segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Irun Santana falece em 30/12/2012. Camarada Venceremos!

ENTREVISTA - IRUN SANTANNA

ENTREVISTA - IRUN SANTANNA
Irun Santanna concedeu essa entrevista ao site da Fudação Dinarco Reis pouco depois de lançar seu livro “O garoto que sonhou mudar a humanidade”. Aos 94 anos, Irun é militante do PCB – e único fundador da UNE ainda vivo.
FDR: Podemos começar pelo livro que você preparou?
I: Eu fui escrevendo a torto e a direito em quinze anos... Isso é produto de quinze anos de escritos em horas as mais estranhas possíveis. Vários capítulos escritos às duas, três horas da manhã. Passava um negócio pela cabeça e escrevia. Não há nenhuma vaidade em dizer, mas foi imitando o Rudyard Kipling...
FDR: Em quinze anos...
I: Você conhece o “If”? É um poema... O poema mais famoso de Kipling, em que ele endeusa o individualismo e termina dizendo isso. A frase final do poema é: “Se tu és assim, meu filho; tu és um homem”.
FDR: Mas você falou que tem quinze anos de “preparo”?
I: Preparando... Eu tenho vontade de escrever, fui escrevendo. O meu primeiro livro foi publicado há quinze anos atrás. Eu fiz até o seguinte: com letra de imprensa, para ela passar, e ela passou a limpo para aquele disco, mas, infelizmente, todas as impressoras a que ela recorreu, a dela, a da irmã dela e as daqui não estavam funcionando. De maneira que, como está em letra de imprensa ... É o seguinte: isso aqui é um resumo do que eu escrevi e logo foi publicado. Ao fazer esse resumo, eu fiquei muito orgulhoso porque eu fui amicíssimo do Graciliano. Por uma questão da vida, eu fui muito ligado ao Gracilliano Ramos.
FDR: E você já era do Partido?
I: Os filhos dele foram estudar na escola da minha primeira mulher, certo? E eu me dava imensamente bem com a mulher dele, com Heloísa. Teve assim uma ligação... No início, quando ele estava começando a escrever os livros dele, desde aí que nós ficamos muito ligados...
FDR: Memórias do Cárcere, por exemplo, ainda não estava...
I: Não! Bem longe. Ele ainda estava lá embaixo, lá... “Angústia” ou coisa assim, “Vidas Secas”... Aqueles primeiros romances dele... Da cadela Baleia...
FDR: Mas já era militante?
I: Já era militante, sim.
FDR: E você já era militante também?
I: Antes dele. Ele era o calouro militante.
FDR: Quando você entrou no Partido?
I: 1935, exato. Participei da... Intentona.
FDR: E aí você já começa num momento muito complicado pro Partido, né? Porque vem o levante de 1935, não dá certo...
I: No qual eu participei de arma na mão.
FDR: Você participou com arma na mão? Aqui no Rio de Janeiro?
I: Não sei se está aí dentro do livro... Parece que está. Acho que está.
FDR: Você lembra detalhes, por exemplo, como é que foi saber que em Natal, por exemplo, os comunistas avançavam e aqui no Rio... Que tipo de informações você recebeu desse período do que estava acontecendo no resto do país em relação ao levante? Ou não teve informação nenhuma?
I: Por parte do Partido só algumas, assim, coisas miúdas. O negócio era mais da imprensa, né?
FDR: E não foi utilizada nenhuma faixa radiofônica para transmitir informações?
I: Naquele tempo isso não existia. Só tinha telefone. E como eu nunca fui muito ligado a essa questão tecnológica, sempre dei muita importância ao produto, mas não entendia nada, nem nunca dei importância ao meio.
FDR: É interessante você falar isso porque você termina seu livro agora justamente falando de uma perspectiva do que seria o futuro. Você fala do cosmos, você fala do universo. Sinal de que não é só a experiência do passado, mas o que você vislumbra.
I: Sim. Eu tenho mais do que isso. Se a minha idade ainda der tempo, eu já tenho escrito, acho que quase tantas páginas quanto ... exatamente sobre isso. Sobre o cosmos, sobre a evolução do homem, tá? Eu tenho uma porção de capítulos escritos pra um livro aí...
FDR: Enfim, você participou da Aliança e da Aliança entrou para o Partido. Entrou numa fase muito complicada. E em meio a esse processo todo, vem um fato importante para a vida política do país, pro Partido e para você também, individualmente como militante, que é o processo de fundação da União Nacional dos Estudantes...
I: É aquele que eu descrevo no trabalho, né? 1935 … o interessante é que tudo muda com o espaço e o tempo, né? Então, a reação, naquele tempo, tinha umas determinadas maneiras de agir. O DOPS era dirigido por um detetive português, o Serafim... Correa, não sei. Eu sei que o primeiro nome era Serafim. Era diretor do DOPS e era português; nem era naturalizado, diga-se de passagem. E eles, talvez por incapacidade financeira ou técnica, seja o que for, eles se dirigiam para um determinado objetivo. Atingido aquele objetivo, as "franjas" sobravam. Foi o que aconteceu em 1935. Eles atingiram... Prenderam o pessoal todo militar, julgaram o Navi no Pedro II, fizeram miséria, mataram, assassinaram, mas a intelectualidade também foi presa e foi uma parte, bem, aquela que aparecia, mas, por exemplo, os estudantes não foram atingidos... Então, em 1935, posso quase que garantir a você que não houve um só estudante que tenha sido preso...
FDR: Não participaram do processo...
I: Apesar de terem alguns... Apesar de muitos como eu... No carro que eu descrevo no livro, iam quatro estudantes. Nenhum de nós quatro fomos atingidos.
