domingo, 10 de julho de 2011

E a Líbia resiste!

Sob as bombas, Trípoli não claudica

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imagemCrédito: voltairenet

Thierry Meyssan
Um grupo internacional de investigadores da Red Voltaire se encontra atualmente na Líbia. Seus membros visitaram as zonas bombardeadas. Apesar das condições de guerra existentes no país, os investigadores da Red Voltaire tiveram também a oportunidade de se reunir com dirigentes políticos e responsáveis da segurança da nação. Suas impressões são diametralmente opostas as imagens que divulga a imprensa ocidental. Thierry Meyssan oferece suas primeras observações desde Trípoli.
Red Voltaire | Tripoli (Libye) | 28 de junio de 2011
O quarto de Muammar Gaddafi, bombardeado pela OTAN.
As bombas da aliança atlântica destruíram também outras duas habitações do mesmo edifício, as de seu filho e seus netos, que morreram no ataque. O líder não se encontrava no local.
© Red Voltaire
No seu centésimo dia de bombardeios contra a Líbia, a OTAN volta a anunciar seu êxito eminente. No entanto, segue sem definir claramente quais são seus objetivos desta guerra, se ignora, portanto, no que consistirá esse êxito. Simultaneamente, o Tribunal Penal Internacional anuncia que o Guia Muammar Gaddafi, seu filho Saif al-Islam e o chefe de seus serviços de inteligência interior, Abdallah al-Senussi tem sido acusados de “crime contra a humanidade”.
Se atentarmos para a resolução 1973 do Conselho de Segurança, a chamada coalizão de Estados voluntários estaria tratando de instaurar uma zona de exclusão aérea para impedir que as tropas do tirano assassinem seu próprio povo. Todavia, as informações iniciais que afirmavam que a força aérea Líbia estava bombardeando cidades que se sublevaram contra o poder de Trípoli nunca foram confirmadas, apesar do Tribunal Penal Internacional os considerar dignos de crédito. O que é certo é que as ações da OTAN foram muito mais além do estabelecimento de uma zona de exclusão aérea e se converteram em uma campanha sistemática contra as forças armadas nacionais e todas suas unidades aéreas, terrestres e marítimas.
Os objetivos da OTAN provavelmente são outros. Os líderes da aliança atlântica mencionaram repetidamente a derrota do “regime” de Muammar Gaddafi, ou seja a eliminação física do “irmão Guia”. Os meios ocidentais falam de “deserções massivas” dos quadros de Trípoli para se unir a causa dos sublevados de Bengasi, mas não citam nomes, excetuando os de personagens políticos conhecidos há muito como favoráveis a uma aproximação a Washington, como o ex ministro de Relações Exteriores Mussa Kussa.
A opinião pública internacional está sendo objeto de uma intensa campanha de desinformação. Washington ordenou a interrupção das transmissões da televisão Líbia através do satélite ArabSat, apesar de que Líbia é acionista desse satélite. O Departamento de Estado não tardará em fazer o mesmo com o satélite NileSat.
No que constitui uma flagrante violação de seus compromissos internacionais, Washington negou a solicitção de visto do novo representante da Líbia na ONU. O novo representante de Trípoli está assim privado da possibilidade de ir a Nova Iorque para expressar o ponto de vista do governo líbio, enquanto seu antecessor, que decidiu ir para o Conselho Nacional de Transição criado em Bengasi, continua ocupando o assento de Yamahiria.
Estas manobras que sufocam a voz de Tripoli, ao mesmo tempo, facilitam a divulgação de qualquer falácia sobre a Líbia, sem que os interessados tenham a possibilidade de desmentí-las.
É, portanto, surpreendente que, visto de Trípoli, de onde escrevo esse artigo, os comunicados da OTAN e as disposições do Tribunal Penal Internacional parecem irreais. A calma prevalece no ocidente da Líbia. A qualquer momento as sirenes anunciam a chegada dos bombardeiros e mísseis. É inútil correr para os abrigos, tanto porque há pouco tempo para isso, e, por outro lado, simplesmente porque não há abrigos.
