João Montenegro – UJR/PE

Dezenas de escavadeiras foram utilizadas para construir um hospital em dez dias em Wuhan, na China, para atender pacientes com coronavírus / STR/AFP.
Com o fim da União Soviética em 1991 e consequente declínio de uma grande fração do movimento comunista internacional, uma série de debates vitais até então realizados no seio da esquerda revolucionária foram arrefecidos; dentre eles, o que diz respeito à necessidade e eficácia da planificação econômica.
Apesar de divergências internas no PCUS acerca das causas dos problemas decorrentes da centralização econômica promovida antes da implementação da Nova Política Econômica – NEP na URSS, a planificação econômica sempre foi tida como uma ferramenta essencial no processo de desenvolvimento das forças produtivas de um país socialista na medida em que com ela podia-se alocar recursos de modo mais eficiente, direcionar a produção para o cumprimento de planos com alta rotatividade e desse modo proporcionar uma industrialização com nível de velocidade jamais visto na história.
Contudo, a partir do último quartel do século XX, diversos intelectuais da própria esquerda por diferentes razões mas impulsionados pelo declínio da experiência soviética, trataram a planificação econômica como um modelo completamente equivocado. A situação transcorreu de modo que hoje, frente ao neoliberalismo tresloucado da direita, o debate ocorre em termos inferiores, visto que uma parcela significativa da esquerda não revolucionária é adepta a teorias com elementos keynesianos mas que em seu cerne é protoliberal, uma vez que adere a mitos econômicos clássicos como a necessidade de um certo nível de ajuste fiscal e a possibilidade de equilíbrio de preços através de certo nível de desregulação do mercado. Por fim, em se tratando do sério debate sobre a necessidade de algum nível de centralização econômica sob o socialismo, evocam a malograda palavra de ordem liberal sobre o “problema do cálculo econômico”.
Diante dessas circunstâncias, em que a câmara escura da ideologia inverte a realidade, apenas a própria realidade pode resolver tais mistificações. Como nos lembra o velho Marx: “todos os mistérios que levam a teoria para o misticismo encontram sua solução racional na práxis humana e na compreensão dessa prática”1. E há de se convir: que melhor exemplo do fracasso do discurso liberal que a necessidade de forte intervenção estatal no combate ao coronavírus? Que melhor exemplo do sucesso de centralização econômica que a força dos bravos chineses ao conseguir conter a transmissão local do vírus? A pandemia, isto é, os males que advém dela, para além de toda desgraça que carrega consigo, é didática ao nos apresentar a falência do capitalismo e sua ordem mais costumeira, o liberalismo. Mas também é, sobretudo, um exemplo nítido da superioridade da planificação econômica.

Entretanto, diferentemente dos EUA, em que Trump negou insistentemente a gravidade da pandemia e demorou a agir, ambos os países não sofreram profundamente com o vírus por conta de acertadas medidas de contenção aplicadas antecipadamente em relação a outros países, como o fechamento de fronteiras, quarentena de 14 dias aos recém-chegados mas fundamentalmente, em razão de uma forte política de educação sanitária e acompanhamento de suas populações.
A despeito de Cuba, apesar do avanço do vírus, a ilha está expressando uma política internacional de solidariedade. Atualmente, em parceria com a China, os cubanos trabalham no desenvolvimento de vacinas e remédios, além de exportarem médicos para mais de 30 países, recebendo pedidos de ajuda inclusive do governo brasileiro. O mesmo governo que no ano passado, ao fazer com que Cuba encerrasse sua participação no Programa Mais Médico, deixou milhões de brasileiros sem assistência à saúde. Recentemente, a pequena ilha caribenha demonstrou ao mundo mais uma lição de solidariedade ao aceitar que um navio britânico à deriva com cinco infectados e mais de mil passageiros, atracasse em um de seus portos.
Neste ínterim, a China, que sofre com o vírus desde dezembro do ano passado, adotou uma série de medidas exemplares em seu combate e que só foram possíveis graças ao planejamento central da economia. Para além de feitos incríveis como a construção em 10 dias de um hospital, o país promoveu uma quarentena absoluta da província de Hubei, responsável por uma razoável parcela do PIB nacional, onde vivem mais de 50 milhões de pessoas e cuja capital, Wuhan, foi um dos locais mais afetados pelo vírus. Mesmo com a esperada queda da produção da indústria – a maior registrada em anos – e das exportações do país, o Estado chinês assegurou o fluxo de grãos, carnes e ovos para as regiões mais afetadas, subsídio para despesas médicas dos pacientes confirmados e suspeitos de conterem o vírus, fornecimento de energia para todos – mesmo para os inadimplente – além de intensificar a produção de máscaras.
Após conterem a transmissão local, retomaram 90% dos projetos de infraestrutura e nos últimos dias já é possível ver carros e pessoas transitando nas ruas, aos poucos o país está retornando à normalidade. Passado o auge da pandemia, a China parte agora para medidas de contenção de infecções trazidas do exterior, ao mesmo tempo que atende a pedidos de ajuda de todo mundo, exportando médicos, insumos e equipamentos.
