A democracia e os seus inimigos
A democracia e os seus inimigos por Daniel Vaz de Carvalho [*] A mão invisível
do mercado nunca funcionaria sem ter por detrás um punho escondido. A McDonald's
não poderia prosperar sem a McDonnell Douglas, fabricante do F15. Thomas L.
Friedman, A Manifesto for a fast World New York Times Magazine , 28/Mar/1999 O
monstro saiu da casca.1 – Os ataques à democracia A extrema-direita que agora
toma abertamente posição política é mais uma consequência da persistente crise
capitalista e do agudizar das suas contradições. É o resultado em termos
ideológicos de anos de calúnias contra tudo o que mesmo com leves traços
progressistas pusesse em causa privilégios do grande capital e de paranoia
anticomunista. Os que puseram em prática políticas de direita e neoliberais,
contra os interesses populares e a soberania nacional, andaram chocar o "ovo da
serpente" fascista. Em nome da "economia de mercado" ou da "democracia liberal"
foi dada liberdade praticamente total ao grande capital, reprimindo os
trabalhadores, atacando o sindicalismo das formas mais soezes, promovendo o
corporativismo da "concertação social" que se pretende colocar acima do
parlamento. Tudo isto evidencia a tendência do neoliberalismo se encaminhar para
formas fascizantes. A linguagem do ódio, da intolerância, do racismo visando
outros povos e emigrantes – proletariado fugindo à miséria e ao caos provocados
por ações diretas ou apoiadas por países da NATO – sugestionam camadas populares
despolitizadas e frustradas devido às políticas a favor da oligarquia. Os
pruridos democráticos do chamado centro caem pelo apoio ou silenciamento perante
os neofascismos que se desenvolvem na UE e na Ucrânia, com glorificação de
ex-nazistas e colaboracionistas, a supressão de elementares regras democráticas,
disseminação do racismo e xenofobia. Caem com o reconhecimento de Guaidó e de
outros golpistas na América Latina, caem enfim com o alinhamento com a agenda
conspirativa e belicista do imperialismo. Na ONU, os EUA e a Ucrânia são os
únicos a oporem-se a uma resolução da Assembleia Geral, adotada anualmente para
"Combater a glorificação do nazismo, neonazismo e outras práticas que contribuem
para alimentar formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia
e intolerância relacionada". Determinadas ONG, não passam de extensões de
serviços secretos, assumindo formas legais, alegadamente defensoras da
democracia e direitos humanos. O seu objetivo é a desestabilização social e a
fabricação de bem pagos "democratas" ao seu serviço, dramatizando quaisquer
problemas existentes ou ficcionados, fazendo campanha contra despesas sociais do
Estado, anunciando cataclismos que resultariam de medidas socializantes ou
consideradas como tal. Uma das ONG mais relevantes nestes processos de colocar o
poder ao serviço da oligarquia e do imperialismo é a NED (National Endowment for
Democracy). Esta Fundação subsidia organizações que distribuem dinheiro no
exterior, disponível para associações e membros da classe dominante, partidos da
direita, social-democratas e mesmo formações que se pretendem de esquerda. As
consequências destas atividades, são visíveis nos dramas das "revoluções
coloridas" colocando no poder verdadeiros ditadores mascarados de democratas,
alinhados com à extrema-direita, como no golpe fascista da Ucrânia. As
intervenções militares, no Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria, Somália, Iémen,
alegadamente para impor a democracia provocaram milhões de vítimas, permitiram a
consolidação de organizações terroristas e o drama dos refugiados. O controlo da
opinião pública para apoiar ou não reagir perante estas situações é garantido
pelos principais media, veiculando falsas notícias e calúnias com que o império
procura diabolizar os que não se lhe submetem como se fosse verdade absoluta e
comprovada, abdicando de confirmar factos ou veicular o contraditório,
tornando-se assim agentes da conspiração e da subversão. Além disto, nas redes
sociais proliferam pro-fascistas difundindo o ódio, deturpando, mentindo sem
