domingo, 11 de novembro de 2012

Júlio C. Gambina: Dívida e perda de soberania

A dívida e a perda de soberania

Julio C. Gambina
11.Nov.12 :: Colaboradores

Julio C. GambinaA Argentina costuma ser apresentada como um bom exemplo de atitude em relação à questão da dívida externa. Este artigo mostra que a coisa não é bem assim. A dívida continua a condicionar a política e é necessário reverter o ciclo de negociação e pagamento. O problema da dívida só tem solução se em simultâneo o país recuperar soberania e anular toda a dívida negociada sobre a base da cedência de soberania.


Muito se fala agora dos “fundos abutres” a propósito do embargo sobre a Fragata Libertad retida no Porto de Ghana; e é verdade que esses fundos de investimento podem assimilar-se às aves de rapina, que rondam a presa para se alimentar do desespero e da agonia de corpos em dificuldades.
A questão é se a Argentina é uma presa agonizante e apetecível para os abutres do sistema capitalista.
A Argentina não parece viver um tempo de agonia. É certo que em 2012 a economia desacelerou, mas no quadro de uma década de crescimento importante, e além disso, se em 2001 declarou a suspensão de pagamentos em 100.000 milhões de dólares, com as trocas de 2005 e de 2010 renegociou-os 93%, e é desde então um país cumpridor dos seus compromissos de pagamentos externos.
Mais do que em agonia, a Argentina parece atravessar um período de acumulação capitalista saudável, e enquanto por todo o mundo são notícia os países com dificuldades para cancelar a sua dívida soberana, em Buenos Aires os prognósticos agoirentos são desmentidos, e os pagamentos da dívida pública são rigorosamente cumpridos.
O país gerou as condições para sair do default declarado em finais de 2001 e, pagando as suas dívidas, pretender regressar ao mercado financeiro mundial.
Não é que estejamos de acordo com isso, muito pelo contrário, mas pretendemos explicar o que está a acontecer em relação a um assunto estrutural de ordem económica no país e no mundo, o do endividamento e da dependência que essa situação gera face ao capital hegemónico, muitas vezes, convenhamos, predador e carniceiro.
O objetivo era e é pagar a dívida
A Argentina é um fiel cumpridor das suas obrigações externas, e o governo gaba-se disso, mantendo embora ainda 7% da dívida em conflito (holdout) e um montante similar não pago ao Clube de Paris, dívida em relação à qual se anunciou em diversas ocasiões a vontade de negociar e cancelar.
Pode pensar-se que a Argentina encontrou a forma de resolver o endividamento, pois não apenas “fez um arranjo” com a maioria dos credores, como também paga regularmente as suas obrigações.
Claro que isso constitui um pesado encargo no orçamento para 2013 que acaba de ser aprovado e, para além disso, são destinados quase 8.000 milhões de dólares das reservas internacionais para cancelar vencimentos do próximo ano, e mais de 80.000 milhões de pesos de nova dívida.
Para que não haja duvidas, esta semana a Presidente assegurou que em Dezembro próximo serão cancelados em dólares os vencimentos de títulos do Estado Nacional. O objetivo dessa informação era desanimar aqueles que acreditavam que o país iria seguir o rumo da “pesificação” que algumas províncias já começaram a percorrer, rumo que parece ir ser seguido por outros Estados provinciais.
Claro que a “pesificação” é induzida por múltiplas acções, que dizem não apenas respeito à restrição à compra e venda de divisas, ou ao uso quotidiano de divisas nas relações comerciais, mas também à pouco analisada troca de dívida denominada em moeda estrangeira por endividamento em pesos argentinos.
Este mecanismo transita pelo cancelamento de dívidas com divisas, diminuindo as reservas internacionais e substituindo-as por compromissos futuros em pesos do tesouro nacional do BCRA.
De este modo, o BCRA acumula dívida a cancelar por futuros governos transferem-se divisas para os históricos credores da dívida pública da Argentina. Assim, a Argentina paga a sua dívida com dólares e acumula novas dívidas em pesos, dívidas que imaginamos irem renovar-se continuamente, condicionando o presente e o futuro soberano do país.
Os cancelamentos de dívida e as sucessivas negociações, não apenas esta década, mas em cada um dos ciclos constitucionais, indicam que a dívida continua a condicionar a política e que é necessário reverter o ciclo de negociação e pagamento para passar a um nível de investigação e discussão integral do problema.
Desde Alfonsín a Menem e De la Rúa, e mais recentemente Néstor Kirchner e Cristina Fernández, cada um organizou a sua renegociação confirmando que o assunto chegava ao seu final e que a dívida deixaria de ser um problema. A retenção da Fragata e os processos instaurados nos EUA reflectem outra realidade.
Recuperar soberania
Existem fundos abutres porque o país cedeu soberania jurídica em algum momento da história da dívida e dos negócios com o estrangeiro.
Em termos da segurança jurídica dos investimentos abriu-se a possibilidade de litigar em tribunais estrangeiros, e da mesma forma a Argentina subscreveu a incorporação no CIADI, o Comité do Banco Mundial para atender as reclamações das transnacionais que se sentem afectadas pelos países nos seus negócios. Agora a Argentina está condenada a pagar uma vultuosa dívida transitada em julgamento perante o CIADI.
O que pretendemos sublinhar é que o país deve recuperar soberania, renunciar a integrar o CIADI e anular toda a dívida negociada sobre a base da cedência de soberania.
Tudo isso pode ser feito se existir vontade de independência. O problema não são os “abutres” mas quem lhes deu e dá de comer. O país está prisioneiro de uma institucionalidade gerada em tempos de ofensiva neoliberal que carece de ser alterada.
Mais do que discursos contra a rapina capitalista é necessário abandonar essa legitimidade gerada em tempos de ofensiva neoliberal. É essa a base para pensar com independência e eliminar o condicionamento que o endividamento público envolve.
Buenos Aires, 3 de Novembro de 2012
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