M K Bhadrakumar, Asia Times Online 
Se, como se espera, o presidente 
Vladimir Putin da Rússia viajar mesmo a Teerã em agosto, será viagem 
rica em simbolismo - mesmo que venha a trocar o avião por um barco que 
atravesse o Mar Cáspio, até a costa iraniana. Jamais houve qualquer 
dúvida de que há congruências de interesses entre as duas potências 
regionais, que são vizinhas.
Mas esse ano, por curiosa coincidência, 
marca também o 70º aniversário da Conferência de Teerã de 1943, evento 
importante nas relações russo-iranianas, uma rica tapeçaria de história,
 salpicada aqui e ali com sangue e traição.
A história das relações russo-iranianas é
 surpreendente. Putin foi o único líder russo a visitar Teerã, desde a 
Revolução Bolchevique em 1917. Mesmo assim, os dois países são jogadores
 antigos na arena geopolítica.
O retorno de Putin a Teerã, quase sete 
anos depois do sucesso estrondoso da primeira visita, em 2007, é como o 
desfecho de um conto e respectiva 'moral da história'. A política 
exterior russa completou um ciclo. Putin espera limpar os estábulos 
egeus, removendo, literalmente, os detritos que se acumularam durante os
 anos quando não estava no Kremlin.
Conseguirá? Dará certo? Putin, sim, é 
visto como governante carismático pelos iranianos. Mesmo assim, como 
seus anfitriões avaliarão as intenções de Moscou? Essa última pergunta 
torna desafiadora a missão de Putin - além de arriscada.
   
       
  
 
O corte mais violento 
A "distância" que se infiltrou no 
relacionamento russo-iraniano deve ser vista como um dos legados da 
presidência de Dmitry Medvedev (2008-2012), período quando Moscou só se 
preocupou com explorar o conteúdo do 'reset' com os EUA, que o 
presidente Barack Obama ofereceu de bandeja. Os 'ocidentalistas' que 
ocuparam o Kremlin durante aqueles anos encaravam o Irã com má vontade e
 desdém.
O Irã tornou-se preocupação secundária 
ou terciária para os russos, e a compreensão estratégica que Putin 
forjara naquela visita histórica começou a atrofiar-se. A Rússia 
continuou a arrastar-se na questão da usina nuclear de Bushehr, para 
atender ao que os EUA desejavam.
O Kremlin não resistiu quando os EUA 
introduziram a questão do Irã nuclear como vetor da cooperação 
russo-norte-americana no âmbito do 'reset'. A cooperação da Rússia, país
 membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, era vital para que o
 governo Obama conseguisse apertar os parafusos contra o Irã, no que 
adiante se constatou que seria um regime de sanções incapacitantes com 
vida própria, que muitos países (como Índia e Japão) aceitaram contra a 
vontade.
Mesmo assim, Moscou entendeu 
imediatamente que a questão nuclear iraniana levantava algumas questões 
fundamentais de legislação internacional e da Carta da ONU, e que teria 
implicações profundas na operação de todo o sistema internacional.
Moscou também não deixou de perceber que
 o verdadeiro problema do ocidente  com o Irã estava, sim, na ideologia 
de justiça e resistência; e que nada tinha a ver com Oriente Médio 
desnuclearizado.
O mais violento dos cortes aconteceu 
quando Medvedev interpretou as sanções da ONU como causa para que os 
russos desistissem de um negócio de armas assinado em 2007 para o 
fornecimento de mísseis S-300, com os quais Teerã contava como item 
crucialmente importante de sua defesa contra ataques de EUA e Israel.
Medvedev tomou a "decisão final" de 
desfazer o negócio sob pressão dos EUA, e o Kremlin desmentiu a 
percepção ainda dominante entre setores influentes do establishment em 
Moscou, de que a Rússia ainda poderia cumprir suas obrigações 
contratuais com o Irã.
O então presidente da Comissão de 
Assuntos Internacionais do Parlamento russo, Konstantin Kosachyov, havia
 dito que "foram acrescentados [na lista da ONU, de armas sob sanção] 
oito itens. Mas nenhum item de defesa, como os mísseis S-300. A 
resolução não terá efeito direto sobre a Rússia."
Considerado em retrospectiva, o People's
 Daily não errou, quando observou, em comentário seco, naquele momento, 
que "abundam as contradições nas intenções de Moscou relacionadas ao 
Irã." De fato, sem a grande mão russa, os EUA jamais teriam conseguido 
transferir a 'questão iraniana' para a ONU.