escrúpulos, atacando a democracia e os democratas. A CIA controla os principais
media dos EUA desde 1950. Os media não fornecem notícias, fornecem explicações
de acordo com a oligarquia, garantindo que notícias reais não interferem nos
seus objetivos. O livro Jornalistas comprados: Como os políticos, os serviços
secretos e a alta finança dirigem os meios de comunicação social alemães (
Gekaufte Journalisten ) do jornalista alemão Udo Ulfkotte mostra que a CIA
também controla a imprensa europeia. [1] O financiamento de candidatos
favoráveis aos interesses da oligarquia constitui também um grave ataque à
democracia. As eleições nos EUA são disto um gritante exemplo: em 2016 os bancos
despenderam 2 mil milhões de dólares a favor dos "seus" candidatos. Em 2020 mais
de 3 mil milhões. [2] 2 – A "democracia" oligárquica Sob o domínio da oligarquia
a democracia assemelha-se a O retrato de Dorian Gray . Tal como a oligarquia,
Dorian persegue objetivos amorais, egoístas, porém a sua imagem regista todo mal
que pratica. Também a degradação ética e a corrupção das práticas oligárquicas
agravam as suas contradições e crises. Sem qualquer espécie de escrúpulos as
elites do dinheiro não hesitam em atacar pela calúnia e pela perseguição quem
possa por em perigo os seus privilégios. No Reino Unido foi levado a cabo
durante anos uma campanha para destruir o ex-líder trabalhista Jeremy Corbyn que
se propunha reverter o neoliberalismo propondo algumas nacionalizações e fazer
regressar o partido à sua matriz tradicional sindicalista. A universidade de
Princeton publicou um estudo , evidenciando que os Estados Unidos funcionam
muito mais como uma oligarquia do que como uma democracia. Um sistema que, como
as recentes eleições comprovam, de tão corrupto apodreceu. Para ser considerado
democrático pela chamada "comunidade internacional" (EUA, UE e aliados) basta
que um povo "pratique a democracia à maneira dos EUA e não tenha nada melhor
para fazer do que aceitar a liderança de Washington". (de Gaulle, Memoires de
Guerre III, Livre de Poche, p. 245). A democracia obtida desta forma é definida
pelos interesses imperialistas e oligárquicos, fundamentalmente dos EUA, fazendo
uso dos instrumentos ao seu serviço como o FMI, BM, NATO. O resultado são
obscenas desigualdades e clara disfuncionalidade social. Nos EUA apenas três
homens (B. Gates, J. Bezos, W. Buffet) possuem tanto como metade da população. A
camada oligárquica detém 79% da riqueza do país . A nível mundial os 26 mais
ricos supostamente valem tanto quanto a metade de todas as outras, ou 3,8 mil
milhões de pessoas. E isto num mundo em que o rendimento da metade mais pobre da
humanidade continua diminuindo. A outra face desta moeda é a pobreza, no país
dito "mais rico do mundo": em 2020, estima-se que 11,9 milhões de crianças,
16,2% do total, vivam abaixo da linha oficial de pobreza; 36% de todas as
crianças vivem em famílias pobres ou "quase pobres", com rendimentos inferiores
a 150% da linha de pobreza. [3] Existem 2,3 milhões de presos nos EUA [4] , taxa
de encarceramento de longe a mais alta do mundo. Segundo o Washington Post, 1
004 pessoas foram mortas a tiro pela polícia em 2019, o grupo Mapping Police
Violence registou 1 099. Um total de 10 310 960 prisões foram feitas nos EUA em
2018. [5] Sessenta por cento dos presos pertencem a minorias (negros e
hispânicos) [6] O grande capital controla as relações de produção, define e
impõe a ideologia que justifica o seu domínio sobre o Estado, sobre a economia,
sobre toda a sociedade, sendo os seus desmandos justificados em nome da
"economia". Na UE o lóbi Business Europe, que reúne Bayer, BMW, Google,
Microsoft, Shell, Total, entre outras, realizou 170 reuniões em três anos com a
elite da Comissão Europeia. [7] Os Estados colocam-se de joelhos perante o
grande capital, alavancado pelas privatizações, PPP, subsídios e isenções,
obtendo lucros de monopólio. 3 - A "democracia" contra a soberania popular A
democracia é – ou deveria ser – o governo do povo, pelo povo, para o povo. A
ideia contida nesta frase sofre de uma dificuldade, uma contradição, é que o
