21.Fev.14 :: Outros autores
A
ideia chinesa, apresentada na Cimeira da OCS, de revitalizar as velhas
rotas comerciais que atravessaram o coração da Ásia consistiria na
articulação de uma grande rota comercial numa área que agrupa quase
metade da humanidade: três mil milhões de pessoas. Comunicação,
transporte, comércio e intercâmbios, tecnologia, figuram entre as
prioridades citadas. Mas para que um tal projecto avance existe uma
condição decisiva: que cesse a ofensiva imperialista que semeia a
instabilidade, o terrorismo e a guerra em grande parte da zona
geográfica em questão
Desde
que, em 1877, o geógrafo Ferdinand von Richthofen usou o nome de rota
da seda para se referir à grande via caravaneira que nascia em Xian e
vinha até Constantinopla através de várias estradas unindo a China e a
Europa, a sua fama, para além da importância económica do caminho
durante séculos, incendiou a imaginação de milhões de curiosos e
viajantes.
Essa rota da seda nasceu da iniciativa do Oriente e hoje, mais de dois milénios depois, mais uma vez o Oriente fala de uma nova rota. A integração económica e a cooperação entre os países que essa via milenar atravessa e a sua comunicação com a Rússia e a Europa, juntamente com o desejo de desenvolver as regiões mais ocidentais do país, assim como contribuir para o crescimento económico da Ásia Central e do Médio Oriente, encontram-se entre os objectivos da proposta que o presidente chinês Xi Jinping realizou, sem esquecer, embora não o citasse, o desejo de limitar a presença norte-americana na Ásia. Xi Jinping apresentou no Cazaquistão essa iniciativa para criar o que se denominou «cinturão económico» na antiga rota da seda, dirigida aos países da Ásia Central, mas também a outros países, ideia que consistiria na articulação de uma grande rota comercial numa área que agrupa quase metade da humanidade: três mil milhões de pessoas. Comunicação, transporte, comércio e intercâmbios, tecnologia, figuram entre as prioridades citadas pelo presidente chinês. Bishkek, onde se realizou a cimeira da OCS, foi uma das povoações frequentadas pelas caravanas da velha rota da seda.
A proposta chinesa foi anunciada na ocasião da cimeira da Organização de Cooperação de Xangai, OCS. Em meados de Setembro de 2013, celebrou-se em Bishkek o encontro dos presidentes de uma organização, que além dos seis países membros (China e Rússia, mais o Cazaquistão, o Uzbequistão, Tajiquistão e Quirguizistão), conta com a participação de cinco países observadores (Índia, Paquistão, Irão, Afeganistão e Mongólia) e com três países que se definem como «sócios para o diálogo» (Bielorrússia, Turquia e Sri Lanka), e que se reforçou de modo notável nos últimos anos. Países como o Azerbaijão e o Vietname, nos dois extremos da OCS, mostraram interesse na sua incorporação. Nessa altura, a OCS incorporou nas suas reuniões, além dos estados membros, observadores e «sócios de diálogo», países da Comunidade de Estados Independentes (CEI, a herdeira da URSS), assim como a Comunidade Económica Euroasiática (CEEA) e a Organização do Tratado de Segurança Colectiva (OTSC).
Xi Jinping aproveitou para visitar o Tajiquistão e acordar com Emomali Rakhmon a construção de um gasoduto que unirá a Ásia Central e o território chinês, e para sondar as possibilidades de colaboração em infra-estruturas, agricultura e exploração de recursos naturais. A permeabilidade das fronteiras, com as sequelas de tráfico de drogas e infiltração de grupos armados, também figurou nas conversações. O Tajiquistão está muito interessado em ligar o seu desenvolvimento incipiente ao potencial chinês e em fortalecer a OCS. O presidente chinês visitou ainda o Cazaquistão, o Uzbequistão e o Turquemenistão: a diplomacia chinesa abarcou os cinco países da Ásia central. Pequim converteu-se no principal sócio comercial da Rússia e do Cazaquistão e é já o segundo para o Quirguizistão e o Uzbequistão. A proposta destra nova rota da seda foi recebida com interesse pelo Paquistão e Afeganistão, assim como nas antigas repúblicas soviéticas da Ásia central; pode ainda ser um estímulo para a economia do Irão, e dota de grande relevância estratégica, e simultaneamente oferece uma possibilidade de desenvolvimento aos países que não têm saída para mar aberto.
