quarta-feira, 21 de agosto de 2013

“Se não se radicaliza, o processo Venezuelano pode regredir”

Entrevista com Cláudio Katz


15.Ago.13 :: Outros autores

Esta entrevista traça uma larga perspectiva sobre a América Latina, as diferentes dinâmicas e contradições dos processos ali em curso, o peso da presença e da influência do imperialismo. Os processos progressistas, para poderem prosseguir e consolidar-se terão, mais cedo ou mais tarde, de enveredar por um caminho vinculado à tradição socialista.


O professor e economista Cláudio Katz (Argentina, 1954) destaca-se por uma brilhante capacidade de síntese. “Pode ser que venha da época, já de há muitos anos, em que colaborava na imprensa económica”, ironiza. A partir dos inúmeros cursos ministrados, construiu uma acertada aproximação analítica da realidade política e económica da América Latina. Além de docente da Universidade de Buenos Aires, Cláudio Katz é autor de numerosos trabalhos de investigação sobre o capitalismo contemporâneo, a crise sistémica global e o impacto do neoliberalismo na América Latina. Publicou “El porvenir del socialismo” (2004), “Las disyuntivas de la izquierda en América Latina” (2008), “El rediseño de América Latina. ALCA, MERCOSUR y ALBA” (2006) e, mais recentemente, “La economía marxista hoy. Seis debates teóricos” (2009). Katz faz parte do colectivo argentino Economistas de Esquerda (EDI, sigla em espanhol).
- Em termos de riscos, como afecta a América Latina a actual crise global?
A América Latina não é realmente um epicentro da crise sistémica global. É uma das poucas regiões atingidas apenas de maneira relativa. Penso que isto corresponde, em termos muito gerais, a uma valorização das matérias-primas, produtos combustíveis e minerais que a América Latina exporta. Além disso, a crise financeira já nos atinge há uma década. Estes dois factores outorgaram à América Latina uma margem, ainda que instável e frágil, de recuperação de receitas fiscais provenientes da exportação e de colocação em marcha de políticas assistencialistas. Trata-se porém de um alívio momentâneo, que dependerá de como prossiga a crise global.
- A Venezuela é actualmente uma das grandes regiões onde se define a correlação de forças no continente. Como observa a conjuntura aí após a morte de Chávez e a vitória eleitoral de Maduro?
- Existe uma coisa muito evidente. A direita vai tentar ascender ao governo, seja pela via eleitoral, seja mediante provocações. É preciso considerar que se trata de uma direita golpista, que ensaia diferentes vias. Temos de facto, nos últimos anos, antecedentes de golpismo institucional em Honduras e no Paraguai. Na Venezuela, temos de ver qual é a resposta do governo e do movimento popular. Oferecem-se duas perspectivas: radicalizar o processo e enveredar pelo caminho da transição para o socialismo; ou que o processo congele e regrida. Esperamos que se imponha a primeira opção.
- Desde o ano de 1959 que se mantém, com todas as suas mudanças, a referência cubana. Qual a sua opinião sobre a política de “directrizes” e o novo período de reformas económicas?
- As reformas são uma necessidade compreendida pelo povo cubano. De forma geral, são discutidas três vias. Temos que analisar em que grau prevalecem ou combinam entre si: maior peso do cooperativismo, mais peso da intervenção estatal na economia e maior espaço para a pequena empresa privada. É um processo que, certamente, implica riscos e possibilidade de aumento da desigualdade, porém Cuba não dispõe de outro caminho para salvar as conquistas sociais. Agora, existem vários elementos decisivos. Tudo dependerá da participação popular, o que promove uma maior democratização e a capacidade para encontrar formas de introduzir “mercado” sem regressar ao capitalismo.
- Outro foco decisivo no equilíbrio geopolítico latino-americano é a Colômbia, país que é comparado a Israel quando se trata de avaliar o seu papel no continente. Que considerações podem ser feitas em relação à presidência de Santos e ao processo de paz?