FDR: Nesse tempo a UJC estava organizada?
I: Olha, o processo da UJC me escapou inteiramente, entendeu? Eu não sei se fui da UJC, se não fui da UJC. Eu sei que eu fui da Aliança e do Partido. Se eles me consideravam UJC ou Partido, eu não sei. Eu que eu entrei para o Partido com... Não tinha feito ainda 19 anos, portanto, estava na idade da UJC, né? Fundei a UNE, certo? Eu não sei se foi a UJC ou a... Você me desculpe. Às vezes eu falo o particular no singular, mas está errado. Nós fundamos a UNE.
FDR: E a fundação da UNE?
I: Aí é que vem o processo, o negócio do espaço e o tempo. Como eu disse a você: eles tinham um objetivo e iam em cima daquele objetivo e esqueciam as "franjas". Então, por exemplo, praticamente em 1935 nenhum estudante comuna foi preso no Brasil. Certo? Sobramos todos. Aí então veio a orientação do Partido, aí sim, acabando com a UJC, e nós ficamos interditos, porque, em 1935, sobramos e ficamos nas células do Partido ... Continuamos a funcionar... Aí vieram: "Olha: a UJC foi dissolvida." Foi quando eu soube que era da UJC, eu não sabia. Aí perguntamos ao assistente: "E o que é que nós vamos fazer?"
FDR: Você lembra quem era o assistente?
I: Não, não. Isso não lembro. Ele disse: "Vão para os órgãos de vocês. Vão pra lá. Vão para os Diretórios." Porque tinha o Diretório... Era antigo já. Resultado: em 1936, 1937, o Partido mandava ou tinha militante atuando em todos os Diretórios do país. Nós cumprimos a regra e fomos pra lá. Então, tomamos muitos... Naquele tempo, tinha uma importância enorme o chamado Centro Onze de Agosto, em São Paulo. Nós conseguimos... Isso era da granfinagem, ultragranfinagem de São Paulo. Só tinha rico no Centro Onze de Agosto. E isso era, vamos dizer, a cabeça estudantil no Brasil, o Centro Onze de Agosto. Pois até lá nós conseguimos influenciar. Então, quando o Partido disse "vão pros diretórios", nós fomos e aconteceu isso. Em princípio de 1937, mais ou menos, nós já participávamos de todos os Diretórios, principalmente aqui no Rio, onde nós mandávamos inteiramente e na Bahia, onde se destacava uma figura de que falam pouco: o baiano Aydano do Couto Ferraz. Bom, depois ele foi da imprensa do Partido. Até no Acre acho que nós tínhamos representantes nos Diretórios de lá.
FDR: E depois esses Diretórios criaram...
I: Exato! Um núcleo aqui no Rio de Janeiro, o centro político do Brasil, naquela época. Câmara, Senado, tudo aqui. Então nós começamos a criar órgãos estudantis, a começar pelo que está aí no documento. O primeiro órgão, quem é que participava? Jorge Amado. O comuna Jorge Amado. Foi um dos que criaram um desses órgãos estudantis de Esquerda. Mas eu estou falando do Jorge Amado de 1933. Tinha publicado só dois livros: O “Cacau” e “O país do carnaval”.
FDR: Quando chega 1945, o Partido... Em 1945, você já estava em Magé?
I: Sim.
FDR: Em 1945 acontece o fato, se você puder comentar um pouco, de o Partido, depois da campanha para acabar com a Ditadura do Estado Novo no Brasil, depois de o Getúlio ter entregue a Olga aos nazistas, assim que o Prestes sai da cadeia, o Partido faz parte do movimento Queremista pelo Getúlio. Quase 10 anos depois, a história vai se repetir, mas ao inverso: o Partido fazendo uma campanha muito forte contra o Getúlio, o Getúlio se suicida e a gráfica do Partido, inclusive, é empastelada pela população, não era nem pela reação. Um pouco antes também das reviravoltas, o Partido sai do Manifesto de Agosto de uma linha de luta quase que guerrilheira para a Declaração de Março...
I: Quase que guerrilheira, não. Guerrilheiríssima. O Manifesto de Agosto é uma declaração, assim, extremada de “revolucionarismo”.
FDR: O que você acha desse ziguezague na nossa História? O que você se lembra, como é que você se sentia em relação a isso? O impacto também do 20º Congresso do PCUS... Esses fatos históricos e as mudanças que ocorriam, às vezes, de uma hora para outra na política do Partido. Como é que você encara isso ao longo da História do PCB? Porque você viveu quase toda ela...
I: Olha, eu era comunista de carteirinha, de maneira que a minha tendência geral era concordar com o Partido, com umas restrições... Saía fora, não participava... Por exemplo: não concordei com o Manifesto de Agosto, não disse nada a ninguém, mas não topei nada, nada, nada que viesse concretizar o Manifesto.
FDR: Era esquerdista aquele Manifesto?
I: Bota esquerdista nisso!
FDR: Totalmente descolado da realidade?
I: Totalmente descolado da realidade, certo? Totalmente descolado da realidade naquele momento. É uma coisa de desespero. Foi um Manifesto quase que... “me bate que eu gosto”. Entendo que quase para provocar a reação e ele chamava o povo para constituir o exército popular, meu filho, para derrubar as instituições. Aquele desespero de chamar o povo para formar um exército popular, para você ter uma ideia.
FDR: E isso era fruto só da perda da bancada parlamentar ou, em sua opinião, tinha algum outro motivo que justificasse o Partido ter optado por essa linha?
