quinta-feira, 22 de agosto de 2013

"Armas químicas" :Lições esquecidas



22.Ago.13 :: Outros autores
Charles P. BlairNão é por faltarem exemplos de falsas acusações ao longo das últimas décadas que os EUA deixam de recorrer à tecla das «armas de destruição massiva» e das «armas químicas» quando pretendem justificar mais uma agressão militar directa. Desde a década de 1980 as acusações recaíram sobre a URSS e o Vietname, sobre o Sudão e o Iraque, entre outro. Recaem agora sobre a Síria e, tal como as anteriores, não têm fundamento científico sério.


No que toca a estados hostis suspeitos de possuírem armas de destruição massiva, exemplos de alegações injustificadas e erradas, por parte dos EUA, não são difíceis de encontrar. Em 1981, por exemplo, os EUA acusaram erradamente a União Soviética e o Vietname de usarem o chamado “Yellow Rain”, uma micotoxina mortal usada em armamento, derivada de fungos, contra os seus opositores no Laos, Camboja e Afeganistão. Estudos científicos independentes levados a cabo posteriormente demonstraram que o agente em questão eram fezes das abelhas.
Há quinze anos atrás, uma análise química inadequada levou os EUA a lançar um ataque de mísseis de cruzeiro que destruiu a fábrica farmacêutica al-Shifa em Cartum, no Sudão. Devido a um erro de interpretação na análise de amostras do solo, que indicariam a presença de ácido O-etil metilfosfonotióico (frequentemente conhecido pelo seu acrónimo EMPTA), considerou-se, erradamente, que a fábrica estaria a produzir o agente químico VX, que actua sobre o sistema nervoso, para a al Qaeda. Um relatório de 1998 de um investigador do Monterrey Institute of International Studies concluiu, com alguma reserva, que, possivelmente «uma pequena quantidade do percursor químico VX foi produzida ou armazenada em Shifa ou transportada por ali ou perto dali. No entanto, as provas existentes indicam que, provavelmente, aquela estrutura não teve qualquer papel no desenvolvimento [de armas químicas].»
Mais recentemente, como foi conhecido, os governantes dos EUA falharam em seguir padrões estabelecidos para as análises científicas (e divulgaram falsidades evidentes), enquanto levavam as tropas norte-americanas para o Iraque numa missão desastrosa para desarmar Saddam Hussein e o quimérico programa de armas químicas do seu país, as fictícias plataformas móveis de armas biológicas e o seu ilusório potencial de armas nucleares.
A Síria é o primeiro país (mas não será seguramente o último) dotado de armas de destruição massiva a cair em guerra civil. O modo como os EUA (e o mundo) lidarem com este país irá certamente afetar negociações futuras em situações semelhantes. Mas, para devidamente avaliar que armas de destruição massiva tem a Síria, os EUA e os líderes mundiais terão de abandonar a anterior tradição de obscurantismo, técnicas científicas forenses inadequadas e a ocultação de dados contraditórios. Infelizmente, neste momento, os EUA parecem retomar a sua tradição de tomadas de decisão pouco transparentes e questionáveis relativamente às armas de destruição massiva, acusando a utilização de armas químicas, com base em provas insuficientes.
Retraçar a linha vermelha
Em 13 de junho, a administração Obama determinou que a Síria tinha usado armas químicas contra seu próprio povo e cruzou a designada linha vermelha das armas químicas, o que permitiria o apoio militar dos EUA às forças de oposição. Mas essa determinação é impossível de verificar através de fontes abertas e mostra que os EUA, lamentavelmente, arriscam repetir os erros do passado relativamente a armas de destruição massiva.
Ironicamente, desde o início da insurreição síria, em Março de 2011, até muito recentemente, as preocupações informadas sobre o arsenal químico da Síria estiveram, com razão, mais focadas na relação das armas químicas com terroristas e outros actores não-governamentais do que na tendência, por parte do regime de Assad, para a utilização de armas químicas. Como afirmei desde o início de 2012, há grupos terroristas, especialmente islamitas radicais, que têm mais incentivo para realizar grandes ataques com armas químicas do que o regime de Assad. A liderança síria neutraliza eficiente e impiedosamente aqueles que considera inimigos, sem armas químicas, com facilidade. Numa guerra que já matou mais de 90.000 pessoas desde 2011, menos de 100 mortes podem ser potencialmente atribuídas a venenos; incluindo várias mortes de soldados leais ao regime de Assad no ataque a Khan al-Asal, a 19 de Março de 2013. Não obstante tais realidades, desde 20 de Agosto de 2012, o governo dos EUA emitiu oito alertas de linha vermelha para o governo sírio, afirmando que o uso de armas químicas resultaria numa intervenção dos EUA. Embora o texto exacto das advertências variasse, a linha vermelha foi definida por quatro mecanismos globais capazes de desencadear a intervenção:
• O uso ou a circulação de quantidades consideráveis de produtos químicos e, conforme especificado na ocasião, armas biológicas.