Após o grande desenvolvimento experimentado pelo leste e sul do país, com focos como Xangai e as cidades do rio das Pérolas (Cantão, Foshan, Shenzhen, Dongguan e Hong Kong, cinco cidades que superam, cada uma, os sete milhões de habitantes) a China está empenhada no desenvolvimento das regiões ocidentais, e, por isso, dedica uma grande atenção à Ásia central na sua política externa, uma zona que possui grandes recursos em hidrocarbonetos e minerais. A China está a desenvolver um programa ambicioso para reorientar as prioridades da sua economia. Li Keqiang, primeiro- ministro chinês, anunciou em Davos que o seu país manterá as altas taxas de crescimento, acima de oito por cento, e que continuará a investir no exterior. Se antes Pequim pôs ênfase na exportação e no investimento, agora pretende aumentar o consumo interno para fortalecer a sua economia, e isso oferece oportunidades para outros continentes. Tanto na Ásia central e meridional, como na África e América Latina, os governos estão muito interessados no mercado chinês para a venda dos seus produtos, assim como na colaboração em infra-estruturas. As dívidas das câmaras, citadas como uma das hipotecas do desenvolvimento chinês, preocupam o governo de Pequim, embora Li Kequiang não ache que sejam especialmente graves.
O presidente chinês apresentou também em Bishkek uma proposta para o reforço da OCS, que, essencialmente, pretende uma maior colaboração entre os países membros em assuntos de segurança (pondo o acento no terrorismo e nos movimentos nacionalistas e separatistas), no aumento da confiança, pacificação do Afeganistão (foco permanente de instabilidade), e no desenvolvimento da rota da seda. Para isso, a China pretende a construção de vias de transporte que unam o oceano Pacífico e o mar Báltico, e que permitam o acesso da Ásia central ao golfo Pérsico e ao oceano Índico, rotas que, como lembrou o ministro chinês do Comércio, Gao Hucheng, impulsionariam os intercâmbios económicos na zona. Mas a aposta não é simples. A China acredita também que a crise síria agrava a instabilidade de toda a região, e, por isso, Xi Jinping aposta em negociações e num acordo de paz em Genebra.
A aliança chinesa com a Rússia contribuiu para resolver diferenças fronteiriças, mas muitas das fronteiras continuam a ser frágeis e são utilizadas para a actividade de grupos armados que, por vezes, trabalham para potências como os Estados Unidos, Arábia, Paquistão e Índia. A China quer reforçar a segurança das suas fronteiras ocidentais: as diferenças com a Índia pelas regiões de Aksai Chin e Demchok, assim como por uma parte do Caracórum, territórios que Deli reclama a Pequim; o estreito corredor que une o Afeganistão com a China; a Caxemira pela qual lutam a Índia e o Paquistão, assim como as fronteiras de Tajiquistão e Quirguizistão, em menor medida, a extensa fronteira com o Cazaquistão, são zonas quentes, por vezes frequentadas por grupos armados. Não é em vão, que os movimentos nacionalistas de Xinjiang, de carácter islamita, e do Tibete, são uma das preocupações de Pequim, consciente de que Washington joga essas cartas e de que não renunciará a aproveitá-las para criar dificuldades à China, limitar o seu fortalecimento e utilizá-las eventualmente como moeda de troca.
A segurança é prioritária, porque sem a pacificação de toda essa ampla região não poderá desenvolver-se essa grande via comercial.
De facto, a cooperação em segurança entre os países da OCS é a principal preocupação dos governos, e engloba as actividades terroristas e os grupos separatistas, mas também o crime organizado, o tráfico de drogas e de armas. A segurança melhorou em relação a anos anteriores, segundo indicou Zhang Xinfeng, responsável pela Agência da OCS que se ocupa dos assuntos de terrorismo, embora o rigorismo religioso (sobretudo muçulmano; mas também budista) que mantém laços com os traficantes de armas e de drogas, e com uma rede de serviços secretos, é muito activo. Zhang depende directamente do Conselho dos chefes de Estado da OCS. Da importância da agência contraterrorista da OCS (criada em 2004 e que tem a sede em Tasckent, Uzbequistão) dá ideia o facto de que seja um dos órgãos permanentes da organização, e que a cimeira de Bishkek decidiu centralizar a informação e atender prioritariamente às cumplicidades de grupos terroristas com o crime organizado, devido à retirada de tropas da OTAN no Afeganistão e da nova situação que se pode criar na região.