I: Não, o negócio ali era a raiva do pessoal de esquerda, era a utilização dos mecanismos de direção burguesa para esmagar completamente o Partido. Foi uma coisa terrível. Um negócio inimaginável o que eles fizeram para esmagar completamente o Partido, certo? Então, o Manifesto de Agosto seria uma espécie de resposta desesperada sem justificativa política, vamos dizer assim, quer dizer, no desespero. O Partido fez o Manifesto de Agosto ... exatamente como 1935 ... O que faltou em 1935 ...
FDR: O que faltou em 1935?
I: Acumular forças, compreendeu? Acumular forças. Em 1935, o movimento popular em torno das reinvindicações que o Partido levantava, era um negócio assim fora de série. A bandeira do Partido e os seus nomes eram aceitos pela massa. E, de repente, acontece aquilo que, na minha cabeça, houve provocação, certo?
FDR: No ato...
I: O movimento lá em Natal e em Pernambuco. Houve infiltração para provocar e determinar aquele levante pra ser esmagado, entendeu? Porque, se continuasse... a massa, o povo brasileiro estava ficando do lado do Partido inteiramente. Um crescimento brutal nas fileiras do Partido ... O ambiente era, em geral, nesse sentido. Se nós acuássemos, avançássemos mais alguns meses, nós teríamos derrubado o governo de Getúlio, mas não. Naquele tempo, que é uma coisa que vocês devem estranhar, o levante em quartel era a coisa mais comum do mundo, certo? E não dava em nada. O regimento se levantava quando a comida estava ruim e pronto. Faziam greve de fome e não voltavam a comer enquanto o governo não mandava comida... E ficavam ameaçando os governos estaduais. Naquele período de 1930, levante em quartel era a coisa mais simples, mas levante pelas reinvindicações imediatas dos soldados. E baseado nisso, como era muito fácil levantar as Forças Armadas pra qualquer coisa, o Partido...
FDR: Cometeu um erro de avaliação...
I: É, houve esse erro de avaliação. E acho que ainda vai se descobrir algo igual ao do Cabo Anselmo. Houve algum Cabo Anselmo, na minha opinião, no Rio Grande do Norte e em Pernambuco. Precipitou uma coisa que seria vitoriosa se demorasse mais uns meses, não precisava anos não. A vibração política pela linha lançada pelo Partido era tão grande que o povo estava todo aderindo. Sindicatos sendo levados a tomar decisão política, uma vibração política muito grande ... Agora, chamar o movimento de 1935 de Intentona foi a maior sacanagem que a reação podia fazer. Não houvesse a precipitação de Natal e Pernambuco, Getúlio teria desaparecido naquele período. Getúlio, Filinto Müller... Todo aquele pessoal teria sido varrido do mapa.
FDR: E como é que foi, dez anos depois, exatamente, você fazer parte do movimento queremista de uma hora para outra?
I: Nós não fizemos parte do movimento queremista. Nunca! Nunca! Chamaram... O Partido foi queremista. O Partido foi, naquele período... Prestes toma aquela atitude que assombrou, balançou muita gente, muita gente entrou em choque, muita gente saiu do Partido por causa daquilo, né? Do apoio a Getúlio, o homem que tinha mandado a Olga para as garras do nazismo. Muita gente não entendeu. Já naquele tempo, muita gente entrou em choque.
FDR: E pra você, vendo hoje, qual a avaliação...
I: Aliás, vou já passar pra você uma coisa, uma conclusão que eu tenho há muito tempo, que eu não digo... Prestes, pra mim, como ser humano, como médico que eu fui, é uma criatura fora de série. Poucos homens na vida puderam suportar o que ele suportou sem se suicidar, sem... Basta dizer o seguinte: solitária é uma coisa tão séria que, em todos os exércitos do mundo ou em todas as polícias do mundo, está estabelecido que não se impõe mais de trinta dias de solitária. Prestes ficou nove anos! Isso aí, inteirinho! Agora, a minha opinião, que eu tô dando a você, pela primeira vez tô passando para alguém, a minha opinião é a seguinte: ideologicamente, esse ser fora de série que era o Prestes ... qual é o documento de Prestes que você cita? Me diga. Que ficou aí, cadê? Nós fomos, praticamente, o único Partido do mundo que não teve um ideólogo.
FDR: Alguma lembrança específica do Prestes?
I: Eu, uma vez, estava no elevador com Prestes, e o Prestes começa a conversar comigo e vira-se pra mim: “Você e tal, quando você foi a Moscou ...” Eu disse: “Quem é que foi a Moscou? Eu fui a Niterói, no máximo.” Ele: “Você nunca foi a Moscou? Não é possível! Prepare sua roupa que eu vou”... Escreveu para o Partido e eu fui chefiando uma delegação que naquela época havia, que era o seguinte: eles premiavam os grandes militantes, os velhos militantes, já velhos, com uma viagem à URSS. Tudo pago desde aqui até lá, ida e volta. “Se prepare que você vai para a URSS.” Uma semana depois, o Partido estava me avisando: o negócio vai ser dia tal, prepare suas malas... Agora me perdi um pouco, acontece muito isso com a minha idade.
FDR: Você estava no elevador, com Prestes...