Colher o momento 
Hoje, o balanço do 'reset' já é, ele 
mesmo, um romance. A Organização do Tratado de Segurança Coletiva ainda é
 pária, na guerra da OTAN no Afeganistão. A independência do Kosovo 
ganhou pompa e circunstância.
A OTAN lançou suas redes sobre o espaço 
pós-soviético, continua a avançar rumo às fronteiras da Rússia e pode já
 ter chegado ao Cáucaso. Os EUA juraram derrotar o projeto de uma União 
Eurasiana, de Moscou. Claro, a Rússia não pôde impedir a 'mudança de 
regime' na Líbia e, até agora, têm sido ignoradas as objeções russas 
contra o programa de mísseis de defesa dos EUA.
Tudo isso considerado, vê-se que há um 
pano de fundo muito complexo a enquadrar a recente iniciativa russa para
 consertar seus laços com o Irã. A Rússia, ao render-se ao 'reset' 
imposto pelos EUA, feriu muito terrivelmente o Irã, num momento em que o
 Irã precisava contar com todos os aliados, para sobreviver à incansável
 pressão que lhes vinha dos EUA. Mas fato é que, mesmo sem Rússia, o 
Irã, afinal, sobreviveu.
Ataque militar contra o Irã já não é 
sequer pensável, exceto sob custos gigantescos e riscos ainda mais 
gigantescos no plano regional; a melhor probabilidade, hoje, é que o 
impasse EUA-Irã tenha de ser negociado.
Já se preveem conversações diretas entre
 EUA e Irã. A Rússia, pois, está "colhendo o momento": Putin será o 
primeiro chefe de Estado a visitar o Irã na presidência de Rouhani.
Por outro lado, a compreensão e o apoio 
dos russos podem ajudar a abrir espaço para que o Irã encontre melhor 
posição para negociar com os EUA. Do ponto de vista do Irã, a firmeza da
 Rússia - ao impor seu veto como membro do Conselho de Segurança da ONU -
 é tendência encorajadora. A firme decisão dos russos de rejeitar os 
resultados de um relatório da ONU sobre testes de mísseis no Irã foi 
fator decisivo para virtualmente impedir qualquer ampliação do regime de
 sanções.
Mas a Rússia ter voltado atrás no 
negócio dos mísseis S-300 ainda 'está pegando'. O Irã formalizou ação 
contra a Rússia, reclamando indenização de US$4 bilhões por danos, no 
tribunal internacional de arbitragem em Genebra. O caso do Irã é forte, 
mas a verdadeira questão é política - a crise de confiança que se criou 
no relacionamento entre os dois países, quando Medvedev assinou o 
decreto de 20/9/2010 que cancelou unilateralmente aquele negócio e uma 
série de outros contratos para fornecimento de armas ao Irã, além de 
impedir a entrada e o trânsito, por território russo, de vários cidadãos
 iranianos conectados com o programa nuclear iraniano, impedindo, 
simultaneamente, que cidadãos russos, indivíduos e entidades legais 
prestem serviços financeiros relacionados às atividades nucleares 
iranianas.
O ministro de Defesa do Irã, general 
Ahmad Vahid, comentou em termos muito ácidos, quase instantaneamente, o 
decreto de Medvedev; disse que o decreto mostrava que "não se pode 
confiar neles [nos russos], o que já se sabia"; e que o embargo era 
prova de que a Rússia "não consegue agir com independência, nem quando 
se trata de assunto menor e questão pequena."
O jornal Kommersant da Rússia noticiava 
essa semana, na 4ª-feira, citando fontes do ministério de Relações 
Exteriores em Moscou, que Putin oferecerá a Teerã um sistema alternativo
 de defesa aérea, Antey-2500, que Teerã pode considerar com substituto 
interessante para o sistema S-300.
O Antey-2500 é um impressionante sistema
 de armas, capaz de destruir simultaneamente até 24 aviões inimigos, num
 raio de 200 km; ou interceptar até 16 mísseis balísticos. Pode-se dizer
 que o sistema é especificamente adequado para as necessidades de forças
 terrestres; e é possível que atenda perfeitamente às necessidades do 
Irã.
Kommersant também noticia que Putin 
discutirá o programa de expansão para a usina nuclear de Bushehr. Outros
 relatos indicam que os físicos nucleares iranianos já estão retomando 
seus estudos em instituições russas. E, há uma semana, Rússia e Irã 
fizeram um raro exercício de manobras navais conjuntas no Mar Cáspio.
Durante a recente visita do presidente 
do Irã Mahmud Ahmedinejad a Moscou, no contexto da reunião de cúpula dos
 países produtores de gás, houve discussões sobre a cooperação no campo 
da energia.