Essa foi uma das razões da entrevista de Putin com o presidente afegão, Karzai, que reclamou o apoio russo. Moscovo fornece armas ao governo de Cabul, já que está interessado, sobretudo, na pacificação do país e em evitar um colapso afegão descontrolado que criaria sérios problemas nas suas fronteiras, reforçaria o tráfico de estupefacientes, tornaria mais difícil a contenção dos senhores da guerra afegãos, e reforçaria os grupos armados islamitas que actuam no Cáucaso. Karzai vai concorrer novamente às eleições presidenciais que devem ter lugar em 2014, num escrutínio que nem sequer é seguro segundo o próprio Karzai, embora falar de democracia no Afeganistão seja uma ilusão de mau gosto.
A implicação da OCS nas principais crises internacionais constatou-se no seu interesse pelos estudos antimísseis que Washington prepara, que podem quebrar o equilíbrio internacional e afectar a estabilidade estratégica. O frequente apelo norte-americano acerca do seu direito de garantir a sua própria segurança recebeu fortes críticas da OCS, baseadas no princípio de que a segurança de um país não pode supor o aumento de riscos para outros. O mesmo quando abordou a crise síria, a situação na Coreia, e as disputas sobre o Irão.
Sobre a Síria, a cimeira da OCS apoiou o controlo e destruição do arsenal químico de Damasco, fortalecendo a proposta russa, e apoiou a convocatória de uma segunda conferência em Genebra entre o governo sírio e os grupos armados insurgentes. Putin confirmou que a declaração do governo de Bashar al-Assad aceitando a sua incorporação na Convenção Internacional sobre a Proibição de Armas Químicas era uma prova da disposição da Síria para resolver a crise através de negociações com a oposição. O apoio iraniano à decisão de Damasco procurava também deter a guerra síria e impedir a sua propagação a outros países vizinhos, e foi sublinhada pelo presidente iraniano, Hasán Rohani, recordando que o seu país tem sido a principal vítima do armamento químico. Todos os países da OCS e associados recusaram o recurso à força contra Damasco, que os Estados Unidos tinham anunciado, e estavam conscientes da advertência de Obama ao afirmar que os Estados Unidos impedirão que o Irão fabrique armas nucleares e que, para isso, estão dispostos a intervir militarmente.
No entanto, os movimentos diplomáticos podem mudar o cenário: após a intervenção de Hasan Rohani na Assembleia Geral da ONU, e depois do encontro entre John Kerry e o ministro do exterior iraniano, Javad Zarif, o próprio Obama tomou a iniciativa de falar com Rohaní, no início de uma tímida distensão que pode baixar as hostilidades na região. Washington quer impedir a proliferação nuclear no Médio Oriente, embora sem exigir o desarmamento atómico de Israel, decisão que supõe defender o monopólio nuclear de Israel na zona. Israel é um dos poucos países no mundo que não subscreveu o Tratado de Não Proliferação Nuclear, circunstância que, ante as exigências norte-americanas para fiscalizar o programa nuclear iraniano, fez com que Rohani lembrasse em Nova Iorque que se um país acede a inspecções aos seus programas e instalações nucleares, também o resto dos países deveria fazer o mesmo: Israel não pode ignorar essa realidade. A OCS, numa inequívoca referência aos Estados Unidos, declarou no seu comunicado final a sua recusa às ameaças militares e à imposição de sanções contra o Irão, que tem sido o recurso habitual de Washington na sua disputa com Teerão. A defesa a utilizar a energia nuclear com fins civis e pacíficos foi uma ameaça de apoio ao presidente iraniano, Hasán Rohani, que ofereceu em Bishkek garantias de que o programa nuclear iraniano não persegue fins militares.
Uma das preocupações da Rússia e da China é a proliferação de grupos terroristas que operam na Síria do lado dos rebeldes e que podem transformar-se depois em vários focos de conflito em muitos países asiáticos e na própria Rússia. Serguei Smirnov, subdirector do FSB russo (continuador da KGB soviética), acha que umas quatro centenas de islamitas russos lutam junto dos rebeldes na Síria, e não oculta o perigo que representam para o seu país quando voltarem. O recrutamento de mercenários, confirmado por Smirnov, afecta todos os países da Ásia central, e a frequência de atentados é preocupante. Várias fontes calculam mais de dez mil islamitas estrangeiros nos rebeldes sírios, de que mil seriam originários da União Europeia. Para não falar de outros riscos: em finais de Setembro de 2013, Lotfi Ben Jeddou, ministro do Interior da Tunísia, declarou que as forças de segurança do seu país tinham impedido que mais de seis mil tunisinos islamitas se incorporassem nas fileiras rebeldes sírias, e que centenas de mulheres tinham sido envolvidas numa Jihad estranha al-Kikah, ou guerra santa de sexo, para satisfazer as necessidades sexuais dos grupos insurgentes. Muitas delas, segundo Bem Jeddou, voltam grávidas para a Tunísia, por vezes psicologicamente destruídas, por quem lhes havia prometido o paraíso dos crentes.