Os bombardeios são extremamente precisos. Os artefatos teleguiados atingem os edifícios designados como alvo e até os quartos designados como alvo dentro desses edifícios. No entanto, durante a etapa de voo, a OTAN perde o controle de cerca de um em cada 10 mísseis. Esses artefatos, em seguida, caem em qualquer lugar da cidade, semeando azaradamente a morte.
Enquanto alguns dos alvos da OTAN são apenas "militares", como quartéis e bases, a maioria são na realidade "estratégicos", ou seja de importância econômica. A OTAN bombardeou, por exemplo, a gráfica responsável pela emissão de moeda Líbia, uma instalação civil encarregada de fabricar os dinares. Comandos da OTAN sabotaram fábricas que faziam concorrência às indústrias dos países membros da coalizão. Outros alvos são chamados de "psicológicos".
O objetivo é ferir em primeira mão os líderes políticos e chefes de segurança massacrando as suas famílias. Nesses casos, os mísseis se dirigem para os quartos particulares, especificamente onde dormem os filhos dos dirigentes.
Na capital e no litoral, a atmosfera está carregada. Mas a população se mantém unida. Os líbios salientam que nenhum dos seus problemas internos justificam o recurso à guerra. Eles falam de questões sociais e de problemas regionais, como os que existem em países europeus, nada que leve ao dilaceramento das famílias que se tem produzido como resultado da divisão territorial que se está impondo ao seu país.
Diante aos ataques da OTAN, dezenas de milhares de burgueses ricos têm buscado refúgio nos países vizinhos, especialmente na Tunísia, deixando aos pobres a responsabilidade de defender a pátria em que acumularam suas riquezas. Muitos estabelecimentos comerciais permanecem fechados, sem saber se o fechamento se deve a problemas de abastecimento ou a fuga de seus proprietários.
Assim como na Síria, a maioria dos opositores políticos cerraram filas junto ao governo a fim de garantir a integridade do país frente a agressão estrangeira. Anônimos e invisíveis, alguns líbios informam todavía a OTAN sobre a localização dos alvos. No passado, seus antecessores recebiam de braços abertos as tropas colonialistas da Itália. Hoje cantam, junto a seus homólogos de Bengasi: “1, 2, 3, venha Sarkozy!” Cada povo tem seus traidores.
As atrocidades cometidas em Cirenaica pelos mercenários do príncipe Bandar [da Arábia Saudita] acabaram convencendo muitos indecisos. A televisão mostra constantemente imagens dos crimes perpetrados na Líbia pelos líderes da Al-Qaeda, alguns deles liberados diretamente de Guantánamo para lutar do lado dos Estados Unidos. São imagens horríveis de mutilações e linchamentos perpetrados nas cidades convertidas em emirados islâmicos, como no Afeganistão e no Iraque, por indivíduos desumanizados pela tortura a qual eles mesmos foram submetidos e excitados pelos efeitos de drogas poderosas. Não há necessidade de ser um velho partidário da revolução de Gaddafi para apoiá-lo diante dos horrores cometidos por jihadistas em "áreas libertadas" pela Aliança do Atlântico.
Nada do que pudemos ver no ocidente [da Líbia] demonstra a existência de uma revolta ou guerra civil. Em todas as estradas, as autoridades criaram postos de controle a cada 2 quilômetros. Os motoristas se submetem pacientemente aos controles e até se mantém atentos eles mesmo para descobrir possíveis elementos infiltrados pela OTAN.
O coronel Gaddafi está entregando armas à população. Civis já receberam quase 2 milhões de fuzis automáticos de assalto. O objetivo é que cada adulto, homens e mulheres, possa defender sua casa. Os líbios entenderam a lição iraquiana. Saddam baseou sua autoridade no Partido Baath e no exército, excluindo seu povo da vida política.
Ao ser decapitado o partido e diante da deserção de alguns generais, o Estado iraquiano desabou subitamente, o país caiu sem capacidade de resistência e se afundou no caos. A Líbia, por sua vez, é organizada de acordo com um sistema original de democracia participativa, comparável às assembleias de Vermont [EUA]. Os líbios são pessoas acostumadas a serem consultadas e a assumir responsabilidades, o que significa que é perfeitamente possível a mobilização em massa.