Apesar das ofensivas declarações do clã miliciano de Bolsonaro que prejudicam as relações diplomáticas entre Brasil e China, recentemente alguns governadores do Nordeste enviaram pedidos de insumos, materiais e equipamentos à embaixada chinesa, que os respondeu de maneira positiva. Já o presidente da Sérvia, que seu teve pedido de ajuda negado pela União Europeia, chegou a fazer declarações incendidas revelando que apenas a China se prontificou para ajudá-los em um momento tão grave. Enquanto isso, caixas contendo máscaras são enviadas à Itália com a mensagem: “Somos ondas do mesmo mar, folhas da mesma árvore, flores do mesmo jardim” em uma nítida política de solidariedade.
Com a contenção local na China, o epicentro da pandemia passou a Europa. A Itália, por exemplo, já é o país que registra mais mortes por conta do vírus, apesar da população ser vinte e três vezes menor que a chinesa. Assim, em face aos altos números de infectados, autoridades italianas declararam que pessoas com mais de 80 anos poderão ser deixadas para morrer devido a falta de leitos para atender toda população.
Como resultado do crescente número de mortos, recentemente foram registradas na cidade de Bergamo, imagens tenebrosas de comboios do exército italiano transportando corpos de vítimas devido a lotação dos crematórios da cidade. Sob a normalidade, tais declarações e imagens talvez causasse certo desconforto, é compreensível afinal. Contudo, as imperiosas circunstâncias permitem escancarar a escala valorativa que a vida recebe sob o capitalismo que transformam absurdos em fenômenos naturais, inevitáveis.
Nessa conjuntura catastrófica, é esperada uma recessão econômica, todavia, no capitalismo central a resposta econômica a crise pode vir, como sempre vem, a cargo do Estado. Assim como na crise de 2008, em que a União Europeia e os EUA salvaram bancos da bancarrota garantindo fortes subsídios, empréstimos a juros baixos, queima de ativos tóxicos e generosas injeções de dinheiro, hoje, frente ao coronavírus, resguardam novamente as empresas e o capital financeiro. Desta vez porém, com a justificativa de salvaguardar as pessoas e toda economia. Não que antes não utilizassem desse mesmo discurso, mas nunca se teve tanta legitimidade para fazê-lo como agora.
O Reino Unido, com seu recente anúncio de 330 bilhões de libras para empréstimos a empresas ilustra bem o discurso, mas a garantia da liquidez dos mercados e os 20 bilhões em subsídios e isenção de impostos o torna um tanto perverso. De modo semelhante, o FED (Banco Central dos EUA) anunciou 1,5 trilhões de dólares para também garantir a liquidez do mercado e conter as ininterruptas incertezas e inseguranças do mesmo. Mas o que esses anúncios fazem é tão somente demonstrar que com “salvar a economia”, a bem verdade, quer se dizer: salvar a classe dominante do colapso.
Mas nem só de benesses à burguesia e o capital pode se sustentar. Mas contrariamente ao que afirma a ideologia empreendedora, quem sempre produziu a riqueza foram os trabalhadores. Assim, na centralidade do capitalismo, por conta da transferência de valor realizada pelos países periféricos, há a possibilidade de auxílios a classe trabalhadora em situações emergenciais, mesmo em economias razoavelmente liberais, reiterando todavia, que só é possível através da intervenção do Estado e por meio de algum nível de centralização econômica, dado que apenas desse modo pode-se conter o avanço do insaciável mercado. E é somente desse modo que alguns países europeus estão assegurando suspensão do pagamento de hipotecas, luz e água; auxílio financeiro e renda mínima aos trabalhadores, além de mecanismos que dificultam a demissão.
Em certa medida, trata-se de um jogo de soma zero: a garantia mínima de um Estado de bem-estar social e a centralização da economia no combate ao coronavírus só podem ser assegurados por meio de políticas que incidem diretamente sobre os mitos propalados pela ideologia liberal e o modo de reprodução predatório do capital, e é apenas neste sentido que se pode compreender a estatização da rede de saúde privada na Espanha, a proibição de despejos em Portugal e investimentos massivos no Sistema de Saúde e Defesa Civil na Itália, entre outros tantas medidas protecionistas e geradoras de “déficit fiscal”, como as elencadas anteriormente.
No Brasil, medidas semelhantes só estão sendo defendidas por um número reduzido de partidos de esquerda, com destaque para UP (Unidade Popular), que junto ao MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas) vem fazendo um trabalho exemplar de mobilização da militância no combate ao vírus e também na realização de campanhas de arrecadação de cestas básicas para trabalhadores em situação precária.
O que a atual conjuntura evidencia, de maneira perversa, é que os problemas gerados pela crise do coronavírus2, como a ausência de recursos para produzir certas mercadorias, limitações sobre a exportação e importação, escassez de produtos básicos, restrição de negócios ou assistência entre países – situações atualmente vivenciadas até mesmo nos países centrais – só encontram semelhante histórico nos bloqueios econômicos criminosos que experimentam diuturnamente países como Cuba e Coreia Popular.