I: Ah, sim. E ele faz isso. Ele ficou horrorizado quando soube que eu não tinha ido e promoveu esse negócio. Lá fui eu chefiando a delegação... Então estava nesse nível, né? Baixaram lá secretários para me atender. A delegação brasileira sempre é recebida por Secretários do Partido. Nos lugares onde eu fui a sós – e fui a Leningrado, fui à Bielorrússia, fui a Minsk – eu era recebido como dirigente máximo. Em Minsk, fizeram de me colocar no carro mais novo do ano, de mais luxo, eu e a minha mulher, com escolta, motocicletas na frente e atrás, né? Minha mulher ficou “p” da vida, falou com o intérprete que era um escritor, um cara extraordinário, nunca tinha vindo ao Brasil e conhecia mais do Brasil do que, talvez, você conheça, o Igor. E era apaixonado pelo Brasil. A ordem que veio lá de cima era que eu tinha que ser tratado como se fosse diplomata. Nós é que baixamos o negócio. Mas voltando: o que eu quero dizer fundamentalmente é que o único Partido do mundo que não teve um ideólogo à altura. Tivemos figuras que tendem a botar para cima, mas eu também acho fracos, assim como o Gorender, o Jacob Gorender. Mas dirigente político nosso nós não tivemos. Marighella. Marighella era muito guerreiro.
FDR: Você chegou a conversar, ou qual era a participação, a visão, de personagens como Caio Prado, como Nelson Werneck?
I: Nelson Werneck: ganhei presentes dele, da mulher dele. Quase toda a produção dele. Nelson era amicíssimo. Com Caio Prado não tive contato e me lembro que discordava fundamentalmente das colocações dele.
FDR: Retomando até uma pergunta anterior, esse assunto que você levantou, de não termos tido um ideólogo ou, utilizando outras palavras, se você concordar, alguém que conseguisse traduzir o estágio de desenvolvimento da luta de classes na sociedade, do capitalismo no Brasil... Isso, de alguma forma, tem relação com esse ziguezague da tática política?
I: Claro! Se você não tem uma linha ideológica, filosófica acertada, você vai ziguezaguear. Você deu o nome correto. Você “zagueia”, vai pra lá, vai pra cá, certo?
FDR: E você falou sobre o Manifesto de Agosto e sobre a Declaração de Março, que depois, inclusive, iria gerar um racha. Qual avaliação que você faz?
I: Ao contrário. Uma volta para trás. Enquanto o Manifesto de Agosto avançava demais, não batia com a realidade brasileira, o Manifesto de Março batia com a realidade que tá aí, da corrupção. A Declaração de Março pregou aquela coisa: nós nos misturamos, manchamos, inclusive, com a mistura, nossas concepções marxistas. Não sei se você sabe um detalhe que eu vou contar a você, eu participei: Prestes estava na clandestinidade e ia haver o Congresso do Partido. E aí o Partido pediu que o Prestes fizesse uma coisa ideológica, filosófica, uma tese para o Partido, porque tinham as teses. O Prestes escreveu, mas a direção não aceitou, e aí o Giocondo comanda aquela Declaração que, ao contrário, é o mergulho na política...
FDR: ...Burguesa?
I: Burguesa. Entendeu? Essa é a minha análise...
FDR: É importante falar que, dois anos antes, teve o XX Congresso do Partido da URSS, cujo informe deve ter caído como uma bomba dentro do Partido. Você, nesse período, já estava em Magé?
I: Eu tava... Olha, o negócio é o seguinte: Eu morei muito tempo no Rio e trabalhava em Magé. Durante alguns anos – mais de 10 anos – morei em Magé mesmo, e minha política tá exatamente no livro.
FDR: Mas você tinha contato também com a efervescência que acontecia aqui...
I: Sim. Acontece que, fora de Magé, eu tinha contato com a direção do Partido, compreendeu? Eu fui braço direito do Agildo Barata. Agildo Barata, tesoureiro do Partido, e eu ia com ele tirar o dinheiro da burguesia. Anos 50, eu acho. Estive em Campos, em uma porção de lugares para tirar dinheiro da burguesia, porque ele ameaçava, né? Ele arrancava mesmo dinheiro a pau... Você ficava sem jeito. Para você ter uma ideia, houve um período em que, por causa da Declaração de Março, nós nos aproximamos do Amaral Peixoto. E, como em toda campanha eleitoral, o partido que tem dinheiro ajuda o outro, né? Então, nós pedimos a ele quantia alta: 400 mil. Na época corresponderia a 1 milhão hoje.
FDR: E esse dinheiro era só para campanha...
I: Era pra campanha. No Partido, não houve um só momento, de ninguém que pegasse esse dinheiro. Houve traição, houve infiltrações sérias, mas...
FDR: Não é isso. Além da campanha, se utilizou para montar uma gráfica, por exemplo?
I: Ah, sim. O dinheiro, depois, o Partido utilizava como achasse interessante. Mas nós tomávamos dinheiro desse pessoal. E o Agildo tomava na base da pressão. A tal ponto que, um dia, Amaral mandou um recado: “Olha, eu vou dar o dinheiro, mas, por favor, mandem o Irun, não mandem o Agildo”. Tem outro detalhe muito interessante nesse negócio da contribuição em dinheiro. Esse é curioso. Não tem nada de pressão. Foi um bicheiro, em Petrópolis: Melo. Naquele tempo, era o bicheiro de Petrópolis e Teresópolis, nesses arredores. Aí o pessoal de lá de Petrópolis levantou: “Olha, o lema aqui é nacionalista. Talvez, se vocês vierem aqui, tomem um dinheiro bom deles”. Aí nós fomos. Eu e um médico, outro médico de Petrópolis. Nós chegamos e expusemos: “Olha, nós somos do Partido Comunista e tal, mas nossa posição é profundamente nacionalista”. Era a linha nacional libertadora. “E soubemos que o senhor é entusiasta do movimento do Petróleo é Nosso, e viemos aqui pedir esse dinheiro ao senhor ... porque o senhor sabe que a alma da coisa é o Partido Comunista”. Ele disse pra nós assim: “Os senhores estão perdendo tempo...” Aí nós começamos a falar do movimento do Petróleo é Nosso, que era muito bom, que... “Os senhores podem parar de falar aí porque eu estou acabando de chegar de Camaçari, na Bahia. Eu sou tão entusiasta do programa pelo petróleo que fui lá, só pra ver. Os senhores querem ver o vidrinho de petróleo aqui? Quanto é que os senhores querem?”