Sobre a Coreia (assunto que preocupa essencialmente a China), a OCS postulou a renovação das negociações, orientadas para a desnuclearização da península, que é defendida tanto por Moscovo e Pequim, como por Seul e Tóquio, enquanto Washington se nega a dar garantias a Pyongyang ou a firmar um tratado bilateral de não-agressão com a Coreia do Norte, e recusa discutir a desnuclearização da península porque afectaria a sua retirada militar da zona. Dessa forma, pese à sua retórica diplomática, bloqueia uma solução definitiva para a Coreia.
A declaração de Bishkek recolheu os velhos princípios de Bandung sobre o respeito à soberania e integridade dos países, a resolução pacífica das crises, a não ingerência e a renúncia ao uso da força, e defendeu o papel das Nações Unidas. Não era necessário citar os Estados Unidos, o país que violou na última década todos esses princípios, e que mantém uma política externa agressiva que está na origem de muitos conflitos. Alexei Arbatov, membro da Academia de Ciências Russa e especialista em segurança internacional, lembra que, nos dois últimos anos, o Governo Obama paralisou qualquer avanço nas negociações sobre armamento estratégico, sobre os escudos antimíssil, sobre instrumentos tácticos de guerra e, em geral, sobre o controlo de armas. Apesar de tudo, os Estados Unidos estão a reavaliar a sua política externa, conscientes de que perderam a guerra no Iraque, a despeito da versão propagandística que difunde; de que não conseguiu dobrar o Irão, e também de que, após doze anos de guerra, a invasão do Afeganistão pode tornar-se um fracasso estratégico; mas faz esse exame sem renunciar ao papel histórico providencial que julga pertencer-lhe.
A Rússia reforça paulatinamente o seu papel no Médio Oriente, imersa na contradição entre a sua debilidade económica persistente pela incapacidade do governo de impulsionar a modernização e a reconstrução da sua indústria, e o seu renovado protagonismo internacional, patente na crise síria, já longe dos dias da diplomacia claudicante de Yeltsin. Por seu lado, a China não pretende assumir o papel que os Estados Unidos desempenharam nas últimas décadas, embora não deixe de reforçar-se e marcar as linhas vermelhas que Washington não deve cruzar. Boa parte da sua diplomacia assenta nas ofertas de colaboração económica com outros países, como na proposta da nova rota da seda.
A advertência de Putin sobre a pretensão norte-americana de reconstruir um mundo unipolar ilustra perfeitamente o retrocesso norte-americano mas também os perigos de uma situação volátil. «Vemos a intenção de reanimar […] um modelo de mundo unificado, unipolar, de erodir o direito internacional e a soberania das nações. Este mundo unipolar necessita de vassalos, não de Estados soberanos» declarou Putin no Clube Valdai. Antes, Putin, num artigo no New York Times, tinha criticado a soberba norte-americana de se considerar um «país excepcional», com os perigos a isso inerentes, embora Obama tenha refutado a crítica na sua intervenção perante a ONU e reafirmasse a «excepcionalidade norte-americana» que lhe dá o direito de dirigir o mundo, dado que, segundo o presidente norte-americano, de outra forma criar-se-ia um «vazio de liderança» que nenhum outro país poderia preencher, e porque, ainda segundo Obama, os Estados Unidos mostraram «sacrificando sangue e dinheiro, uma vontade de defender não apenas os nossos interesses, mas os de todos os outros». Essa visão estratégica, tão próxima da ideia religiosa do «povo eleito» que os judeus rigoristas e o governo de Israel mantêm, é a que protagonizou as guerras da última década, os bombardeamentos sobre populações civis, os massacres no Afeganistão, Iraque e Síria, e os ataques com drones em numerosos países. Escapar do caos, das guerras e da destruição foi uma das preocupações da cimeira da OCS, e nessa direcção tem sentido a ideia chinesa de revitalizar as velhas rotas comerciais que atravessaram o coração da Ásia.