- Com Santos o país continua em estado de militarização e de perseguição do movimento popular. Quanto ao processo de diálogo, se a finalidade é a paz, parece-me positivo. Porém, outra coisa é o processo de conversações converter-se, como aconteceu na década de 80, em cobertura para uma nova agressão. Na altura, após a legalização da União Patriótica, iniciaram o seu extermínio. Outra questão é que a paz deve chegar juntamente com a reforma agrária, como defende a insurgência. O que é realmente difícil é alcançar a paz, a reforma agrária e, ao mesmo tempo, derrotar as intenções belicistas. Basta lembrar que na Colômbia estão instaladas seis bases militares norte-americanas e que o país assinou um acordo com a OTAN. Em resumo, existem grandes expectativas na América Latina e na sociedade colombiana de que a paz seja alcançada. As populações desejam-na, mas o mesmo não sucede com os grupos paramilitares, a direita e o partido republicano estadunidense.
- Considera que a intervenção militar norte-americana diminuiu na América Latina para se concentrar noutros cenários?
- Não é certo que os Estados Unidos já não se interessem pelo nosso continente, ainda que se diga estarem a dar prioridade ao mundo árabe ou às negociações com a China. A América Latina continua sendo um território estratégico para os Estados Unidos, no plano militar e como fornecedora de recursos naturais. Actualmente, estão a adaptar a sua estratégia militar global com menor investimento em tropas (modelo Iraque) e maiores doses de tecnologia e operações de inteligência (por exemplo, com os assassinatos selectivos de inimigos que Obama aponta, os ataques com aviões não tripulados ou “drones” ou com a espionagem). Em definitivo, os Estados Unidos são o “xerife” global do capitalismo e estão a ajustar o seu papel. No que respeita à América Latina, mantêm um jogo diplomático de tolerância e outro subterrâneo e de militarização, como ficou expresso no golpe de Honduras, na continuidade do bloqueio e das provocações contra Cuba e na permanência das bases militares na Colômbia. Sempre com os argumentos da luta contra o terrorismo e o narcotráfico.
- É a influência norte-americana que determina a configuração dos blocos em conflito?
- De facto é assim. Existe um primeiro bloco político e economicamente neoliberal que se concretiza, por exemplo, nos Tratados de Livre Comércio (TLC) e com governos direitistas. É o eixo do Pacífico, onde os Estados Unidos têm como associados o México, a Colômbia, o Chile, o Peru e vários países da América Central. Insisto: trata-se de um eixo de continuidade do neoliberalismo ortodoxo, da abertura comercial, das desregulamentações e das privatizações, tudo isso com efeitos devastadores sobre a população. Entre os países citados e os Estados Unidos produz-se uma relação de dependência política e militar. Porém, também de associação económica entre as classes privilegiadas destes países e o “amigo” norte-americano.
- Distingue um segundo bloco…
- É o bloco que é caracterizado por um regionalismo capitalista mais autónomo dos Estados Unidos. Basicamente, trata-se do MERCOSUL, de países como o Brasil e a Argentina. Eles implementam políticas externas mais soberanas que as dos países do primeiro bloco, promovem certas concessões sociais, promovem uma maior contemporização com os movimentos populares, tentam impulsionar uma economia mais regionalizada. Defini-lo-ia como um projecto burguês local, das classes dominantes sul-americanas, que se mostra muito inconsistente, pois depende em grande medida da exportação de produtos básicos. E porque depende das indecisões do Brasil, que possui uma linha tendente para a economia latino-americana e outra mais forte subordinada à economia mundial. Todo este projecto é extremamente vulnerável.
- E, finalmente, o bloco da ALBA.
- Este é um projecto com elementos anti-imperialistas, que pretende a redistribuição dos rendimentos, as reformas radicais e, potencialmente, uma transição para o socialismo. É o perfil mais interessante a partir de uma perspectiva socialista, com países como a Venezuela, a Bolívia, Cuba e Equador.
- Como avalia, por outro lado, os recentes protestos populares que ocorreram no Brasil?