FDR: Você “gastou saliva” sem precisar...
I: “Quanto é que os senhores querem, estão precisando para fazer impulsionar esse movimento?” Aí eu olhei pro outro e não sei quem teve coragem de pedir 400 mil moedas da época. Seria 1 milhão. “Só?”, a resposta dele. “Olha, passem amanhã nesse endereço. O meu gerente está nesse endereço e eu vou avisar a ele... Os senhores vão ter o dinheiro. Vai ter que ser em dinheiro, em notas. Levem bolsas”. Coisas curiosas, né? Bicheiro contribuindo em alto nível para o Partido Comunista porque o Partido Comunista estava criando, estava defendendo o Petróleo é Nosso. Nem se falava em Petrobrás, nada disso. Nem tinha... Estava começando, né? O primeiro poço de petróleo lá em Camaçari, fui lá pra ver.
FDR: Sobre o 20º Congresso e a divisão do PCB com o PC do B... O que você poderia dizer?
I: Essa eu não acompanhei de perto. A que eu acompanhei de perto foi entre PCB e PPS. Nesse eu participei...
FDR: Foi a São Paulo?
I: Fui a São Paulo, nós fizemos uma reunião lá no Arouche, né? Já sabíamos que o Roberto Freire tinha se mobilizado pra isso, botou uma porção de gente, inscreveu uma porção de gente no Partido e botou como delegado querendo nos derrotar. Sabíamos que íamos ser derrotados e já tínhamos preparado adiante... O Freire criou o PPS e nós saímos em passeata e fomos para esse outro local que já estava reservado e mantivemos o Partido com o Horácio Macedo à frente.
FDR: Um pequeno livro do Nelson Werneck Sodré, “Contribuição à História do PCB”, aborda as dificuldades de se contar a história do Partido, porque muitos documentos foram levados pela repressão e o Partido até hoje não os tem, além de que muitas bibliotecas tiveram que ser destruídas por causa da reação. Muita gente teve que jogar coleções de jornais, de panfletos, de manifestos...
I: Foi um negócio tremendo. Houve uma perseguição, principalmente em 1935...
FDR: Mais do que em 1964?
I: Não sei. Em 1935 houve isso, uma destruição de documentos, mas uma coisa alucinante. Documentos do Partido, porque na família tinha o esquerdista, não precisava nem ser comuna, mas que tinha livros de Marx. E se organizava toda uma trama para fazer desaparecer livro, queimar, jogar no esgoto, jogar no rio, uma coisa tremenda, essa em 1935.
FDR: Existem alguns assuntos na história do PCB, assuntos complicados, acordos políticos, processo de verificação inclusive de coisas como as infiltrações da direita, que talvez nunca venham a ser efetivamente comprovadas. Como é que você, com mais de 70 anos de militância, encara isso? Existem arquivos fechados sobre a vida interna do PCB que nunca serão abertos?
I: Isso é que é triste, é que não existem esses arquivos. Esses arquivos foram todos, como eu disse a você, no processo revolucionário brasileiro, eles foram sendo queimados, né? Eu, no período dos anos 50, 60, editei uma revista junto com outros médicos, vários médicos de esquerda que fizemos uma revista médica chamada “Atualidades Médicas e Biológicas”. Uma revista médica na Guerra Fria. Editamos vinte números dessa revista.
FDR: Esse material se perdeu?
I: Não se perdeu. A polícia queimou todas! Tá bom? Eu, a duras penas, tenho uma meia dúzia desses exemplares, alguns exemplares de cada. A pergunta foi boa, mas você vê a que ponto chega a repressão da burguesia. O Churchill declara a Guerra Fria. Desde aí, nada que se fazia, que se produzia, fosse o que fosse em matéria de arte, em matéria de ciência, em matéria de medicina, qualquer coisa nos países socialistas, nada chegava ao Brasil.
FDR: Nem artigos acadêmicos ou científicos?
I: Nada. Absolutamente nada. Então nós, para rompermos com isso, criamos uma revista para divulgar o chamado mundo socialista. Todos os países que foram para o Comunismo produziam coisas em medicina. A China, inclusive, foi a mais inteligente de todas.
FDR: Por quê?
I: Como sabiam que ninguém entendia mandarim no mundo inteiro, os chineses pegavam os melhores artigos sobre ciência médica e publicavam uma revista de medicina em inglês. Tá bom? Eu todo mês passava na embaixada chinesa para apanhar a revista. Que visão desse pessoal. Fizeram isso. O que havia de melhor. Com a Guerra Fria acabou isso, não chegava nada aqui. Então nós fizemos uma revisa de medicina para publicar... Muitas das coisas que estão aí na medicina atual são de origem socialista: hipnose médica e odontológica. Até aquele período da Guerra Fria, hipnose era artigo de mágico no teatro. Eu assisti um mágico fabuloso hipnotizar toda a plateia. O único que não foi hipnotizado fui eu, que sabia como me livrar, conhecia hipnose. No entanto, é método de tratamento. Você é capaz de hipnotizar um paciente, tirar os dentes todos dele, numa sessão só, sem ele sentir nada e ele sair dali e não sentir nada. Hipnose bem feita, você pode fazer isso, tá? Acupuntura. Método milenar dos xamãs, dos macumbeiros chineses, que são chamados de xamãs, entendeu? Mas um método milenar, método mais velho que Jesus. Acupuntura, isso se aperfeiçoou de tal maneira que quando chegou na China comunista, os médicos verificaram que o troço era bom mesmo. Com os aperfeiçoamentos que tinha sofrido esse processo milenar, chegaram à conclusão de que o troço era bom, e é bom mesmo!