Se prosperar, a nova rota da seda pode inaugurar um intenso intercâmbio entre a Europa e a Ásia, e contribuir para o desenvolvimento de muitos países asiáticos, máxima quando o tempo necessário para fazer o trajecto entre Xangai ou o rio das Pérolas e a Europa é de uns dez ou doze dias por conexão ferroviária, e a terça parte do tempo necessário para cobri-lo por rota marítima. A proposta de XiJinping dessa nova rota da seda abre um cenário que pode mudar a geografia torturada da Ásia central e do Médio Oriente, se as pulsões entre a guerra e a destruição que as agressões norte-americanas têm semeado na zona cederem o passo a uma época de paz, colaboração e desenvolvimento.
Fonte: LaHaine.org, 24.12.2013
Essa rota da seda nasceu da iniciativa do Oriente e hoje, mais de dois milénios depois, mais uma vez o Oriente fala de uma nova rota. A integração económica e a cooperação entre os países que essa via milenar atravessa e a sua comunicação com a Rússia e a Europa, juntamente com o desejo de desenvolver as regiões mais ocidentais do país, assim como contribuir para o crescimento económico da Ásia Central e do Médio Oriente, encontram-se entre os objectivos da proposta que o presidente chinês Xi Jinping realizou, sem esquecer, embora não o citasse, o desejo de limitar a presença norte-americana na Ásia. Xi Jinping apresentou no Cazaquistão essa iniciativa para criar o que se denominou «cinturão económico» na antiga rota da seda, dirigida aos países da Ásia Central, mas também a outros países, ideia que consistiria na articulação de uma grande rota comercial numa área que agrupa quase metade da humanidade: três mil milhões de pessoas. Comunicação, transporte, comércio e intercâmbios, tecnologia, figuram entre as prioridades citadas pelo presidente chinês. Bishkek, onde se realizou a cimeira da OCS, foi uma das povoações frequentadas pelas caravanas da velha rota da seda.
A proposta chinesa foi anunciada na ocasião da cimeira da Organização de Cooperação de Xangai, OCS. Em meados de Setembro de 2013, celebrou-se em Bishkek o encontro dos presidentes de uma organização, que além dos seis países membros (China e Rússia, mais o Cazaquistão, o Uzbequistão, Tajiquistão e Quirguizistão), conta com a participação de cinco países observadores (Índia, Paquistão, Irão, Afeganistão e Mongólia) e com três países que se definem como «sócios para o diálogo» (Bielorrússia, Turquia e Sri Lanka), e que se reforçou de modo notável nos últimos anos. Países como o Azerbaijão e o Vietname, nos dois extremos da OCS, mostraram interesse na sua incorporação. Nessa altura, a OCS incorporou nas suas reuniões, além dos estados membros, observadores e «sócios de diálogo», países da Comunidade de Estados Independentes (CEI, a herdeira da URSS), assim como a Comunidade Económica Euroasiática (CEEA) e a Organização do Tratado de Segurança Colectiva (OTSC).
Xi Jinping aproveitou para visitar o Tajiquistão e acordar com Emomali Rakhmon a construção de um gasoduto que unirá a Ásia Central e o território chinês, e para sondar as possibilidades de colaboração em infra-estruturas, agricultura e exploração de recursos naturais. A permeabilidade das fronteiras, com as sequelas de tráfico de drogas e infiltração de grupos armados, também figurou nas conversações. O Tajiquistão está muito interessado em ligar o seu desenvolvimento incipiente ao potencial chinês e em fortalecer a OCS. O presidente chinês visitou ainda o Cazaquistão, o Uzbequistão e o Turquemenistão: a diplomacia chinesa abarcou os cinco países da Ásia central. Pequim converteu-se no principal sócio comercial da Rússia e do Cazaquistão e é já o segundo para o Quirguizistão e o Uzbequistão. A proposta destra nova rota da seda foi recebida com interesse pelo Paquistão e Afeganistão, assim como nas antigas repúblicas soviéticas da Ásia central; pode ainda ser um estímulo para a economia do Irão, e dota de grande relevância estratégica, e simultaneamente oferece uma possibilidade de desenvolvimento aos países que não têm saída para mar aberto.