"povo", o conjunto dos cidadãos, é uma entidade dividida em classes sociais com
interesses e poderes distintos, mesmo antagónicos, para além do que os possa
unir numa mesma nação. Os mecanismos da alienação potenciados pelos media,
incluindo a propaganda do consumismo, são um meio do povo perder o controlo
sobre as instituições democráticas e seus representantes. Isto explica por que
camadas sujeitas à exploração, pobreza e perda de direitos, votem em forças que
promoveram e promovem aquelas situações. Essas forças alinhadas à extrema
direita conseguem chegar ao poder mentindo, escondendo suas reais intenções ou
com golpes de Estado militares ou jurídicos (Brasil, Paraguai, Honduras). A
democracia parlamentar formal tem a sua expressão no rotativismo político de
partidos que defendem os mesmos modelos económicos e sociais, equivalentes a um
partido único com várias facções (o "centro"). É este o sentido do pluralismo
político dependente dos interesses da oligarquia. Este modelo de democracia é o
limite superior considerado aceitável pelo grande capital. Tudo que vá para além
disto ao nível da democracia social é combatido. Nestas circunstâncias, se os
resultados eleitorais não servirem os seus interesses, isto é, falhando a
"cenoura" da sua democracia, usa o "pau" do fascismo, de que as "revoluções
coloridas" são uma variante. E se estes processos não se concretizarem, o "mundo
livre" aplica sanções, financia conspirações e intervenções armadas. Aliás, mais
de 70% das ditaduras existentes no mundo recebem ajuda dos Estados Unidos. Um
recorde estranho para uma nação que justifica as suas intervenções no
estrangeiro visando "promover a democracia e os direitos humanos" . Marx
referiu-se ao "cretinismo parlamentar, a forma não de dar expressão à vontade do
povo, mas de bloquear essa vontade". O parlamentarismo reduzindo a democracia a
uma retórica de que o povo é alheado por representantes que renegam praticamente
tudo o que prometeram antes de eleitos. As formalidades democráticas, não
impediram que os detentores da riqueza se transformassem em novos senhores
feudais aos quais quase tudo é permitido em nome dos "mercados", de "dar
confiança aos investidores" ou dos "riscos sistémicos". A UE é um exemplo de
como a democracia formal se opõe à soberania popular. O sistema está montado
para que eleições não possam em alterar o status quo oligárquico e imperialista
ou opor-se aos tratados existentes. Os exemplos sobram nos referendos (Grécia,
Irlanda, França) e ameaças de sanções a Portugal se uma efetiva política de
esquerda fosse levada a cabo. No PE, 751 deputados – sem real poder – e 10 mil
funcionários, ignoram e são ignorados pelos cidadãos. Uma imensa burocracia que
vive da propaganda, da chantagem sobre os povos e dos impostos dos cidadãos. Uma
democracia submetida a burocratas que se sobrepõem às políticas dos governos e
se orgulham de não estarem sujeitos a escrutínio popular. 4 – A democracia, uma
conquista sempre precária A democracia não é uma conquista definitiva, muito
menos uma dádiva, mas uma condição que há que permanentemente vigiar e mesmo
lutar pela sua preservação, tantos são os seus inimigos e os desvios a que está
sujeita. A social-democracia, tarde e a más horas, por vezes acaba por
descobri-lo. Será preferível falar em democratização, a democracia como
processo, cidadãos participando não apenas em eleições, mas na gestão da vida
coletiva abarcando os diversos aspetos da vida política, económica e social. Não
há democracias perfeitas, são realizadas por seres humanos imperfeitos, existem
em sociedades imperfeitas, com interesses contraditórios e têm de se defender
dos ataques dos seus inimigos. Pode dizer-se que os inimigos da democracia são a
corrupção, a indiferença e a estupidez, em tudo o que tem a ver com o social,
fontes da calúnia, do ódio racista e anticomunista. Tudo isto são consequências
de uma democracia falseada ou inexistente dominada pela burocracia e pelo grande
capital. A democracia também é profundamente destruída pela concentração da
riqueza , por desigualdades alheias à contribuição de cada um para a sociedade.