FDR: Vocês chegaram a publicar artigos sobre acupuntura, por exemplo?
I: Uhum.
FDR: Nessa revista?
I: Nessa revista. Parto sem dor, que eu cito aí no livro. Um soviético, Platonov, mostrou que a dor sentida pela mulher no parto tem fundo religioso. Tá lá na Bíblia que Deus condenou a mulher a parir com dor, e todo mundo passou a acreditar que só se nasce com dor. Não é verdade. Parto é fenômeno fisiológico, não pode nem deve doer. Se doi, é porque os órgãos da mulher estão doentes. Mulher sadia tem parto sem dor. E nós provamos isso. A revista veio pra cá, e nossos obstetras – tem uma, a Maria Augusta Tibiriçá – com um curso de três meses, fazem a mulher ter um filho sem dar um ai. Porque foi metido na cabeça das mulheres: “Parirás com dor. Jeová disse isso”.
FDR: Em grande parte do seu livro você fala da sua atividade profissional e, de certa forma, ela também estava ligada à sua atividade política em Magé. Uma matéria que saiu recentemente divulgouestudo premiado pela FAPERJ, segundo o qual o crescimento demográfico de Magé entre 1920 e 1940 é algo quase que inócuo por causa do enorme índice de malária. O Brasil não tinha nenhuma política de saúde... Como é que foi chegar naquele município e desenvolver todo esse trabalho?
I: Não tive barreiras porque soube encaminhar o processo. Então, você vai de acordo com o pensamento da massa... Acabou. As barreiras acabaram. Fui pra Magé, como eu conto no livro, porque lá tinha cinco fábricas.
FDR: Tecelagem?
I: Tecelagem. Mas eu cheguei lá e não me declarei comuna. 1940, certo? II Guerra Mundial, o Brasil naquela luta com Getúlio para Getúlio ficar ao lado dos democratas e contra o Eixo. Que ele era fascista, em1938, era marca da formação do Estado Novo, que era um Estado fascista. Em 1940, começa a divergência. Eu tô sem coragem, na espera. Aí, de repente, começa a ter uns atritos, Getúlio faz declaração emMinas Gerais pró-fascismo, o povão esperando que ele mudasse de posição, querendo forçá-lo a mudar de posição... Afundam os navios brasileiros. Foram uns quatro. Isso desencadeia a luta para o Brasil entrar na guerra, entrar na guerra ao lado dos aliados e mandar a Força Expedicionária. Constituí, em Magé, uma comissão de apoio à Força Expedicionária, que tem o apoio de todo mundo, de todos os partidos, dos mais reacionários possíveis, todos apoiam. E eu, o líder do “negócio”. Começou a minha atuação, pelo lado patriótico. Tive essa sorte. Quando acaba a guerra, eu mostro, apareço como comuna e já tinha conquistado de tal maneira a opinião pública, que o Partido, de 13 vereadores, faz quatro. Elege quatro e o suplente, praticamente cinco, em uma Câmara de 13 vereadores. Tá bom? O negócio é você saber como fazer, mas pode cometer erros também, como eu fiz, a ponto de ser esculhambado pelo juiz reacionário (risos), quando fui candidato a prefeito. Fui candidato a prefeito em Magé, e tava pau a pau com oadversário. Cada dia, mais gente a meu favor, e eles conseguem cassar o registro da minha candidatura na véspera do pleito. E eu, naquele entusiasmo em que eu estava, com o apoio maior, eu parei a campanha, abandonei tudo, e fiquei chateado. Resultado: ainda tive uma votação bastante boa, e o juiz que morava comigo e que era reacionário, formado em Coimbra, mas muito ligado a mim, me deu uma bronca: “Pô, mas que besta que você foi, hein? Por que você não continuou sua campanha? Você ia ganhar, depois nós íamos pro pau. Ia ganhar e iam dizer que você não podia, ia pra juízo e você ia ganhar”. Recebi uma esculhambação, não foi do Partido não, foi do meu juiz (risos). Tá bom? Reacionário!
FDR: Você acha que o que te levou a escolher o comunismo e o que te levou a escolher a medicina, aí dentro do seu peito, é a mesma coisa?
I: Coincidem bastante. Eu não sei por quê, desde os seis anos de idade, eu acho que boto isso aí no livro, eu não me conformava em saber que tinha uma família organizada, que ia me fazer médico... Eu era muito estudioso, primeiro lugar em escola primaria, dez com louvor, e eu sabia que, com meu potencial pessoal e o apoio que eu ia ter dos meus familiares, ia chegar a médico. E não me conformava, com seis aninhos de idade, já pensava assim. Que a garotada, a molecada da rua, tá aí no livro, eu acho, ia ficar na fábrica, e eu os achava superiores a mim. Eles eram melhores em tudo! Eu só era melhor do que eles numa coisa: pegar rã. Apanhar rã. E na corrida, maratona da morte. Bem alimentado, eu ganhava sempre mesmo. Mas, na maratona da morte. Quem não aguentava ia caindo, ia saindo do caminho. Ganhava o que fica de pé, e eu ganhava sempre.
FDR: Mas você descobriu a existência da medicina antes da existência do comunismo. Como é que foi esse encontro?
I: Aí é fácil, é muito fácil de explicar. Meu pai, uma das coisas que ele foi ser foi mata-mosquito. Segundo: eu morava num ponto do Rio de Janeiro, um lugar chamado Retiro do Saudoso, que era separado pelo mangue do Castelo...
FDR: Mangue ou Morro do Castelo?