Extrai-se da experiência histórica de ambos, que tais problemas tendem a ser eficientemente mediados somente através do protecionismo e da gestão racional e central dos recursos, tendo em vista os impulsos auto expansivos do mercado. Esta é, precisamente a direção contrária em que vai o Brasil; aqui, os aspectos problemáticos da crise são alavancados a níveis absurdos por conta do neoliberalismo selvagem e as desmedidas tomadas pelo governo Bolsonaro.
Mas deve-se admitir, que devido o caráter dependente do capitalismo brasileiro e a política de terra arrasada promovida por Bolsonaro e Paulo Guedes, efetivamente não se poderia esperar outra resposta por parte das autoridades. Assim, na contratendência mundial, o governo, através de lacaios da burguesia como o Secretário especial da Previdência e Trabalho, Bruno Bianco, declara que “não faria sentido proibir demissões. Quebraríamos empresas”.
Denunciando mais uma vez que seu compromisso não é com os trabalhadores. Continuando com sua política da dissimulação, revelam que “negociações” entre patrões e empregados a respeito de cortes nos salários de até 50%, com equivalente redução da jornada de trabalho deverão ser realizados; mas riem sorrateiramente, pois sabem que nas circunstâncias dadas, não há negociação possível entre patrões e empregados, pois que for posto pelo patrão, será, na verdade, imposto. Na mesma medida, louvam como graça divina e inigualável a distribuição de míseros 200 reais para os trabalhadores autônomos do país, mas que não podem ser cumulativos com Benefício de Prestação Continuada (BPC), Bolsa Família ou seguro-desemprego.
Afinal, tantos “benefícios” acumulados seriam uma regalia, já não basta os vultosos R$ 15 bilhões que “custarão” ao orçamento? Para Guedes, Bolsonaro e companhia, entretanto, o R$ 1,2 trilhão direcionados a bancos e ao agronegócio parece-lhes ser ínfimo. Enfim, trata-se de uma política que se disfarça de assistência, mas que é de morte, pois com ela corta-se o Bolsa Família de mais de 150 mil brasileiros; porque a claras intenções abjetas, destina alguns poucos bilhões ao SUS, omitindo os cortes monstruosos que realizaram no ano passado em cumprimento sagrado à Emenda da Morte; porque, como ocorreu a pouco, anunciam uma Medida Provisória (MP) que extingue o salário dos trabalhadores por quatro meses e que, apesar de voltarem atrás com esse tópico verdadeiramente assassino, mantém todas os demais despudores no pacote, como o adiantamento compulsório de férias e a criação de um banco de horas invertido. No fim, a triste verdade é que as medidas não ajudam, pois não foram feitas para tanto.
Enquanto o Ministro da Saúde já anunciou que o colapso do SUS está previsto para o fim de abril, o governo segue com sua carroça infernal: Bolsonaro mostra-se um impropério até para os próprios gerentes da ordem, fazendo questão de deixar isto claro em todas coletivas de imprensa, em que cada palavra que profere tem de ser automaticamente corrigida por seus assistentes. De modo semelhante, Guedes, em sua sandice doentia, insiste que apenas as reformas podem resolver a crise do coronavírus.
No Brasil, jamais se viu sujeito tão empenhado na destruição rápida e intensa de nossas riquezas. Não haveria figura melhor para o matrimônio com esse desgoverno e seus satélites, dado que no conjunto da obra são a expressão mais acabada e indigna do servilismo que é a burguesia brasileira. Que exemplo mais ilustrativo haveria de se ter se não a tentativa de venda da Eletrobrás em plena quarentena? É o discurso do neoliberalismo a todo vapor, com direito a cortes de direitos sociais, ajuste fiscal e venda do país, claro, acompanhado de seu corolário de sempre, a morte do povo.
O discurso capitalista mata, ainda mais em tempos de pandemia, sabe-se disso. Mas é precisamente nestes tempos que sua letalidade se explicita que caem as máscaras e que “tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas”3 . E é nesse entremeio do desmanchar da ideologia essencialmente capitalista que se apresenta a possibilidade de agir, de escancarar as desgraças do sistema, de estremecer as bases desse governo ilegítimo e de pronunciar uma alternativa socialista para o Brasil, em suma, de fazer história.
1 Teses sobre Feuerbach, 1845 – Marx.
2 Cabe destacar que se tratando da “crise do coronavírus”, empregamos esta expressão apenas por questões corriqueiras, compreendendo o vírus apenas como o fenômeno que desencadeou o atual estado de coisas, mas jamais tornando-lhe a força motriz dos acontecimentos. Salutar isto é fundamental, pois o uso inadequado deste termo tende a naturalizar os problemas que advieram da propagação do vírus, e como nos alerta Marx, “a linguagem é a consciência real, prática” e portanto, jamais inocente.
3 Manifesto do Partido Comunista, 1848 – Marx e Engels.
Fontes consultadas
http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=2648:catid=28&Itemid=23
- pvc_views:
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