Revista Pittacos
Revista de Cultura e Humanidades
O Enigma de Newtown
[Carlos Serrano Ferreira]
O enigma é de Newtown, mas poderia ser o enigma de Aurora, de Columbine… segundo a tragédia mais recente. Todos estes enigmas se resumem a um só: o enigma americano.
Provavelmente a esta altura
não haja quem não saiba a história desse novo massacre. Afinal, se a
mídia é bem seletiva na escolha do que relatar é de tristes incidentes
como estes que vive. Toda vida retirada de uma criança é o horror. Contudo, para a mídia brasileira, seguindo os passos da americana, a morte de crianças
negras, palestinas, muçulmanas, do Terceiro Mundo, não merecem ser
relatadas, fazem parte do cotidiano, não tem o mesmo horror que a morte
de crianças nos EUA.
Estas últimas afirmações podem parecer despropositadas ao tema, um parênteses desnecessário. Ao contrário, essa desvalorização do outro é parte direta do problema. Seja o grande Outro civilizacional, seja o outro, o estranho, da mesma cultura.
Nestas horas, sempre se procura um
culpado. O primeiro culpado óbvio é o assassino Adam Lanza. Claro, foi
ele que entrou atirando nas crianças e nos professores da escola.
Muitos analistas fecharão a questão dizendo: “é só mais um louco”.
Afinal, “loucos homicidas sempre existirão, não há muito o que fazer,
talvez observar melhor os primeiros indícios, ter uma política de
prevenção”. Estes especialistas ainda ressaltarão um ponto para
demonstrar a mente obscura e perturbada do rapaz, o fundo edipiano da
história: ele matou a própria mãe!
Outros acusarão as armas. O argumento é simples: se não existissem armas, não haveriam as mortes de Newtown. Foram as balas que mataram,
sem balas não haveriam mortes. Lembro nessa hora de meu avô Nicanor.
Ele me dizia com a sabedoria de um ex-soldado republicano catalão, que
“a mesma faca que serve para cortar o pão, serve para matar” do qual
tirava a conclusão de que o problema não é a faca, mas quem a usa. É
claro que com armas de fogo é mais difícil fazer essa metáfora. Afinal, elas só tem uma única utilidade, além da esportiva, matar!
Os dois argumentos, não são completamente
falsos. Longe disso: loucos homicidas sempre haverão e um mundo sem
armas seria melhor. Contudo, a restrição de armas diminuiria o número de
vítimas, mas quem quer matar pode usar um garfo ou até mesmo as próprias mãos para isso. Pode ser uma boa política de redução de danos, mas não impedirá essas explosões de loucura.
O grande erro
é tomar Newtown só por Newtown. O que chama atenção, para além da
tragédia em si, é a recorrência da tragédia. Desde 2007 foram seis
massacres. É metade dos maiores massacres já ocorridos em toda a
história dos EUA (sem contar os realizados por forças armadas).
Em média, um massacre por ano. Significa que ao lado de algumas
certezas anuais, como o ano-novo, o halloween ou o natal, mesmo que sem
uma data fixa, todos podem esperar por um massacre. Estranha-me que
os gananciosos de plantão ainda não tenham criado uma sinistra bolsa de
apostas em torno a data do próximo massacre e do número de vítimas. O
fato é que, alguém, sem motivo político, religioso ou qualquer outro –
que não justificariam de modo algum estes eventos, mas explicariam-no –
sozinho, ou em conluio de outros lunáticos, sairá atirando e matando,
particularmente crianças e jovens, até ser morto pela polícia ou se
matar.
Isto ocorre só nos EUA? Não, de forma
alguma. Ocorre no mundo todo, o que é alarmante. Mas, são casos
isolados. O que chama a atenção é a recorrência no caso americano.
Quando são casos isolados é a loucura de um indivíduo ou de um bando.
Mas, quando é algo permanente, deixa de ser um mero problema de
insanidade pontual e passa a ser um sintoma social.
Claro, quando se trata dos EUA muitos
dirão ser este um discurso esquerdista, que há muito mais vítimas de
armas de fogo no Brasil que lá ou que já houve casos parecidos na
Finlândia e na Noruega. Mas, aí se cometem dois erros: o primeiro é
comparar sociedades extremamente diferentes como os EUA e o Brasil, tão
absurdo como comparar Suíça e Gabão. A origem da violência nos EUA e no
Brasil tem pontos de convergência, em particular pelo processo de
decadência econômica dos EUA e, guardando as devidas proporções, a
disparidade social nos dois países (afinal, os EUA é dos países mais
desiguais entre os da OCDE e o Brasil é um dos países mais desiguais do
mundo). O problema da ilegalização das drogas e os bandos armados do
narcotráfico que isto gera em consequência é o mesmo nos dois países.