I: Não. Do Castelo da Fundação Oswaldo Cruz. As minhas princesas ficam lá, naquele castelo (risos). Certo? Subia a direção do Oswaldo Cruz... Isso de um lado, de outro lado, a minha vó, preta, mãe do meu pai, foi das primeiras, dizem que foi a primeira, não vou exagerar, mas foi das primeiras enfermeiras do Hospital São Sebastião, hoje tá lá, abandonado. Aqueles pavilhões bonitos, e ela foi tão boa enfermeira que, naquele tempo, que não tinha aposentadoria, ela envelhecendo, os médicos e o diretor do hospital resolvem dar pra ela um quarto pra ela viver até morrer. E deram a ela: casa, comida e roupa lavada. E o hospital era uma referência na época das grandes epidemias. Então, eu tinha contato quase que semanal, às vezes, quase diários com aquela vivência ali. Entendeu? Tive essa influência. Do outro lado, a influência do Oswaldo Cruz lá na minha mente infantil. O mais curioso foi ser comunista, porque eu, aos seis anos, não aceitava que os meus companheiros fossem parar na fábrica e eu ia ser médico. Eu ficava revoltado com isso.
FDR: Com seis anos?
I: Com seis anos. Aos seis aninhos já...
FDR: E você sabe identificar em qual momento caiu a ficha? Foi um livro, foi um contato com algum militante?
I: Não sei explicar por que desde os seis anos eu tomei essa atitude. Não sei te explicar. Eu sei que, dos seis aos onze anos, até entrar para o ginásio, eu era companheiro da molecada toda dali e lastimava isso: sabia que eu ia ser médico, que tinha um potencial e um apoio enorme da família, como eu tive. Uma coisa que me revolta é esse negócio de dizer “me fiz por mim mesmo”... Coisa nenhuma! Não há ninguém, nenhum imbecil, nenhum gênio, fora da realidade, que tenha chegado a uma situação espetacular que não fosse pelas circunstâncias favoráveis da vida.
FDR: O Partido está comemorando 90 anos. Você é mais velho que o Partido. Que recado você quer deixar para as gerações que estão por vir?
I: Eu estou vendo o crescimento, a cada momento, do conhecimento médio crescer, a cada dia, a cada momento filosófico, posso dizer assim. Nós estamos falando aqui, e apareceu uma coisa mais avançada na humanidade. Ao mesmo tempo, nós estamos no caos, essa é minha opinião. E vamos caminhar para a destruição ... Nós estamos no caos porque o capitalismo está acabando. O trabalho morto vai substituir otrabalho vivo. E sem trabalho vivo não tem capitalismo. A máquina faz tudo! Agora mesmo, no jornal de hoje, eu tô pedindo a ela pra guardar, saiu um negócio que é espantoso. Não sei se vocês viram. Uma cidadezinha do Piauí, o estado mais atrasado do Brasil, juntaram-se lá uma meia dúzia de jovens pedagogos e ela é a campeã do mundo em matemática, entre os jovens. E não é um fenômeno só não, são vários garotos, de onze a dezessete anos, que estão faturando, todo ano, o prêmio de matemática. No interior do Piauí. Esse é o nosso futuro! Entendeu?
FDR: E o que o Partido precisaria fazer?
I: O Partido precisa ... Aí é que entra a briga minha, o Partido precisa dar importância a isso, ao crescimento excepcional do trabalho morto em relação ao trabalho vivo. Esse crescimento vai ser de tal maneira que o trabalho morto vai matar o trabalho vivo em uma geração, essa é a minha opinião. Acabando o trabalho vivo, não vai existir exploração do homem pelo homem, como no capitalismo. Tá de acordo comigo?
FDR: O problema é que a tendência do que vem depois não é muito boa...
I: A tendência pode ser muito boa, como é nesse caso do Piauí. Extraordinário. Tem esse potencial na humanidade, que é o que eu sempre defendi, desde pequenino, um negócio inimaginável. Essa cidadezinha não tá produzindo um gênio, não, tá produzindo gênios e mais gênios. O potencial não é crescimento aritmético, nem geométrico, nem trigonométrico, é um crescimento exponencial, crescimento do trabalho morto, da ciência, da tecnologia, e essa vai dar aos seres humanos a oportunidade deles aparecerem. Aliás, quero falar também do Maranhão. Não dá pra entender como que um estado como aquele, com o domínio daquela família, permanece naquela miséria, aquele atraso absoluto em tudo, em tudo! Até na agricultura, não dá pra entender. Falando nisso, um detalhe, (risos) cê não sabe?
FDR: O quê?
I: Sarney, quando começou a ser deputado pela UDN, fazia parte da “banda de música” e contribuía mensalmente para o Partido (gargalhadas)...
FDR: Como assim?
I: É o seguinte, era, porque o primo morreu, primo-irmão do Milton José Lobato, médico fisiologista e comunista de carteirinha. Quando ele se elegeu deputado, veio para o Rio de Janeiro e encontrou o Milton aqui, entendeu? Tava entusiasmado, recém-eleito deputado da “banda de música” da UDN, um novato do partido dele aqui no parlamento. O Milton Lobato falou com ele e ele passou a contribuir com o nosso Partido. Todo mês nós íamos almoçar com ele, na Rua do Lavradio, num restaurante chamado “Tim-Tim por Tim-Tim”, frequentado – não sei por que motivo, nem era próximo ao parlamento – por deputados e senadores. Todo mundo ia lá comer as famosas iscas de fígado, com elas ou sem elas. Sabe quem são “elas”, né? Batata frita (gargalhadas). Com elas. E aí ele contribuía alto, inclusive, pro Partido, através do primo. E o primo fazia questão, dizia: “Olha, o Sarney não é flor que se cheire, é meu primo, mas só vou buscar o dinheiro se eu for com você”. Então, todo mês nos íamos almoçar com ele lá no “Tim-Tim por Tim-Tim”.
