quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Cultura / “Todas as interrogações permanecem válidas”

Entrevista com Graziella Pogolotti



13.Fev.14 :: Outros autores
Com o triunfo da Revolução em Cuba produziram-se mudanças substanciais em duas direcções fundamentais do campo da Cultura. Uma traduziu-se na mudança de situação dos escritores e artistas na sociedade. Outra foi a posta em prática de acções dirigidas a promover uma progressiva democratização da cultura. Nos dias de hoje, em que o tema dos valores foi de novo colocado no lugar que merece, a cultura também desempenha um papel fundamental. A presença da cultura traduz-se numa maior densidade dos valores espirituais que se repercute em formas de comportamento, formas de relações entre as pessoas e também nos modos e maneiras de disfrutar o que a vida e a realidade nos oferece.



Graziella Pogolotti sabe que a história não se repete, e que nela se entrelaçam ao mesmo tempo uma etapa com outra num ciclo interminável e interdependente. Por isso nunca se cansa de a indagar, de a interpretar, buscando responder às interrogações que podem colocar no seu justo lugar os acontecimentos que conformaram o nosso devir como nação e que delinearam, muitas vezes com exactidão meridiana, o nosso futuro.
Por isso para ela é prática obrigatória estabelecer um diálogo fecundo com o tempo que nos trouxe até aqui, procurar no novelo a ponta do fio e segui-lo. Assim, disponibiliza-se solicitamente quando lhe pedimos para conversar sobre o Triunfo Revolucionário de 59 e o papel decisivo que a Cultura desempenhou, e como parte dela o movimento reflexivo e de criação artística para a sua consolidação, partindo do entendimento de que só homens e mulheres cultos, lúcidos podiam dar um novo corpo à liberdade, esse outro nome com que a Revolução Cubana buscava refundar a vida.
“Com o triunfo da Revolução produziram-se mudanças substanciais em duas direcções fundamentais do campo da Cultura. Uma delas traduziu-se na mudança de situação dos escritores e artistas na sociedade. Até então os intelectuais tinham sido marginalizados; eram trabalhadores solitários que obtinham alguma promoção por meios próprios e através do que podiam fazer as instituições culturais que se tinham ido formando por iniciativa das pessoas interessadas em desenvolver a vida, o ambiente criativo no país, como foram fundamentalmente o Liceum Yatch Tennis Club, uma organização feminina que disponibilizava um espaço para os artistas plásticos, músicos, escritores; e a organização Nuestro Tiempo, que era sustentada pelo sector artístico de esquerda durante os anos da ditadura de Batista. Mais longe do que isso os escritores e artistas não tinham uma presença pública e tão pouco existia um reconhecimento social pelo seu labor profissional. Isso favoreceu, na prática, o apoio maioritário dos escritores e artistas ao processo revolucionário, e apenas em casos individuais, por razões muito específicas, algumas figuras se mantiveram à distância. Mas a realidade é que todos, pertencentes às diferentes gerações que estavam actuando naquele momento em Cuba, viram na Revolução o caminho para a realização dos seus projectos.
“Há um livro de Ana Cairo publicado, se não estou em erro, pela Biblioteca Nacional, que recolhe um conjunto de testemunhos daquele primeiro momento. Do mesmo modo que não houve diferenças geracionais nesse apoio, o mesmo se verificou no que diz respeito a correntes estéticas; e muito rapidamente as instituições culturais que emergiram no ano 59 como foram o ICAIC e a Casa de las Américas, bem como a nova direcção de Cultura designada naquele momento, começaram a viabilizar projectos que implicavam a participação activa dos escritores e artistas.
“Corresponde a essa etapa a revitalização das revistas, a presença da cultura na grande imprensa e a aparição de órgãos tão importantes como Lunes de Revolución, a revista Casa, La Nueva Revista Cubana e também muito rapidamente, num prazo de muito poucos anos, sucedeu a aparição das editoras que concediam espaço à grande literatura do mundo, à literatura latino-americana, mas também à literatura cubana.
