quinta-feira, 4 de junho de 2020

O mito da democracia estadunidense começou a desmoronar


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Ato contra o racismo em Chicago no último dia 30. Foto: The Red Phoenix
Por J. Palameda | The Red Phoenix
Tradução de Leonardo Laurindo
ESTADOS UNIDOS – A última noite [30 de maio] viu a grande mitologia dos Estados Unidos – a liberdade de expressão, harmonia e democracia – demolir em fogo, fumaça, spray de pimenta, toque de recolher e abuso policial. Se tornou evidente que a única coisa que sustenta o Governo Americano é a violência da polícia e das forças armadas. Em nove estados e territórios, a guarda nacional foi convocada, e toques de recolher foram anunciados em 25 cidades de 16 estados. Em todo país, de Huntsville, Alabama, Fayetteville, Arkansas, à Nova Iorque, Los Angeles, Chicago, e além, manifestantes enfrentando condições econômicas desesperadoras e um governo ineficiente levantaram suas vozes de forma sem precedentes, e se defenderam da agressão policial, saquearam lojas, atacaram tudo em geral.
Muitos especialistas, como Don Lemon, da CNN, não acreditaram no que viam. Eles não conseguem entender onde o projeto nacional americano falhou. Apenas cinco anos atrás, Barack Obama era presidente e a “civilidade” era o sentimento político na ordem do dia, apesar de taxado pelos republicanos de extremismo. De suas posições em apartamentos confortáveis ou mansões suburbanas, analistas da alta classe política pensavam que tudo estava nos trilhos. A classe trabalhadora desse país sabe, por décadas, que esse nunca foi o caso.

A vida nos EUA pós-Guerra Fria

É uma verdade universal nos Estados Unidos que algumas vidas valem mais que as outras, desde o genocídio dos povos ameríndios, à exploração do trabalho de negros escravizados para construir o país, à exploração do trabalho imigrante enquanto se alimenta a xenofobia nativista. É uma verdade impressa no tecido do país. Os vastos palácios dos ricos, o vangloriado “estilo de vida da classe média”, e todas essas coisas que os americanos pensam que separam eles do resto do mundo, foram construídas por meio da hiper-exploração doméstica e do imperialismo e colonialismo assassinos no exterior. O assassinato e exploração de imigrantes e pessoas não-brancas é uma questão histórica americana.
Ainda assim, no ascenso da Reaganomics, a era do mythos do New Deal de uma nação americana fortalecida por suas diferenças e comparações foi deixada de lado, substituída pela simples verdade da brutalidade americana, corroendo até mesmo a “classe média” branca. Por muitas décadas, o governo americano preferiu assassinar abertamente seu próprio povo, exportar empregos no exterior, e cometer atrocidades abertamente documentadas e condenadas não só pela esquerda, mas por vários organismos internacionais da burguesia.
A diferença no valor da vida se tornou perversa em quase todo aspecto de nossas vidas como trabalhadores em 2020, e está presente em toda interação que temos com as instituições estatais. A polícia não incomoda manifestações de mulheres predominantemente brancas, mas separa crianças de suas mães imigrantes. “Nossas” tropas devem ser apoiadas, até que retornem da guerra imperialista e lidem com seus traumas. Alguns trabalhadores são tempo integral e tem direito a benefícios, enquanto outros com a mesma ocupação são trabalhadores de meio-expediente e encaram dívidas contraídas por causa de pequenos problemas de saúde. Empregos de colarinho branco decolam, enquanto os de colarinho azul desaparecem.
Já vimos tantos negros desarmados morrendo que não conseguimos nem mais lembrar todos seus nomes e histórias. Mesmo reacionários como Rush Limbaugh, que são os primeiros a defender a polícia, sentiram dificuldade em defender Derek Chauvin. Tudo isso, tendo como pano de fundo a pandemia em que líderes nacionais calculam estratégias de reabertura sobre quantas vidas eles querem trocar por lucros.
De fato, isso tem sido um esforço bipartidário [republicanos e democratas]. Não podemos culpar apenas Trump ou mesmo Reagan [presidente neoliberal dos EUA na década de 1980] pelo desdém pelas vidas de trabalhadores e de pessoas não-brancas. A desregulamentação do capital financeiro que Bill Clinton [democrata que presidiu os EUA nos anos 1990] promoveu foi responsável pelo colapso de 2008 em que milhões perderam suas casas, enquanto Wall Street foi socorrida (por Obama).
Obama deportou mais de dois milhões de imigrantes, matou milhares de civis inocentes no Oriente Médio com drones, e pouco fez para frear a ruína neoliberal da América rural e a brutalidade policial contra afro-americanos. Foi Obama quem renovou o Patriot Act, e permitiu que o poder executivo detivesse “terroristas” por tempo indefinido sem acusação formal, uma política que Donald Trump está agora tentando utilizar contra os “antifas”.
Foi Obama quem puniu a classe trabalhadora com impostos caso eles não pagassem planos de saúde com 10 mil dólares dedutíveis. Foram os prefeitos Democratas de Los Angeles, Atlanta, Nova Iorque, Chicago, e mais, que desencadearam a brutalidade das polícias em cima das pessoas nos últimos dias, instituíram toques de recolher e se recusaram a responsabilizar os policiais. Foi o prefeito Democrata Lori Lightfoot em Chicago que chamou os manifestantes de “criminosos” e prendeu mais de 1000 após cercá-los no centro da cidade. Foi Amy Klobuchar [possível candidata a vice-presidente na chapa de oposição a Trump] quem falhou em processar o assassino de George Floyd.
Não, o crescente e popular entendimento de que as vidas dos trabalhadores e não-brancos valem menos que opções de ações é uma criação do sistema bipartidário. É por isso que os Don Lemon’s do mundo não conseguem acreditar no que veem – as lideranças dos partidos democratas e moderados em todo o país passaram a últimas décadas criando essa raiva que agora está apenas começando a se manifestar, se confrontando com um velho inimigo: a lei e a ordem jurídica.