Após o grande desenvolvimento experimentado pelo leste e sul do país, com focos como Xangai e as cidades do rio das Pérolas (Cantão, Foshan, Shenzhen, Dongguan e Hong Kong, cinco cidades que superam, cada uma, os sete milhões de habitantes) a China está empenhada no desenvolvimento das regiões ocidentais, e, por isso, dedica uma grande atenção à Ásia central na sua política externa, uma zona que possui grandes recursos em hidrocarbonetos e minerais. A China está a desenvolver um programa ambicioso para reorientar as prioridades da sua economia. Li Keqiang, primeiro- ministro chinês, anunciou em Davos que o seu país manterá as altas taxas de crescimento, acima de oito por cento, e que continuará a investir no exterior. Se antes Pequim pôs ênfase na exportação e no investimento, agora pretende aumentar o consumo interno para fortalecer a sua economia, e isso oferece oportunidades para outros continentes. Tanto na Ásia central e meridional, como na África e América Latina, os governos estão muito interessados no mercado chinês para a venda dos seus produtos, assim como na colaboração em infra-estruturas. As dívidas das câmaras, citadas como uma das hipotecas do desenvolvimento chinês, preocupam o governo de Pequim, embora Li Kequiang não ache que sejam especialmente graves.
O presidente chinês apresentou também em Bishkek uma proposta para o reforço da OCS, que, essencialmente, pretende uma maior colaboração entre os países membros em assuntos de segurança (pondo o acento no terrorismo e nos movimentos nacionalistas e separatistas), no aumento da confiança, pacificação do Afeganistão (foco permanente de instabilidade), e no desenvolvimento da rota da seda. Para isso, a China pretende a construção de vias de transporte que unam o oceano Pacífico e o mar Báltico, e que permitam o acesso da Ásia central ao golfo Pérsico e ao oceano Índico, rotas que, como lembrou o ministro chinês do Comércio, Gao Hucheng, impulsionariam os intercâmbios económicos na zona. Mas a aposta não é simples. A China acredita também que a crise síria agrava a instabilidade de toda a região, e, por isso, Xi Jinping aposta em negociações e num acordo de paz em Genebra.
A aliança chinesa com a Rússia contribuiu para resolver diferenças fronteiriças, mas muitas das fronteiras continuam a ser frágeis e são utilizadas para a actividade de grupos armados que, por vezes, trabalham para potências como os Estados Unidos, Arábia, Paquistão e Índia. A China quer reforçar a segurança das suas fronteiras ocidentais: as diferenças com a Índia pelas regiões de Aksai Chin e Demchok, assim como por uma parte do Caracórum, territórios que Deli reclama a Pequim; o estreito corredor que une o Afeganistão com a China; a Caxemira pela qual lutam a Índia e o Paquistão, assim como as fronteiras de Tajiquistão e Quirguizistão, em menor medida, a extensa fronteira com o Cazaquistão, são zonas quentes, por vezes frequentadas por grupos armados. Não é em vão, que os movimentos nacionalistas de Xinjiang, de carácter islamita, e do Tibete, são uma das preocupações de Pequim, consciente de que Washington joga essas cartas e de que não renunciará a aproveitá-las para criar dificuldades à China, limitar o seu fortalecimento e utilizá-las eventualmente como moeda de troca.
A segurança é prioritária, porque sem a pacificação de toda essa ampla região não poderá desenvolver-se essa grande via comercial.
De facto, a cooperação em segurança entre os países da OCS é a principal preocupação dos governos, e engloba as actividades terroristas e os grupos separatistas, mas também o crime organizado, o tráfico de drogas e de armas. A segurança melhorou em relação a anos anteriores, segundo indicou Zhang Xinfeng, responsável pela Agência da OCS que se ocupa dos assuntos de terrorismo, embora o rigorismo religioso (sobretudo muçulmano; mas também budista) que mantém laços com os traficantes de armas e de drogas, e com uma rede de serviços secretos, é muito activo. Zhang depende directamente do Conselho dos chefes de Estado da OCS. Da importância da agência contraterrorista da OCS (criada em 2004 e que tem a sede em Tasckent, Uzbequistão) dá ideia o facto de que seja um dos órgãos permanentes da organização, e que a cimeira de Bishkek decidiu centralizar a informação e atender prioritariamente às cumplicidades de grupos terroristas com o crime organizado, devido à retirada de tropas da OTAN no Afeganistão e da nova situação que se pode criar na região.
Essa foi uma das razões da entrevista de Putin com o presidente afegão, Karzai, que reclamou o apoio russo. Moscovo fornece armas ao governo de Cabul, já que está interessado, sobretudo, na pacificação do país e em evitar um colapso afegão descontrolado que criaria sérios problemas nas suas fronteiras, reforçaria o tráfico de estupefacientes, tornaria mais difícil a contenção dos senhores da guerra afegãos, e reforçaria os grupos armados islamitas que actuam no Cáucaso. Karzai vai concorrer novamente às eleições presidenciais que devem ter lugar em 2014, num escrutínio que nem sequer é seguro segundo o próprio Karzai, embora falar de democracia no Afeganistão seja uma ilusão de mau gosto.
