua época, e que perante os nossos olhos obriga a reflectir uma vez mais sobre a frase: “Nunca subestime o valor de uma mulher”.

Fonte: Cubadebate

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