FDR: Fígado com fritas e dinheiro para o Partido.
I: É, dinheiro para o Partido.
FDR: Para a gente concluir, depois do lançamento do livro, você disse que já tem outro engatilhado. Ele sai quando?
I: Esse é o seguinte: cheguei à conclusão que só pode ser feito a cinco, seis mãos. Precisa de um historiador, que eu já tenho, que é o Aquino. Precisa de um astrônomo, esse é mais difícil, que seria o Maurício Gleiser ou o Rogério Mourão Freitas, eu não conheço nenhum dos dois, mas acompanhei a vida dos dois. Aí é que está a coisa curiosa, acompanhei desde que eles começaram. No caso do Maurício Gleiser, eu tenho quase certeza, inclusive, de que ele é parente de uma pessoa que deu um grande problema quando eu estava começando no Partido, nos anos 30: Genny Gleiser. Menina de 16 anos, foi presa pela Ordem Política e Social nos anos 30. Acho que foi em 1934. Presa e mandada pelo Getúlio para ser entregue a Hitler. Quando passa num porto francês, acho que Marselha, o pessoal do Partido invade o navio em que ela estava, arranca ela do navio e a salva das garras de Hitler.
FDR: Socorro Vermelho?
I: Ah, não sei quem foi... Foi o Partido Francês que fez isso. Bom, Genny Gleiser desaparece da minha mente e até mesmo da dos próprios judeus. Ela era judia. Até da mente dos judeus. Ninguém falava mais nela. Até que um judeu, grande militante comunista, Joseph Schneider, começou a catar, procurar o destino da Genny. E descobre que ela estava em Nova York. Viva ainda em Nova York. Agora eu dei um salto de 1930 pra 1980... Uns 50 anos esse salto. E ela vivendo lá em Nova York. Schneider, um sujeito muito humano, era dessas figuras... Comuna militante, os judeus reacionários chamaram-no para ser diretor do Museu dos Judeus aqui no Brasil. Pra você ver o valor desse homem, de tanto conhecimento, tanto estudo. Profissão: alfaiate. Foi mestre do Adonis, daquela camisaria Adonis. Esse Joseph Schneider era assim, fora de série...
FDR: E aí ele encontra a Genny em Nova York ...
I: Ele a encontra em Nova York e avisa que tinha uma herança aqui porque a irmã dela, Berta Schneider, tinha casado com Darcy Ribeiro! A Berta Schneider era mulher do Darcy Ribeiro e irmã da Genny! Eu acho que ela não teve coragem de voltar ao Brasil, ou não quis, ou estava bem. O certo é que ela não veio, mas há uns 15 anos eu garanto que ela estava viva. A história da Genny merecia um livro. Tem muitas dessas personalidades que eu estou citando aí que mereciam um livro. O Sarney, pra esculhambar com ele (risos). Mas não deixem de ver a matéria sobre os garotos do Piauí. Imagina, quando vier um regime que dê margem pra todo mundo se manifestar, quantos artistas e técnicos vai produzir... O Brasil e os países que entrarem pelo caminho de darem importância a esses seres, vai ser fora de série!
FDR: Precisamos de um regime socialista para isso.
I: Exato. Nós tivemos a infelicidade e a felicidade de nascermos num país como o Brasil. Essa cidade (Rio de Janeiro), por exemplo. Dizem assim: aqui é realmente a maior cidade, a mais bonita, a melhor cidade do mundo. Não existe. E eu digo com autoridade, porque eu conheço todas as trilhas em volta da cidade. Saía catando morro pra subir, pra entrar no mato ... Há uma coisa curiosa que eu não conto no livro não. Você sabe que eu encontrei no trecho que hoje é a estrada Grajaú-Jacarepaguá, no tempo em que era selva, os canhões do Duguay-Trouin?
FDR: Canhões de quem?
I: Houve um grande corsário ou almirante francês chamado Duguay-Trouin que invadiu o Rio de Janeiro. É uma história bonita! O Rio de Janeiro foi invadido aqui por um pirata chamado Du Clerc. Du Clerc tomou a cidade, mas foi aprisionado na luta dos estudantes, principalmente estudantes de medicina... Estes se uniram, lutaram e derrotaram as forças de Du Clerc, que ficou prisioneiro dentro da cidade. E fica anosaqui. Aí se forma uma outra esquadra poderosa com o Duguay-Trouin, que chega na entrada, no Pão de Açúcar, dá adeus pro pessoal e vai saltar na Barra. Aí desce todo mundo, descem os soldados dele todos com os canhões e tudo. Atravessa as lagoas lá da Barra, sobe pela Freguesia, que era o caminho que eu passei a fazer anos depois, entra na mata e, com uma porção de canhões pesadões e tal, enguiça. Ele abandonou aqueles canhões e foi em frente. Eu encontrei esses canhões. Mas era garoto, não sabia da importância da história. Devem ter pegado pra fazer sucata de ferro, que eu nunca vi referência a isso. Não existe na história do Brasil referência a isso...
Last Updated (Friday, 27 April 2012 05:04)
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Nota de Amaro/pensarnetuno:
  Conhecí Irun ha poucos anos em um congresso do PCB e simpatizei com este antigo combatente de imediato. O derrotismo e anticomunismo de esquerda que se tornou uma praga não afetava este antigo camarada.Ele foi  levado pelo tempo biológico mas não pela História.
                    Irun,
              venceremos! 

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