quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Carlos Serrano F./O Enigma de Newton

Revista Pittacos

Revista de Cultura e Humanidades

O Enigma de Newtown

[Carlos Serrano Ferreira]
O enigma é de Newtown, mas poderia ser o enigma de Aurora, de Columbine… segundo a tragédia mais recente. Todos estes enigmas se resumem a um só: o enigma americano.
Provavelmente a esta altura não haja quem não saiba a história desse novo massacre. Afinal, se a mídia é bem seletiva na escolha do que relatar é de tristes incidentes como estes que vive. Toda vida retirada de uma criança é o horror. Contudo, para a mídia brasileira, seguindo os passos da americana, a morte de crianças negras, palestinas, muçulmanas, do Terceiro Mundo, não merecem ser relatadas, fazem parte do cotidiano, não tem o mesmo horror que a morte de crianças nos EUA.
Estas últimas afirmações podem parecer despropositadas ao tema, um parênteses desnecessário. Ao contrário, essa desvalorização do outro é parte direta do problema. Seja o grande Outro civilizacional, seja o outro, o estranho, da mesma cultura.
 Nestas horas, sempre se procura um culpado. O primeiro culpado óbvio é o assassino Adam Lanza. Claro, foi ele que entrou atirando nas crianças e nos professores da escola. Muitos analistas fecharão a questão dizendo: “é só mais um louco”. Afinal, “loucos homicidas sempre existirão, não há muito o que fazer, talvez observar melhor os primeiros indícios, ter uma política de prevenção”. Estes especialistas ainda ressaltarão um ponto para demonstrar a mente obscura e perturbada do rapaz, o fundo edipiano da história: ele matou a própria mãe!
Outros acusarão as armas. O argumento é simples: se não existissem armas, não haveriam as mortes de Newtown. Foram as balas que mataram, sem balas não haveriam mortes. Lembro nessa hora de meu avô Nicanor. Ele me dizia com a sabedoria de um ex-soldado republicano catalão, que “a mesma faca que serve para cortar o pão, serve para matar” do qual tirava a conclusão de que o problema não é a faca, mas quem a usa. É claro que com armas de fogo é mais difícil fazer essa metáfora. Afinal, elas só tem uma única utilidade, além da esportiva, matar!
Os dois argumentos, não são completamente falsos. Longe disso: loucos homicidas sempre haverão e um mundo sem armas seria melhor. Contudo, a restrição de armas diminuiria o número de vítimas, mas quem quer matar pode usar um garfo ou até mesmo as próprias mãos para isso. Pode ser uma boa política de redução de danos, mas não impedirá essas explosões de loucura.
O grande erro é tomar Newtown só por Newtown. O que chama atenção, para além da tragédia em si, é a recorrência da tragédia. Desde 2007 foram seis massacres. É metade dos maiores massacres já ocorridos em toda a história dos EUA (sem contar os realizados por forças armadas). Em média, um massacre por ano. Significa que ao lado de algumas certezas anuais, como o ano-novo, o halloween ou o natal, mesmo que sem uma data fixa, todos podem esperar por um massacre. Estranha-me que os gananciosos de plantão ainda não tenham criado uma sinistra bolsa de apostas em torno a data do próximo massacre e do número de vítimas. O fato é que, alguém, sem motivo político, religioso ou qualquer outro – que não justificariam de modo algum estes eventos, mas explicariam-no – sozinho, ou em conluio de outros lunáticos, sairá atirando e matando, particularmente crianças e jovens, até ser morto pela polícia ou se matar.
Isto ocorre só nos EUA? Não, de forma alguma. Ocorre no mundo todo, o que é alarmante. Mas, são casos isolados. O que chama a atenção é a recorrência no caso americano. Quando são casos isolados é a loucura de um indivíduo ou de um bando. Mas, quando é algo permanente, deixa de ser um mero problema de insanidade pontual e passa a ser um sintoma social.