Mas, acabam aí as comparações. O EUA por mais que seja uma potência
decadente é, e ainda será, por um bom tempo, a principal potência
mundial. E, o Brasil, bem… está muito longe disto. O caso norueguês é
completamente diferente, e não deve entrar em discussão, pois foi
motivado por motivos políticos e ódio racial de um extremista de
direita, o que o aproxima de outro tipo de evento, não dos massacres
aqui tratados. E, o finlandês, curiosamente, reforça a questão: ficou
claro na investigação queriam holofotes… tal qual eles viram serem
postos nos perpetradores de massacres dos EUA. Imitadores, como também
ocorre com serial killers.
É aí que entra o enigma americano:
porque é exatamente nesse país que se cometem tantos tipos de crimes do
mesmo tipo? Não se pode ter certeza absoluta, mas algumas – e dolorosas
para os estadunidenses – hipóteses podem ser levantadas. E, claro, elas
devem levar em consideração, como qualquer fenômeno histórico e social,
elementos estruturais e conjunturais.
A primeira hipótese é estrutural: nenhuma
sociedade como a dos EUA levou até tão longe a ideologia liberal.
Nenhuma sociedade é tão capitalista em sua ideologia como esse país.
Nenhum outro país incorporou tão profundamente a ideologia do
individualismo, do cada um por si. A formação ideológica estadunidense é
toda eivada por um corte: os winners e os losers! Podem se resumir
todos os indivíduos em duas categorias, as dos vencedores e as dos
perdedores. E, a partir disto se colam marcas de raça, classe, social,
etc. É o darwinismo social levado às últimas consequências, reproduzido
em seus comics, filmes, seriados e músicas. O diferente, fora do padrão
dos “winners”, é imediatamente um “loser”, podendo ser ridicularizado,
ameaçado, espancado e humilhado, alvo de chacotas e galhofas. A própria
saída dada no discurso anti-bullying, reproduzido por todo mundo, é o da
busca pela autoridade (o professor, o diretor, o pai ou a mãe) para que
resolvam o problema, não se ensinado a autonomia, a capacidade de
reagir. Pois bem, numa sociedade que pressupõe a autossuficiência
absoluta a cura para o mal reforça a sensação de inferioridade, de
incapacidade, de ser um “loser”!
A segunda hipótese é também estrutural:
com a guerra fria iniciou-se um processo de destruição das organizações
sociais, econômicas e comunitárias. Estas tinham sido até então
potentes, verdadeiros colossos, que foram esmagados sob o discurso
anti-comunista do macartismo. Até então, estas organizações
representavam um amparo coletivo, eram uma espécie de
sociedade-previdência (em termos ainda mais amplos que o conceito usado
de Boaventura Sousa Santos) que criavam uma rede de segurança social,
não só econômica, mas de solidariedade psíquica e identidade de destinos
que preservavam os indivíduos dos efeitos da formação ideológica
hegemônica. Ainda terá um respiro nas organizações anti-guerra e nas de
lutas pelos direitos civis negros, nos distantes anos 60. Mas, recebeu o
tiro de misericórdia na era republicana de Reagan e Bush pai.
A terceira hipótese é também estrutural: a
combinação da ideologia do destino manifesto com a atuação imperialista
nos séculos XX e XXI criaram uma cultura de ódio ao diferente. A
expansão para o Oeste foi um massacre tenebroso, eternizado nos
faroestes como a vitória do civilizado sobre o bárbaro. Ideologicamente,
ligou-se a civilização à superioridade da força. Outro exemplo, foi o
uso da bomba atômica contra os japoneses. A ferida de tal crime é tão
profunda na consciência coletiva dos EUA que eles são o único dos
Aliados que não comemoram com pompa a vitória na Segunda Guerra Mundial.
Os EUA só acabaram com as leis de segregação racial nos anos 60 e só
descriminalizaram em todo o território americano a homossexualidade em
2003*. Em estados da fornteira sul, as leis permitem que qualquer
indivíduo mate imigrantes que estejam tentando entrar de forma ilegal em
solo estadunidense, em busca das promessas que os filmes e músicas lhe
fazem. Nessa mesma fronteira, como que reproduzindo materialmente entre
os dois países a lógica de winners e losers, se ergue um muro gigantesco
com o México (muito maior que o de Berlim).