Pragmatismo perfeito, sem emendas 
Rússia e Irã contam com exímios 
diplomatas, mas, mesmo com todo o pragmatismo perfeito, sem emendas e 
costuras improvisadas, com que contam hoje, nem assim será fácil a 
missão de Putin, que aspira a fazer reviver a confiança nas relações 
russo-iranianas.
A questão é que é indispensável um 
entendimento estratégico de base, entre as duas potências regionais, 
para que as discussões consigam avançar. Por exemplo, o ímpeto das 
políticas iranianas na Síria é derivado da política regional do Oriente 
Médio - e não se sabe até que ponto Moscou tem interesse em 
identificar-se com aquela política.
De fato, o presidente Hassan Rouhani 
recém-eleito tem repetido que as relações do Irã com os estados 
regionais serão a prioridade de sua política externa. Podem-se espera 
algumas grandes mudanças nos contatos entre o Irã e os estados do 
Conselho de Cooperação do Golfo, especialmente Arábia Saudita e os 
Emirados Árabes Unidos. A abordagem cautelosa que Teerã adotou em 
relação aos eventos no Egito reforça o pensamento nessa direção.
E os modelos estão em transformação, 
também nas relações EUA-Rússia. Apesar de manter posição consistente no 
caso de Edward Snowden, Moscou tem cuidado, também de não queimar pontes
 nos contatos com o governo Barack Obama.
A última coisa que o Irã desejaria é 
ver-se convertido em moeda de troca na détente EUA-Rússia. Atribui-se a 
Rouhani a ideia de que, sob a política de 'olhar para o oriente' [orig. 
"Look East"] de Ahmadinejad, "o Irã teve de confiar nas políticas 
dualistas de países como Rússia, China e Índia no plano internacional". 
Rouhani teria dito que
Apesar das políticas de 'olhar para o 
oriente', a Rússia considerou que lhe seria interessante fortalecer suas
 relações com o ocidente. O apoio da Rússia às resoluções de sanções 
contra o Irã no Conselho de Segurança e o cancelamento de compromissos 
militares foram algumas das medidas anti-Irã, adotadas pelos russos. 
Usar da carta "Irã" em seu jogo com o ocidente e, especialmente, com os 
EUA, sempre trouxe vantagens à Rússia.
Isso posto, os especialistas russos são 
realistas sobre Rouhani e o veem como membro "moderado" da elite 
religiosa no Irã - "preparado para fazer concessões ao mundo, homem que 
sabe que não há sentido algum em guerrear contra moinhos de vento", nas 
palavras de Vitaly Naumkin, Diretor do Instituto de Estudos Orientais da
 Academia de Ciências da Rússia.
Há otimismo cauteloso entre os 
especialistas em Moscou, para os quais um 'aquecimento' nas relações 
entre Irã e o ocidente não implica necessariamente prejuízo para os 
interesses russos. Estima-se que esse aquecimento será limitado e 
incremental, porque "o regime iraniano não poderá renunciar 
imediatamente a todos os seus valores básicos que tanto incômodo causam 
no ocidente" - como Naumkin observou.
O processo é facilitado por que Moscou 
não vê o Irã como fonte de extremismo religioso e a Rússia não enfrenta 
qualquer ameaça que lhe venha do extremismo xiita. Em princípio, 
portanto, não há obstáculos a uma cooperação russo-iraniana. O desafio 
está em construir a complementaridade dos interesses.
A classe média e os tecnocratas 
iranianos preferem a tecnologia ocidental - e as elites russas 
(diferentes dos 'orientalistas' soviéticos) não nutrem qualquer 
verdadeira paixão pelo Irã. Simultaneamente, a China é o parceiro 
comercial e a fonte de investimento com que os iranianos mais sonham.
Quando o Irã abre-se como uma última 
fronteira para exportar gás, pode até ferir algumas suscetibilidades em 
Moscou, se as exportações algum dia chegarem ao mercado europeu, fazendo
 concorrência ao gás russo. Mas os russos levam vantagem em dois 
domínios chaves: cooperação militar e energia nuclear.
Enquanto isso, a Rússia também está 
diversificando suas relações com os países da região, o que implica que 
uma parceria privilegiada com o Irã não pode acontecer em detrimento de 
laços que começam a se tecer com a Turquia ou com Israel. Em resumo, as 
duas potências regionais vão-se agrupando e construindo os fundamentos 
de um relacionamento pós-moderno, diferente de tudo que elas jamais 
conheceram, até agora. 
Tradução: Vila Vudu
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