 Claro, quando se trata dos EUA muitos dirão ser este um discurso esquerdista, que há muito mais vítimas de armas de fogo no Brasil que lá ou que já houve casos parecidos na Finlândia e na Noruega. Mas, aí se cometem dois erros: o primeiro é comparar sociedades extremamente diferentes como os EUA e o Brasil, tão absurdo como comparar Suíça e Gabão. A origem da violência nos EUA e no Brasil tem pontos de convergência, em particular pelo processo de decadência econômica dos EUA e, guardando as devidas proporções, a disparidade social nos dois países (afinal, os EUA é dos países mais desiguais entre os da OCDE e o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo). O problema da ilegalização das drogas e os bandos armados do narcotráfico que isto gera em consequência é o mesmo nos dois países. Mas, acabam aí as comparações. O EUA por mais que seja uma potência decadente é, e ainda será, por um bom tempo, a principal potência mundial. E, o Brasil, bem… está muito longe disto. O caso norueguês é completamente diferente, e não deve entrar em discussão, pois foi motivado por motivos políticos e ódio racial de um extremista de direita, o que o aproxima de outro tipo de evento, não dos massacres aqui tratados. E, o finlandês, curiosamente, reforça a questão: ficou claro na investigação queriam holofotes… tal qual eles viram serem postos nos perpetradores de massacres dos EUA. Imitadores, como também ocorre com serial killers.
 É aí que entra o enigma americano: porque é exatamente nesse país que se cometem tantos tipos de crimes do mesmo tipo? Não se pode ter certeza absoluta, mas algumas – e dolorosas para os estadunidenses – hipóteses podem ser levantadas. E, claro, elas devem levar em consideração, como qualquer fenômeno histórico e social, elementos estruturais e conjunturais.
A primeira hipótese é estrutural: nenhuma sociedade como a dos EUA levou até tão longe a ideologia liberal. Nenhuma sociedade é tão capitalista em sua ideologia como esse país. Nenhum outro país incorporou tão profundamente a ideologia do individualismo, do cada um por si. A formação ideológica estadunidense é toda eivada por um corte: os winners e os losers! Podem se resumir todos os indivíduos em duas categorias, as dos vencedores e as dos perdedores. E, a partir disto se colam marcas de raça, classe, social, etc. É o darwinismo social levado às últimas consequências, reproduzido em seus comics, filmes, seriados e músicas. O diferente, fora do padrão dos “winners”, é imediatamente um “loser”, podendo ser ridicularizado, ameaçado, espancado e humilhado, alvo de chacotas e galhofas. A própria saída dada no discurso anti-bullying, reproduzido por todo mundo, é o da busca pela autoridade (o professor, o diretor, o pai ou a mãe) para que resolvam o problema, não se ensinado a autonomia, a capacidade de reagir. Pois bem, numa sociedade que pressupõe a autossuficiência absoluta a cura para o mal reforça a sensação de inferioridade, de incapacidade, de ser um “loser”!
A segunda hipótese é também estrutural: com a guerra fria iniciou-se um processo de destruição das organizações sociais, econômicas e comunitárias. Estas tinham sido até então potentes, verdadeiros colossos, que foram esmagados sob o discurso anti-comunista do macartismo. Até então, estas organizações representavam um amparo coletivo, eram uma espécie de sociedade-previdência (em termos ainda mais amplos que o conceito usado de Boaventura Sousa Santos) que criavam uma rede de segurança social, não só econômica, mas de solidariedade psíquica e identidade de destinos que preservavam os indivíduos dos efeitos da formação ideológica hegemônica. Ainda terá um respiro nas organizações anti-guerra e nas de lutas pelos direitos civis negros, nos distantes anos 60. Mas, recebeu o tiro de misericórdia na era republicana de Reagan e Bush pai.
A terceira hipótese é também estrutural: a combinação da ideologia do destino manifesto com a atuação imperialista nos séculos XX e XXI criaram uma cultura de ódio ao diferente. A expansão para o Oeste foi um massacre tenebroso, eternizado nos faroestes como a vitória do civilizado sobre o bárbaro. Ideologicamente, ligou-se a civilização à superioridade da força. Outro exemplo, foi o uso da bomba atômica contra os japoneses. A ferida de tal crime é tão profunda na consciência coletiva dos EUA que eles são o único dos Aliados que não comemoram com pompa a vitória na Segunda Guerra Mundial. Os EUA só acabaram com as leis de segregação racial nos anos 60 e só descriminalizaram em todo o território americano a homossexualidade em 2003*. Em estados da fornteira sul, as leis permitem que qualquer indivíduo mate imigrantes que estejam tentando entrar de forma ilegal em solo estadunidense, em busca das promessas que os filmes e músicas lhe fazem. Nessa mesma fronteira, como que reproduzindo materialmente entre os dois países a lógica de winners e losers, se ergue um muro gigantesco com o México (muito maior que o de Berlim).