- Considero que foi uma grata surpresa a irrupção popular no Brasil. Há muitas décadas que não víamos este tipo de mobilizações de sectores das classes médias e trabalhadoras. O que fica demonstrado com isso é a insatisfação que existe perante as escassas reformas sociais introduzidas por Lula e Dilma Rousseff. Gostaria porém de enfatizar um ponto. É um movimento ao qual se somou, finalmente, a classe trabalhadora com greves muito importantes. Na minha opinião, o processo é algo que ilustra o amadurecimento político dos jovens brasileiros. O facto de reclamarem escolas e hospitais em lugar de campos de futebol é sintoma desse amadurecimento ideológico.
- Noutros países, como a Bolívia e o Equador, os protestos populares levaram a conflitos com os governos de esquerda.
- E isso é algo que exprime uma contradição real e objectiva entre, por um lado, a defesa legítima dos recursos naturais frente ao extrativismo por parte dos movimentos sociais e, por outro lado, a necessidade que os governos de países muito pobres têm em obter recursos básicos para o seu desenvolvimento. Defendo que a solução está em compatibilizar as explorações de minerais e combustíveis, porém respeitando, em maior medida, o meio ambiente, além de escutar as reivindicações de todos os agentes que participam destes processos (sobretudo os dos movimentos sociais). Por outras palavras, parece-me terem errado ao chamar “neoliberal” a Evo Morales, tal como é errado acusarem os movimentos sociais de “agentes da CIA”. São olhares cegos sobre o problema. Apostaria num ponto intermédio, no diálogo. Por um lado, pelo respeito pela vontade popular, mas também pela necessidade destes países se financiarem com recursos naturais.
- Passam este ano 40 anos sobre a morte de Allende. Como observa, grosso modo, a situação da esquerda chilena?
- A morte de Allende e a liquidação do governo da Unidade Popular representaram uma derrota histórica para a esquerda, da qual custou a recuperar. Entretanto, gostaria de destacar a batalha dos universitários contra a privatização da educação, num país onde a educação é pura mercadoria. Esta continuidade das mobilizações estudantis coloca o Chile em sintonia com o restante da América Latina. Além disso, diria que os estudantes não questionam apenas Piñera, mas também contestam a política de Bachelet, que manteve sem modificações o regime neoliberal das privatizações.
- O papel dos Estados Unidos, o conflito entre blocos alinhados política e economicamente, as dinâmicas internas dos estados… Entretanto, nos últimos anos irrompeu com força um novo actor: os meios de comunicação…
- Na última década, os meios de comunicação substituíram os partidos de direita na América Latina. São eles que ditam a agenda e as linhas imediatas de acção das classes dominantes. Mais ainda, são eles os inimigos declarados de qualquer processo de democratização que os inclua. Ultimamente vem ocorrendo algo muito interessante: o questionamento da hegemonia mediática e o começo da democratização da informação com leis que limitam a ditadura dos media. Entretanto, não é tão simples como isso. Neste ponto, existe uma grande batalha cultural para demonstrar como os media deformam a realidade e constroem um mundo virtual para reproduzir o capitalismo. Parece-me que o mais positivo é que, pela primeira vez, está a ser maciçamente questionada essa tirania. Por exemplo, no Equador e na Venezuela, foram implantadas leis antimonopólios ou que limitam a propriedade dos media nas mãos de um grupo empresarial.
- Por último, quais são os grandes desafios que América Latina irá enfrentar a curto e médio prazo?
- O primeiro desafio é de carácter geopolítico. É de como impedir uma nova depredação dos nossos recursos naturais, após 500 anos de integração no sistema económico global. O segundo grande desafio é de como continuar as nossas experiências de luta social, que converteram a região em referência para os movimentos sociais de todo o mundo. Porque não só temos lutado, como também temos conseguido vitórias traduzidas em conquistas sociais e políticas. O desafio agora é aprofundar esse caminho e vinculá-lo à tradição socialista.
Fonte:http://canarias-semanal.org/not/9680/_si_el_proceso_venezolano_no_se_radicaliza_puede_involucionar_/
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)
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