“Creio que a outra direcção importante derivada do triunfo da Revolução foi a posta em prática de acções dirigidas a promover uma progressiva democratização da cultura. Ambas as linhas se complementam porque um escritor, um artista, não necessita somente de espaços para realizar a sua obra e para dá-la a conhecer mas necessita também de interlocutores, necessita de um público, um destinatário, e ao fomento desse público dirigiram-se, por um lado, as instituições recém-criadas, não somente as estruturas governamentais mas também os projectos artísticos como foi o caso paradigmático do Ballet Nacional de Cuba que levou a cabo, digamos, uma alfabetização do povo ao actuar em zonas camponesas, em acampamentos militares, com o propósito de criar um público como o nosso, que é um público excepcionalmente preparado para assistir a um espectáculo que em outros países chega somente a grupos de elite. Não vou a fazer uma enumeração. O que estou a fazer é apenas dar alguns exemplos.
“Recordo que num desses testemunhos recolhidos por Ana Cairo, Virgilio Piñera falava com muita ênfase, com muita paixão, do facto de que o escritor estava começando a conquistar a sua identidade. E ele comentava algo que eu tinha escutado muitas vezes, que o povo em Cuba conhecia os jornalistas, mas não conhecia os escritores. Muitos desses escritores puderam publicar as suas obras e muitos também publicaram, dirigiram e patrocinaram revistas, editoras, etc.”.
Fernando Martínez Heredia disse numa entrevista que os intelectuais têm deveres difíceis na Revolução, ¿considera que esses deveres foram identificados e assumidos pelos artistas e escritores nos complexos primeiros anos iniciáticos?
Nos anos sessenta os escritores e artistas partilharam uma comunidade de interesses profissionais, de interesses próprios, mas não podiam permanecer indiferentes face às mudanças de outra natureza que a Revolução estava promovendo. Não podiam permanecer indiferentes perante fenómenos tão transcendentes como a Campanha de Alfabetização, e igualmente no que se refere à Reforma Agraria uma vez que a situação trágica do campesinato era bem conhecida em Cuba. Na altura de Girón e depois na altura da Crise de Outubro os escritores, mesmo aqueles que tinham estado observando com algumas dúvidas o fenómeno revolucionário, sentiram-se convocados perante a necessidade de defender a pátria, de defender a nação. Creio que de maneira geral os escritores e os artistas nunca permaneceram alheios aos problemas da realidade nacional. Alguns terão sido mais activos do que outros nos momentos críticos, como no caso de Girón e na Crise…, — quase todos tinham vestido o uniforme miliciano — mas para além disso começaram a trabalhar em grupos para preparar mensagens, neste caso directamente comprometidos com o acontecimento. Isso não quer dizer que tenham deixado de prosseguir projectos estéticos e culturais diversos, seguindo a sua própria história pessoal, e também que neste aspecto, no plano da criação se foram agrupando em zonas distintas, fosse em torno de uma revista ou outra publicação, em torno de um projecto teatral, nos quais iam seguindo a sua própria linha pessoal de desenvolvimento. Mas tudo isso se apoiava numa plataforma básica comum que reconhecia e aderia à Revolução cubana, de uma forma, na maior parte dos casos, eu diria, com uma entrega absoluta.
No prefácio do livro em que compilou algumas das principais polémicas culturais que tiveram lugar nos anos sessenta apontava que, dadas as características da época, muitas vezes se esbatiam as fronteiras entre o exercício do pensar e as solicitações do fazer, ¿que perigos crê que esta dinâmica continha?
Esse livro, que não esgota de todo as polémicas dos anos Sessenta, recolhe alguns aspectos significativos. Por um lado está o debate de ideias que ultrapassa em grande medida o tema da relação artística e literária em si mesma e se projecta no diverso espectro de pontos de vista sobre a forma de construir o socialismo, as vias e métodos para o fazer, a forma de assumir este pensamento teórico de um modo criativo atento às condições específicas de Cuba. Para formular a questão de uma maneira muito simples, ali as divergências estiveram entre aqueles que pensavam que devia construir-se o processo a partir da nossa realidade específica, a de um país subdesenvolvido, do terceiro mundo, vinculado sobretudo ao panorama latino-americano; e aqueles outros que pensavam que o que havia a fazer era aplicar o modelo que se viera perfilando no mundo socialista.