• O uso de armas químicas «contra o povo sírio».
• A transferência de armas químicas e biológicas.
• A transferência de armas químicas para terroristas.
A mais recente dos oito alertas foi expressa numa carta da Casa Branca enviada para o senador do Michigan, Carl Levin, em 25 de Abril de 2013 [1].
Por esta altura, os governos da França, do Reino Unido e de Israel tinham emitido três acusações separadas pelo uso de armas químicas contra o regime de Assad. O comunicado de Abril centrava-se nas acusações e estabeleceu por que razão, no entender da Casa Branca, a linha vermelha não fora ultrapassada.
Em retrospectiva, os pontos mais marcantes da carta descrevem insuficiências científicas e metodológicas que impediram o governo dos EUA de concordar com as reivindicações dos seus aliados de que o regime de Assad tinha utilizado armas químicas contra o povo sírio. O comunicado da Casa Branca afirmou que os serviços de informação dos EUA «avaliaram, com diferentes graus de confiança, que o regime de Assad usou armas químicas em pequena escala na Síria, especificamente o agente químico sarin». Embora seja reconhecido que a avaliação dos serviços de informação foi em parte com base em amostras fisiológicas, a Casa Branca também afirmou que «avaliações com base na recolha de informação por si só não são suficientes; apenas factos credíveis e corroborados, que nos forneçam algum grau de certeza poderão guiar a nossa tomada de decisão…». Consequentemente, a administração Obama pediu uma «investigação abrangente das Nações Unidas, que possa avaliar a credivelmente as evidências e perceber o que aconteceu».
A carta reconhece que factos credíveis eram difíceis de encontrar, em parte, por causa de insuficiências nas provas: «a cadeia de responsabilidades não é clara, por isso não podemos confirmar como a exposição ocorreu e em que condições». Como Matthew Meselson, co-director do Programa de Sussex Harvard sobre armas químicas e biológicas explica: «termos confiança elevada requer que a cadeia de responsabilidades e tratamento de amostras, antes de estas chegarem aos laboratórios participantes seja conhecida com precisão e sem possibilidade de adulteração, contaminação, ou influências que possam interferir com a análise química subsequente».
Contudo, menos de dois meses depois, a 13 de Junho, a Administração Obama anunciou «ter confiança elevada» de que o regime Assad usou armas químicas. Novas provas teriam surgido desde o alerta de 25 de Abril; amostras fisiológicas recentes e interceções não especificadas de informação, supostamente de comunicações sobre armas químicas, entre as autoridades sírias. Mas o tratamento inicial e cadeia de responsabilidade sobre as novas amostras eram desprovidos de protocolo científico credível. Da mesma forma, as interceções de informação são muitas vezes mal interpretadas, por vezes com consequências trágicas.
Repetindo o alerta de 25 de Abril de «que foram usadas armas químicas em pequena escala pelo regime de Assad na Síria», a Casa Branca rompeu com seus critérios anteriores para uma intervenção dos EUA na Síria. O governo simplesmente afirmou que depois de «uma revisão deliberativa», os serviços de informação dos EUA já tinham «muita confiança» de que o governo sírio havia usado armas químicas em pequena escala, várias vezes, e que esta avaliação da informação significava que o regime de Assad havia cruzado linha vermelha. Este pronunciamento levou à pronta expansão da ajuda para incluir suporte directo à oposição síria, sob a bandeira do Comando Militar Supremo. Assim, os EUA prepararam-se para o seu sétimo envolvimento militar num país muçulmano desde 2001.
Ausência de provas
Embora o assunto praticamente não tenha sido explorado pelos média nos EUA, várias questões intrigantes surgem a partir da inversão de posição do governo dos EUA na linha vermelha das armas químicas da Síria. A questão óbvia envolve o tratamento inicial e da cadeia de responsabilidades das amostras fisiológicas utilizadas por cientistas franceses para confirmar a presença de ácido isopropílico metilfosfónico (IMPA), um marcador químico do sarin. Cadeias de responsabilidade anteriores foram destacadas na carta de 25 de Abril da Casa Branca como «não sendo claras, por isso não podemos confirmar ocorreu a exposição e em que condições». Mesmo com as amostras francesas subsequentes, que alegadamente terão validado a existência do IMPA, o tratamento original das amostras e a sua cadeia de responsabilidades continuam por resolver no domínio público. Por outro lado, a carta de Abril observou que «as avaliações baseadas na interceção de informação por si só não são suficientes; apenas factos credíveis e corroborados que nos forneçam algum grau de certeza guiarão a nossa tomada de decisão». No entanto, a declaração da administração Obama de 13 de Junho de que o governo sírio tinha usado armas químicas baseava-se quase inteiramente numa avaliação de informação para a qual poucas novas provas foram apresentadas em público. O mais impressionante foi a alegação de se podia confirmar que «um indivíduo foi exposto ao sarin», embora não haja provas de «como ou onde os indivíduos foram expostos ou quem foi o responsável pela divulgação».