A implicação da OCS nas principais crises internacionais constatou-se no seu interesse pelos estudos antimísseis que Washington prepara, que podem quebrar o equilíbrio internacional e afectar a estabilidade estratégica. O frequente apelo norte-americano acerca do seu direito de garantir a sua própria segurança recebeu fortes críticas da OCS, baseadas no princípio de que a segurança de um país não pode supor o aumento de riscos para outros. O mesmo quando abordou a crise síria, a situação na Coreia, e as disputas sobre o Irão.
Sobre a Síria, a cimeira da OCS apoiou o controlo e destruição do arsenal químico de Damasco, fortalecendo a proposta russa, e apoiou a convocatória de uma segunda conferência em Genebra entre o governo sírio e os grupos armados insurgentes. Putin confirmou que a declaração do governo de Bashar al-Assad aceitando a sua incorporação na Convenção Internacional sobre a Proibição de Armas Químicas era uma prova da disposição da Síria para resolver a crise através de negociações com a oposição. O apoio iraniano à decisão de Damasco procurava também deter a guerra síria e impedir a sua propagação a outros países vizinhos, e foi sublinhada pelo presidente iraniano, Hasán Rohani, recordando que o seu país tem sido a principal vítima do armamento químico. Todos os países da OCS e associados recusaram o recurso à força contra Damasco, que os Estados Unidos tinham anunciado, e estavam conscientes da advertência de Obama ao afirmar que os Estados Unidos impedirão que o Irão fabrique armas nucleares e que, para isso, estão dispostos a intervir militarmente.
No entanto, os movimentos diplomáticos podem mudar o cenário: após a intervenção de Hasan Rohani na Assembleia Geral da ONU, e depois do encontro entre John Kerry e o ministro do exterior iraniano, Javad Zarif, o próprio Obama tomou a iniciativa de falar com Rohaní, no início de uma tímida distensão que pode baixar as hostilidades na região. Washington quer impedir a proliferação nuclear no Médio Oriente, embora sem exigir o desarmamento atómico de Israel, decisão que supõe defender o monopólio nuclear de Israel na zona. Israel é um dos poucos países no mundo que não subscreveu o Tratado de Não Proliferação Nuclear, circunstância que, ante as exigências norte-americanas para fiscalizar o programa nuclear iraniano, fez com que Rohani lembrasse em Nova Iorque que se um país acede a inspecções aos seus programas e instalações nucleares, também o resto dos países deveria fazer o mesmo: Israel não pode ignorar essa realidade. A OCS, numa inequívoca referência aos Estados Unidos, declarou no seu comunicado final a sua recusa às ameaças militares e à imposição de sanções contra o Irão, que tem sido o recurso habitual de Washington na sua disputa com Teerão. A defesa a utilizar a energia nuclear com fins civis e pacíficos foi uma ameaça de apoio ao presidente iraniano, Hasán Rohani, que ofereceu em Bishkek garantias de que o programa nuclear iraniano não persegue fins militares.
Uma das preocupações da Rússia e da China é a proliferação de grupos terroristas que operam na Síria do lado dos rebeldes e que podem transformar-se depois em vários focos de conflito em muitos países asiáticos e na própria Rússia. Serguei Smirnov, subdirector do FSB russo (continuador da KGB soviética), acha que umas quatro centenas de islamitas russos lutam junto dos rebeldes na Síria, e não oculta o perigo que representam para o seu país quando voltarem. O recrutamento de mercenários, confirmado por Smirnov, afecta todos os países da Ásia central, e a frequência de atentados é preocupante. Várias fontes calculam mais de dez mil islamitas estrangeiros nos rebeldes sírios, de que mil seriam originários da União Europeia. Para não falar de outros riscos: em finais de Setembro de 2013, Lotfi Ben Jeddou, ministro do Interior da Tunísia, declarou que as forças de segurança do seu país tinham impedido que mais de seis mil tunisinos islamitas se incorporassem nas fileiras rebeldes sírias, e que centenas de mulheres tinham sido envolvidas numa Jihad estranha al-Kikah, ou guerra santa de sexo, para satisfazer as necessidades sexuais dos grupos insurgentes. Muitas delas, segundo Bem Jeddou, voltam grávidas para a Tunísia, por vezes psicologicamente destruídas, por quem lhes havia prometido o paraíso dos crentes.