Por fim, duas hipóteses relacionadas à
conjuntura e que reforçam os elementos estruturais. A política de
liberalização econômica de Reagan, feita com a intenção de ampliar o
desemprego e quebrar o movimento sindical de seu país, teve efeitos
terríveis sobre a economia dos EUA. Mas, ainda mais devastadores sobre o
povo americano, destruindo os mecanismos de proteção social que
existiam – bem menores já dos que existiam na Europa e no Japão. Ou
seja, terminou-se por destruir a sociedade-providência e esmagou-se o
Estado-providência, deixando o povo americano à mercê dos grande grandes
monopólios econômicos, que se aproveitaram para acumular ainda mais
riquezas, apropriar-se dos fundos públicos e iniciar uma grande jogatina
financeira. Não por acaso a década de 80 foi tão repleta de gangues…
Afinal, davam sentido de corpo a jovens com vidas sem sentido.
Os efeitos desta política não foram tão
sentidos a partir de 1994 até a crise de 2008, pois o crescimento da
onda longa ascendente de Kondratiev permitiu uma abundância gigantesca e
uma possibilidade real de consumo que nunca havia existido. Contudo,
quando – ainda em meio a onda longa ascendente, então imagine quando for
na descendente… – adveio a crise, os grandes conglomerados tinham quem
lhe socorrer, o povo não**. O cada um por si tornou-se fortíssimo e a
sensação de ser um “loser” se disseminou por largos setores da
população, por que se viram despejados por não poderem pagar sua
hipoteca, por estarem desempregados, por não terem acesso à saúde por
não poderem arcar com os custos dos planos de saúde, etc. Pode se
imaginar o impacto psíquico disto. Pode se imaginar que um barril de
pólvora se armava. Ou melhor, vários barris de pólvora. Alguns
explodiram e conformaram o movimento dos 99% e de ocupações de praça.
Outros, elos mais fracos, mais isolados, explodiram de outras maneiras,
como nas drogas, na criminalidade, criando um ambiente insano.
A última hipótese de natureza conjuntural
é o trauma do 11 de setembro. Não no sentido habitual que se pensa, não
num transtorno pós-traumático coletivo. Mas, pelos efeitos posteriores.
Desde a Guerra do Vietnã, a cultura militarista não tinha tanto espaço.
De uma só vez, voltou-se o ódio de uma nação contra outra civilização,
contra um novo outro: depois dos índios, negros, orientais, ateus,
comunistas e gays, agora era a vez dos muçulmanos. O fundamentalismo
cristão cresceu, com seu discurso de ódio. O governo dos EUA iniciaram
várias ofensivas militares, em particular as guerras do Afeganistão e do
Iraque, mas também mantiveram uma retórica muito ampla de ameaças
contra outros povos. A “guerra ao terror”, o terror invisível, do outro,
do estranho, reforçando tendências estruturais, virou discurso de
governo (apenas matizado por Obama, depois de sua plenitude com Bush).
Este encontrou sua materialização cinematográfica na sua Leni
Riefenstahl, a diretora Kathryn Bigelow.
Os efeitos dessa “guerra ao terror” foram
sentidos internamente: o ato patriótico cancelou os direitos
individuais dos estadunidenses, terminando com a última barreira de
proteção social que existia. A tortura, há muito praticada pelos EUA por
todo o mundo, mas sempre negada, foi justificada e passou a ser
política de segurança nacional. Um quase-regime de exceção se instalou. A
ideologia compensou isto, com a exaltação do militarismo, do ódio ao
outro. É claro que o “outro” prioritário era o muçulmano, mas o ódio é
incontrolável, e se dissemina, até se enraizar e se tornar geral. Quando
estas sementes são lançadas em um solo já propício, depois de algum
tempo uma frondosa árvore estará lá.
Alguns dirão que é coincidência que os
massacres tenham se tornados regulares durante a crise econômica, alguns
anos após o 11 de setembro e as guerras americanas do século XXI e logo
nos EUA. Pode ser. Mas, são muitas coincidências para serem apenas
isto. Pelo sim ou pelo não, se de fato se quiser evitar novas tragédias,
não se pode buscar culpar apenas as armas e loucos. A sociedade
norte-americana precisa efetuar uma grande auto-análise coletiva, terá
que se reinventar mudar desde as raízes, se não quiser que mais nenhum
sangue inocente seja vertido no solo desse país.
[N.A.]* http://www.diarioliberdade.org/opiniom/opiniom-propia/2184-uganda-discute-pena-de-morte-para-homossexuais.html
**http://theotoniodossantos.blogspot.com.br/2011/08/artigo-de-atilio-boron-sobre-as-acoes.html
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