Este debate tem um eixo principal no campo das Ciências Sociais e tem outro aspecto que está mais relacionado com os fenómenos da cultura. No campo das Ciências Sociais o que estava em análise era o modo de se apropriar a tradição marxista; nesse sentido, o seu referencial era basicamente filosófico. Não incluí no livro a polémica que se travou entre Aurelio Alonso, recente Premio de Ciências Sociais, e alguns dos que tinham a seu cargo as escolas do Partido, acerca do que se chamou o problema do manualismo, da simplificação de um pensamento muito mais complexo.
No âmbito da cultura as discrepâncias manifestavam-se em relação ao chamado realismo socialista, que naquela altura era, digamos, a doutrina oficial dominante no campo socialista. A esta concepção opunha-se uma visão da cultura cubana que enfatizava o seu vínculo orgânico com a tradição da vanguarda artística. Daí que em muitos textos da época se coloque a ênfase em estabelecer um paralelo entre vanguarda artística e vanguarda política, entendendo que cada uma delas coloca uma vontade de revolução no seu terreno específico.
Detalhar o substrato ideológico seria realmente muito extenso, é algo que merece realmente um livro, que penso ainda não ter sido escrito. Mas os debates tinham este pano de fundo de complexidade, embora todos se mantivessem dentro da Revolução.
¿Quais poderiam ser os vasos comunicantes entre a luta cultural que a Revolução nascente envolveu e a delicada luta cultural que enfrentamos agora mesmo?
Do meu ponto de vista o momento actual é ainda mais complexo do que o de então (inicio da década de Sessenta). A primeira batalha que há que vencer é a que conduz a entender que quando falamos de cultura não nos estamos referindo somente à criação artístico literária, mas que a cultura transcende essa criação, embora a nutra e se nutra dela, e envolve um conjunto de elementos, nos quais intervêm as tradições, a memória, e sobretudo os valores.
O debate fundamental que está implícito no mundo contemporâneo situa-se, na minha opinião, entre as concepções derivadas do neoliberalismo económico que têm a sua expressão ideológica, que têm a sua expressão até nos projectos de felicidade humana e de aspiração do homem, e a postura conducente a situar em primeiro lugar, como razão de ser de cada sociedade, o processo de emancipação e dignificação do ser humano.
No plano da prática este conflito expressa-se a nível quotidiano não apenas pela acção das grandes transnacionais que dominam o mundo, pela influência dos media massivos, mas também pela adopção de critérios economicistas que muitas vezes contaminam mais longe do que os centros de poder capitalistas, e chegam com frequência a proclamar o predomínio do mercado, do seu livre jogo, influindo também em tudo o que se relaciona com a criação artística.
Tem que ver com a adopção de rígidos critérios de rentabilidade económica que ferem a protecção de bens culturais; e tem que ver em última instancia com um conjunto de conceitos que penetraram no mundo da educação e sobretudo da educação superior e das universidades. Por isso não é casual que em tantos países nesta situação de crise global ressurjam movimentos estudantis que reclamam a defesa da educação como um direito humano fundamental ao alcance de todos e que também desconfiam de uma educação estreitamente vinculada com a visão pragmática de preparar uma força de trabalho qualificada para as necessidades mais imediatas.
Muitas vezes estes conceitos colam-se a nós até pelo vocabulário que adoptamos. Por exemplo, desconfio muito do conceito de “consumo cultural”, esse conceito está associado por um lado à mercantilização da arte e por outro, no que se refere à criação artística, ao desconhecimento do papel criativo do receptor. No processo de disseminação da criação artístico literária o autor traz uma proposta, mas essa proposta é recebida, recriada, assimilada pela extensa gama de receptores.
Todos estes temas estão no meu entender no debate quotidiano dos nossos dias e penso que no nosso caso, neste momento em que colocámos no lugar que merece o tema dos valores, a cultura também desempenha um papel fundamental. Às vezes pensa-se que a acção da cultura neste sentido se limita a produzir fábulas moralizantes, e a acção da cultura transcende essa mensagem imediata. A presença da cultura traduz-se numa maior densidade dos valores espirituais que se repercute em formas de comportamento, formas de relações entre as pessoas e também nos modos e maneiras de disfrutar o que a vida e a realidade nos oferece.
Fonte: http://www.lajiribilla.cu/articulo/6618/todas-las-interrogantes-siguen-siendo-validas
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