É surpreendente comprovar que as mulheres Líbias demonstram mais determinação do que os homens quando se trata de portar armas. Isso reflete o aumento, nos últimos anos, da participação feminina nas assembleias populares, o que provavelmente reflete ao mesmo tempo a indolência que havia apoderado dos quadros deste Estado com um alto padrão de vida.
Todos estão conscientes de que o momento decisivo ocorrerá com o desembarque de forças terrestres da OTAN, se se atreverem a desembarcar. A estratégia de defesa é, portanto, inteiramente concebida em termos de dissuadir o inimigo através da mobilização em massa da população. Os soldados franceses, britânicos e norte-americanos não serão bem-vindos aqui como libertadores, mas como invasores colonial.
Terão que enfrentar uma série interminável de combates urbanos.
O líbios se perguntam quais são exatamente os motivos da OTAN.
Fiquei surpreso ao comprovar que muitas vezes é através da leitura dos artigos da Red Voltaire, traduzidos e publicados em vários sites da Internet e impresso em vários jornais, que tiveram conhecimento das verdadeiras razões [do ataque].
Há aqui, como em todas partes do mundo, a falta de informação sobre as relações internacionais. As pessoas estão conscientes e orgulhosas das iniciativas e realizações do governo em favor da unidade africana e do desenvolvimento do Terceiro Mundo.
Mas ignora muitos aspectos da política internacional e subestima a capacidade de destruição do Império. A guerra sempre parece muito longe, até que ns convertemos em alvo do agressor.
No que consiste então o êxito que a OTAN anuncia como iminente?
No momento, a Líbia está dividida em dois. Na região de Cirenaica foi proclamada um república independente – mas o que se prepara é a restauração da monarquia – que já recebeu o reconhecimento de vários Estados, começando pela França.
Ainda que a nova entidade esteja sendo governada pela OTAN, oficialmente existe um misterioso Conselho Nacional de Transição, que não havia sido eleito e cuja composição – se realmente existem seus membros – se mantém em segredo para que os ditos membros não tenham que responder por seus atos. Parte dos bens líbios no exterior foram congelados, mas estão sendo administrados por governos ocidentais, que os utilizam em seu próprio benefício.
Parte da produção de petróleo está sendo comercializada em condições particularmente vantajosas para as companhias ocidentais, que estão dando assim um verdadeiro banquete. Quicá seja esse o famoso êxito: a pilhagem colonial.
Com suas ordens internacionais de prisão contra Muammar Gaddafi, seu filho e o chefe dos serviços de inteligência internos, o Tribunal Penal Internacional trata de pressionar os diplomatas líbios para obrigá-los a renunciar. Todos e cada um deles se veem assim em perigo de serem acusados de “cumplicidade com crimes contra a humanidade”, se finalmente cair Yamahiria, aqueles que decidam se demitir deixarão uma vaga que Trípoli não poderá preencher. As mencionadas ordens de prisão fazem parte, portanto, de uma política de isolamento da Líbia.
O Tribunal está se dedicando também à propaganda de guerra. Qualificou Saif al-Islam de “primeiro ministro de fato”, o qual não é certo, mas dá a impressão de [que existe na Líbia] um regime familiar. Uma vez mais aparece aqui o típico princípio da propaganda estadunidense de inversão dos valores. Os sublevados de Bengasi agitam a bandeira da monarquía Sanusi e o aspirante ao trono está à espera de seu momento em Londres, mas nos apresentam a democracia participativa como um regime dinástico.
Ao alcançar os primeiros 100 dias, os comunicados da OTAN não logram ocultar a decepção. Com exceção da região de Cirenaica, os líbios não se sublevaram contra o “regime”. Não se vislumbra uma solução militar.
A única possibilidade que tem a OTAN de sair desse assunto com a cabeça erguida e sem muitas perdas seria conformar-se com a divisão do país.
Bengasi se converterá então numa espécie de Camp Bondsteel, a megabase militar estadunidense na Europa que logrou obter a categoria de Estado independente sob o nome de Kosovo. A região de Cirenaica seria a base militar que o AfriCom necessita para controlar o continente africano.
*Traduzido por Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves

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