Independentemente da sua necessidade, o crescente envolvimento militar dos EUA na Síria, baseado no anúncio de que o governo sírio teria ultrapassado a linha vermelha das armas químicas, não foi bem justificado perante o público. O uso de quantidades significativas de agentes químicos de guerra nunca foi afirmado pela Casa Branca, embora o seu primeiro aviso e a mensagem implícita no seu último aviso afirmem claramente que o uso significativo é um critério de ultrapassagem da linha vermelha. Nenhuma prova incontestável foi revelada publicamente, apesar da ênfase dos EUA sobre a necessidade de «confirmar factos credíveis e comprovados».
No final de abril de 2013, o regime sírio e, possivelmente, as forças de oposição tinham-se, sem dúvida, envolvido num número limitado de ataques químicos em pequena escala desde o primeiro aviso linha vermelha, em Fevereiro de 2012. O total de mortes relacionadas com armas químicas durante esse período de tempo de 14 meses poderá ter chegado a 100, com a possível inclusão de 16 soldados sírios leais ao regime. No entanto, as evidências disponíveis publicamente, incluindo a carta de 25 de Abril da Casa Branca e os sete alertas norte-americanas anteriores, sugerem que o regime de Assad não se compromete a um uso generalizado. De acordo com um desertor, «A intenção era neutralizar rebeldes e forçá-los a sair de áreas estratégicas, mantendo entre as suas fileiras um limitado número de baixas».
Ainda assim, as provas não são claras. A cadeia de responsabilidades das amostras de solo, sangue, urina e cabelo, que supostamente confirmaria a utilização de armas químicas permanece vaga. E, sem saber ao certo de onde vieram as amostras e quem as controlava, as amostras não são, do ponto de vista científico ou legal, provas de nada. Como o antigo inspetor de armas da ONU David Kay adverte, «seria idiota não abordar isto com um pouco de cautela». Julian Perry Robinson, reconhecida autoridade em armas biológicas e químicas, explica: «Por enquanto, os espectadores podem razoavelmente acreditar no relatório apenas se estiverem dispostos a confiar em afirmações sem fundamento ou em provas incompletas, ou a ignorar a história da guerra química. Esta história está cheia de falsas alegações [de posse de armas químicas] e de casos em que pessoas que deveriam ter conhecimento foram iludidas por essas histórias, fosse por ignorância, por engano ou por se iludirem a si mesmas».
Aparentemente, a Casa Branca acredita que o público confiará em provas insuficientes e desrespeito por falhas de informação anteriores que precipitaram resultados desastrosos. A oposição síria tem um claro incentivo para manipular provas, sugerindo que o regime Assad cruzou a linha vermelha. Como observa Robinson, tal manipulação não seria particularmente invulgar, como mostra, para dar apenas um exemplo, o facto de, nos meses anteriores à invasão do Iraque pelos EUA em 2003, quando membros da oposição do Congresso Nacional Iraquiano forneceram aos serviços de informação dos EUA informações falsas, sugerindo que o governo de Hussein tinha programas de armas biológicas e nucleares.
Certamente existem fortes argumentos para o envolvimento militar dos EUA na Síria; a menor das quais não será garantir que qualquer governo sírio subsequente não é composto por islamitas radicais, actualmente as forças da oposição mais eficazes na Síria. O modo como a administração Obama justifica uma componente militar para a sua manipulação do dilema sírio é, no entanto, altamente problemática. Inconsistências e formulação vaga têm enformado os alertas de linha vermelha norte-americanos. A questão central (o que constituiria uma violação do tabu de armas químicas?) permanece sem resposta. Além disso, o governo não tem atendido às lições dos desastres passados com supostas armas de destruição massiva. Não insistiu nos métodos científicos e normas legais necessárias para confirmar o uso de armas químicas e, no processo, abre um precedente perigoso. Com o tempo, outros estados armados com armas de destruição massiva, incluindo, por exemplo, a Coreia do Norte e vários países do Médio Oriente, podem muito bem envolver-se em guerras civis. Se a linha vermelha não for claramente traçada na Síria, como podem os EUA esperar que outros governos e outras insurgências se abstenham de atravessá-la?
[1] Nota do Editor: Este texto foi escrito antes de a Reuters divulgar as fotos com que pretende provar o uso de gás sarin pelo regime sírio, o que só reforça a importância deste artigo.
* Charles P. Blair, Professor da Universidade Johns Kopkins, é colunista do Boletim de Cientistas Atómicos.
Tradução de André Rodrigues P. Silva
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