Acresce ainda um dos principais inimigos da democracia: o imperialismo. Governos
democráticos respeitando a vontade popular são submetidos a formas de ingerência
e agressão, no sentido de serem revertidos esses processos. O imperialismo
aprofunda as crises que os povos vão suportando, impede saídas realmente
democráticas, promove a intimidação, convulsões sociais e insatisfação
generalizada, desagregação social, empobrecimento e submissão das camadas
trabalhadoras. Perante o poder imperial os cidadãos têm cada vez menos direitos
cívicos (designadamente sindicais) e sociais. O pensamento livre é reprimido.
Recrudescem as crendices, a superstição e as seitas fundamentalistas. A cultura
reflete um profundo declínio, com obras superficiais que renunciam à crítica
social centrando-se no psicologismo e no drama individual, basicamente cópia de
modelos e êxitos comerciais anteriores. Tão importante como analisar a forma de
governo existente, há que verificar como são respeitados os desejos, as
aspirações das camadas mais vastas da população. A democracia envolve subordinar
a dinâmica financeira às necessidades do desenvolvimento, económico e social
penalizando o rendimento rentista, estruturando no domínio público os sectores
básicos e estratégicos. A democracia tem de se alargar a todos os domínios
possíveis da sociedade: nas funções sociais, direitos laborais nas empresas,
democracia económica. As privatizações opõem-se a tudo isto. Quem dirige a
sociedade são os "interesses económicos" - a oligarquia e os credores
financeiros. A dita "democracia liberal", eufemismo para oligárquica, é refém
destes agentes. Uma medida tão evidente como taxar as transações financeiras e
controlar os paraísos fiscais, mesmo não pondo em causa o sistema capitalista é
combatida tenazmente como "radical", ao mesmo tempo que os países são atacados
pelos défices públicos, precisamente pelos que se aproveitam deste sistema
iníquo. Em resumo, tudo isto mostra como a via reformista já não pode ser
seriamente considerada – se é que alguma vez o foi. Ao proletariado, para a
superação destas contradições, resta a via das transformações tal como o
marxismo definiu e preconiza. O socialismo tem de ser considerado uma livre
opção democrática, concretizada na soberania do Estado e no aprofundamento da
democracia e em todas as suas vertentes: política, económica, social e cultural.
Sem a participação consciente e ativa dos cidadãos neste sentido, a democracia
corre o risco de se tornar uma ficção política e as diatribes parlamentares não
irem além de uma competição por lugares ao serviço da oligarquia. 1 - Paul Craig
Roberts www.informationclearinghouse.info/55571.htm 2 - Cris Hedges,
resistir.info/eua/requiem_americano.html 3 - The Shame of Child Poverty in the
Age of Trump By Rajan Menon 5 - www.informationclearinghouse.info/55196.htm 4 -
The US Spends More Than $80 Billion a Year Incarcerating 2.3 Million People 6 -
johnjay.jjay.cuny.edu/nrc/NAS_report_on_incarceration.pdf 7 - Liliane
Held-Khawam. Coup d'État planétaire, Bernard Gensane,
www.legrandsoir.info/liliane-held-khawam-coup-d-etat-planetaire.htm Este artigo
encontra-se em https://resistir.info/ .
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