Sobre a Coreia (assunto que preocupa essencialmente a China), a OCS postulou a renovação das negociações, orientadas para a desnuclearização da península, que é defendida tanto por Moscovo e Pequim, como por Seul e Tóquio, enquanto Washington se nega a dar garantias a Pyongyang ou a firmar um tratado bilateral de não-agressão com a Coreia do Norte, e recusa discutir a desnuclearização da península porque afectaria a sua retirada militar da zona. Dessa forma, pese à sua retórica diplomática, bloqueia uma solução definitiva para a Coreia.
A declaração de Bishkek recolheu os velhos princípios de Bandung sobre o respeito à soberania e integridade dos países, a resolução pacífica das crises, a não ingerência e a renúncia ao uso da força, e defendeu o papel das Nações Unidas. Não era necessário citar os Estados Unidos, o país que violou na última década todos esses princípios, e que mantém uma política externa agressiva que está na origem de muitos conflitos. Alexei Arbatov, membro da Academia de Ciências Russa e especialista em segurança internacional, lembra que, nos dois últimos anos, o Governo Obama paralisou qualquer avanço nas negociações sobre armamento estratégico, sobre os escudos antimíssil, sobre instrumentos tácticos de guerra e, em geral, sobre o controlo de armas. Apesar de tudo, os Estados Unidos estão a reavaliar a sua política externa, conscientes de que perderam a guerra no Iraque, a despeito da versão propagandística que difunde; de que não conseguiu dobrar o Irão, e também de que, após doze anos de guerra, a invasão do Afeganistão pode tornar-se um fracasso estratégico; mas faz esse exame sem renunciar ao papel histórico providencial que julga pertencer-lhe.
A Rússia reforça paulatinamente o seu papel no Médio Oriente, imersa na contradição entre a sua debilidade económica persistente pela incapacidade do governo de impulsionar a modernização e a reconstrução da sua indústria, e o seu renovado protagonismo internacional, patente na crise síria, já longe dos dias da diplomacia claudicante de Yeltsin. Por seu lado, a China não pretende assumir o papel que os Estados Unidos desempenharam nas últimas décadas, embora não deixe de reforçar-se e marcar as linhas vermelhas que Washington não deve cruzar. Boa parte da sua diplomacia assenta nas ofertas de colaboração económica com outros países, como na proposta da nova rota da seda.
A advertência de Putin sobre a pretensão norte-americana de reconstruir um mundo unipolar ilustra perfeitamente o retrocesso norte-americano mas também os perigos de uma situação volátil. «Vemos a intenção de reanimar […] um modelo de mundo unificado, unipolar, de erodir o direito internacional e a soberania das nações. Este mundo unipolar necessita de vassalos, não de Estados soberanos» declarou Putin no Clube Valdai. Antes, Putin, num artigo no New York Times, tinha criticado a soberba norte-americana de se considerar um «país excepcional», com os perigos a isso inerentes, embora Obama tenha refutado a crítica na sua intervenção perante a ONU e reafirmasse a «excepcionalidade norte-americana» que lhe dá o direito de dirigir o mundo, dado que, segundo o presidente norte-americano, de outra forma criar-se-ia um «vazio de liderança» que nenhum outro país poderia preencher, e porque, ainda segundo Obama, os Estados Unidos mostraram «sacrificando sangue e dinheiro, uma vontade de defender não apenas os nossos interesses, mas os de todos os outros». Essa visão estratégica, tão próxima da ideia religiosa do «povo eleito» que os judeus rigoristas e o governo de Israel mantêm, é a que protagonizou as guerras da última década, os bombardeamentos sobre populações civis, os massacres no Afeganistão, Iraque e Síria, e os ataques com drones em numerosos países. Escapar do caos, das guerras e da destruição foi uma das preocupações da cimeira da OCS, e nessa direcção tem sentido a ideia chinesa de revitalizar as velhas rotas comerciais que atravessaram o coração da Ásia.
Se prosperar, a nova rota da seda pode inaugurar um intenso intercâmbio entre a Europa e a Ásia, e contribuir para o desenvolvimento de muitos países asiáticos, máxima quando o tempo necessário para fazer o trajecto entre Xangai ou o rio das Pérolas e a Europa é de uns dez ou doze dias por conexão ferroviária, e a terça parte do tempo necessário para cobri-lo por rota marítima. A proposta de XiJinping dessa nova rota da seda abre um cenário que pode mudar a geografia torturada da Ásia central e do Médio Oriente, se as pulsões entre a guerra e a destruição que as agressões norte-americanas têm semeado na zona cederem o passo a uma época de paz, colaboração e desenvolvimento.
Fonte: LaHaine.org, 24.12.2013
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