A ameaça da “lei e da ordem”

Como trabalhadores, temos que aprender com as lutas anteriores por direitos civis e reformas nos Estados Unidos. Em 1968, quando tumultos agitaram o país, Richard Nixon organizou uma campanha presidencial pela “Lei e Ordem” para “retornar ao normal” como resposta, ironicamente parecida com a plataforma atual de Biden. Mas é Donald Trump que se posiciona como esse tipo de candidato ultimamente, fantasiando atirar em saqueadores, apontando os antifascistas como uma organização terrorista e atacando “baderneiros” em Washington. Isso funcionou perfeitamente para Nixon, que facilmente ganhou as eleições, embora o racista George Wallace [candidato ligado a Ku Klux Khan que concorreu às eleições de 1968] tenha tirado votos republicanos e adquirindo 13% dos votos.
Dois anos mais tarde, em 1970, mais de 60% dos americanos, segundo uma pesquisa da época, apoiaram o massacre de estudantes inocentes no Kent, que estavam simplesmente caminhando para as aulas. Fred Hampton foi assassinado no mesmo ano à sangue frio, e o Partido dos Panteras Negras foi destruído por agentes infiltrados do FBI e o Programa de Contrainteligência (COINTELPRO) intensificou a luta interna.
Existe uma forte tendência fascista em rumo no país, que defenderá a supremacia branca a qualquer custo, mesmo que passe por cima dos direitos burgueses mais básicos. Eles hastearão como um sopro a bandeira de Gadsden, e com outro defenderão a polícia que joga bombas de pimenta de sua própria varanda. A última vez, essa Lei e Ordem foi bem-sucedida, desintegrando o movimento popular.
Quando o poder popular ascender, como nos anos 60, essas forças na América, empoderadas por seu presidente, atacarão o movimento popular com força letal. Nós já vimos que os movimentos fascistas americanos mudaram para “defender as empresas” e “o fim dos saques”, se posicionando não como Nazistas, mas como simples americanos que almejam o retorno à normalidade da “Lei e da Ordem”. Devemos nos preparar para combatê-los por quaisquer meios.
Trump, governadores e prefeitos colocaram polícia e exército para atacar manifestações. Foto: reprodução.

Mais uma vez, pela democracia dos trabalhadores

Mas a história não é um círculo, embora informe nossas lutas e linhas de diálogo. Em 1964, Malcolm X argumentou em seu famoso discurso “O voto ou a bala” que os ativistas dos direitos civis deveriam usar o voto apenas se autenticamente útil, e lutar para que o voto se tornasse útil. Em uma eleição de dois abusadores sexuais, com 40 milhões de desempregados, encarando desastre ambiental e doenças, o povo dos Estados Unidos, de Fayetteville à Nova Iorque, começou esse processo. Ao fazê-lo, os trabalhadores desse país mostraram seu poder imenso, paralisando cidades inteiras, como o ativista martirizado da Primeira Guerra Mundial, Joe Hill, sabia que eles podiam.
Estamos nos estágios iniciais desse processo, e movimentos e tendências ideológicas ascendem e caem a cada hora nas ruas e cidades pelo país. O poder popular ainda é inexperiente e desorganizado, como Frank Chapman, liderança da Aliança Nacional contra a Repressão Racista e Política, falou sobre as lições da ação de Chicago no dia 30 de maio.
O movimento popular, enquanto continua, terá de competir com a violência anárquica e individual. Ele não deve se alienar da classe trabalhadora e das comunidades não-brancas, ou será visto como um invasor nos bairros, uma situação que os movimentos anti-guerra da década de 60 frequentemente se encontravam.
Ele deve se identificar claramente com a classe trabalhadora, para os interesses da classe trabalhadora, e identificar seus inimigos. O movimento deve colocar sua militância contra as instalações policiais e os estabelecimentos exploradores, levando a mensagem política contra a supremacia branca e pelos direitos dos trabalhadores aos locais de trabalho e demais locais em contato com companheiros trabalhadores – sindicatos, clubes esportivos, cenário musical, salas de aula, etc.
O que todos nós estamos lutando pelo país, em risco grave, é por uma sociedade em que a vida humana valha igualmente – uma sociedade em que as vozes de todas as pessoas são ouvidas igualmente, onde assassinos são presos e na qual o povo é socorrido antes dos bancos. É por isso que nos batem, jogam bombas de gás e nos atiram com todo tipo de munição.
Mas sabemos, apesar do que os prefeitos democratas e os superintendentes das policias dizem, que estamos lutando por uma verdadeira democracia de trabalhadores, em que a polícia seja controlada por assembleias comunitárias e a supremacia branca seja ativamente erradicada e suprimida, e em que nossas escolhas democráticas não serão entre dois criminosos senis [referência a Donald Trump e Joe Biden, candidatos a presidente dos EUA pelos dois principais partidos].
O preço que já pagamos tem sido alto, com jornalistas feridos, cegados, e milhares de ativistas espancados, sufocados em gás lacrimogênio, presos, baleados e mesmo mortos – e esse preço continua a crescer. Mas pagaremos com o peso das lutas por libertação nesse país em nossos ombros, e um coração esperançoso por uma transformação fundamental da sociedade americana em direção a uma democracia dos trabalhadores.
*J. Palameda é membro do Partido Americano do Trabalho (American Party of Labour – APL)
Original disponível aqui
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