Por fim, duas hipóteses relacionadas à conjuntura e que reforçam os elementos estruturais. A política de liberalização econômica de Reagan, feita com a intenção de ampliar o desemprego e quebrar o movimento sindical de seu país, teve efeitos terríveis sobre a economia dos EUA. Mas, ainda mais devastadores sobre o povo americano, destruindo os mecanismos de proteção social que existiam – bem menores já dos que existiam na Europa e no Japão. Ou seja, terminou-se por destruir a sociedade-providência e esmagou-se o Estado-providência, deixando o povo americano à mercê dos grande grandes monopólios econômicos, que se aproveitaram para acumular ainda mais riquezas, apropriar-se dos fundos públicos e iniciar uma grande jogatina financeira. Não por acaso a década de 80 foi tão repleta de gangues… Afinal, davam sentido de corpo a jovens com vidas sem sentido.
Os efeitos desta política não foram tão sentidos a partir de 1994 até a crise de 2008, pois o crescimento da onda longa ascendente de Kondratiev permitiu uma abundância gigantesca e uma possibilidade real de consumo que nunca havia existido. Contudo, quando – ainda em meio a onda longa ascendente, então imagine quando for na descendente… – adveio a crise, os grandes conglomerados tinham quem lhe socorrer, o povo não**. O cada um por si tornou-se fortíssimo e a sensação de ser um “loser” se disseminou por largos setores da população, por que se viram despejados por não poderem pagar sua hipoteca, por estarem desempregados, por não terem acesso à saúde por não poderem arcar com os custos dos planos de saúde, etc. Pode se imaginar o impacto psíquico disto. Pode se imaginar que um barril de pólvora se armava. Ou melhor, vários barris de pólvora. Alguns explodiram e conformaram o movimento dos 99% e de ocupações de praça. Outros, elos mais fracos, mais isolados, explodiram de outras maneiras, como nas drogas, na criminalidade, criando um ambiente insano.
A última hipótese de natureza conjuntural é o trauma do 11 de setembro. Não no sentido habitual que se pensa, não num transtorno pós-traumático coletivo. Mas, pelos efeitos posteriores. Desde a Guerra do Vietnã, a cultura militarista não tinha tanto espaço. De uma só vez, voltou-se o ódio de uma nação contra outra civilização, contra um novo outro: depois dos índios, negros, orientais, ateus, comunistas e gays, agora era a vez dos muçulmanos. O fundamentalismo cristão cresceu, com seu discurso de ódio. O governo dos EUA iniciaram várias ofensivas militares, em particular as guerras do Afeganistão e do Iraque, mas também mantiveram uma retórica muito ampla de ameaças contra outros povos. A “guerra ao terror”, o terror invisível, do outro, do estranho, reforçando tendências estruturais, virou discurso de governo (apenas matizado por Obama, depois de sua plenitude com Bush). Este encontrou sua materialização cinematográfica na sua Leni Riefenstahl, a diretora Kathryn Bigelow.
Os efeitos dessa “guerra ao terror” foram sentidos internamente: o ato patriótico cancelou os direitos individuais dos estadunidenses, terminando com a última barreira de proteção social que existia. A tortura, há muito praticada pelos EUA por todo o mundo, mas sempre negada, foi justificada e passou a ser política de segurança nacional. Um quase-regime de exceção se instalou. A ideologia compensou isto, com a exaltação do militarismo, do ódio ao outro. É claro que o “outro” prioritário era o muçulmano, mas o ódio é incontrolável, e se dissemina, até se enraizar e se tornar geral. Quando estas sementes são lançadas em um solo já propício, depois de algum tempo uma frondosa árvore estará lá.
Alguns dirão que é coincidência que os massacres tenham se tornados regulares durante a crise econômica, alguns anos após o 11 de setembro e as guerras americanas do século XXI e logo nos EUA. Pode ser. Mas, são muitas coincidências para serem apenas isto. Pelo sim ou pelo não, se de fato se quiser evitar novas tragédias, não se pode buscar culpar apenas as armas e loucos. A sociedade norte-americana precisa efetuar uma grande auto-análise coletiva, terá que se reinventar  mudar desde as raízes, se não quiser que mais nenhum sangue inocente seja vertido no solo desse país.
[N.A.]* http://www.diarioliberdade.org/opiniom/opiniom-propia/2184-uganda-discute-pena-de-morte-para-homossexuais.html
**http://theotoniodossantos.blogspot.com.br/2011/08/artigo-de-atilio-boron-sobre-as-acoes.html
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