segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Tornar possível o necessário

Tornar possível o necessário

por Daniel Vaz de Carvalho

 
Quantos erros cometemos! (...)  Se ao menos tivéssemos tido tempo.  Mas o povo não dispõe senão de uma hora.  Que infelicidade se nessa hora não estiver completamente equipado, pronto para a luta.
Bertholt Brecht, Os dias da Comuna

1 - Não há alternativa, para quem?

2 - Ser realista

3 - A esquerda das causas e a esquerda ausente

4 - O necessário e o possível



1 - Não há alternativa, para quem?

Para tornar impossível o necessário, foi inventada como fórmula mágica o "não há alternativa". Ao que consta, foi a PM britânica Tatcher, quem a colocou no léxico político. Tatcher, amiga e protetora do arquicriminoso Pinochet, esmerou-se a combater o movimento sindical e destruir tudo o que de progressista havia sido conquistado pelos trabalhadores após a 2ª guerra mundial.

Tatcher ocupa um lugar quase sagrado na hagiografia do capital. A sua política prosseguiu com o "socialista"/trabalhista Blair, um dos fautores da guerra contra o Iraque, para derrubar – e matar sem julgamento – o ditador Hussein, antes colocado no poder pelo imperialismo contra as políticas de cariz progressista e de independência nacional do general Kassem. Os crimes e horrores sofridos pelo povo iraquiano mereceram de Blair o comentário de que "valeu a pena''. Pelos vistos não queria desautorizar Hillary Clinton. Mas Blair esmerou-se ainda no apoio ao fascismo, proporcionando os serviços do MI 5 (serviços secretos britânicos) ao governo colombiano, responsável pelos massacres cometidos pelo exército e grupos paramilitares (como os SA e SS nazis). Tudo a bem da "democracia liberal"...

Em Portugal o "socialismo democrático" apoiou a agressão à Jugoslávia, ao Iraque, Líbia, Síria, Iémen, Palestina, etc. O "socialista" Guterres prosseguiu a política de privatizações da direita; o "socialista" Sócrates esmerou-se a criar PPP em que os interesses do Estado foram secundarizados face aos privados, endividando o Estado por décadas a bem daqueles monopólios de lucro garantido.

Porém, o "não há alternativa" é um eufemismo, um meio de chantagem. Alternativas sempre foram criadas para o grande capital: bancos e grandes empresas salvos com dinheiro dos contribuintes, facilidades de liquidez (quantitative easing) a juros nulos ou negativos (!?) para a finança prosseguir atividades especulativas de elevada taxa de lucro.

O que se fez foi impor um modelo de Estado repressivo apoiado no poder ameaçador do imperialismo. Mas em que situação as pessoas são colocadas "sem alternativa"? Na prisão ou em situações de legítima defesa. Nunca em democracia.

E nisto que consiste a "democracia liberal" devotadamente servida tanto pela direita como pela social-democracia/socialismo democrático. São partidos que fazem parte do que designamos por "SPIN" Secção Portuguesa da Internacional Neoliberal. [1]

O seu congresso reúne periodicamente com a designação de Conferências de Bidelberg, os seus órgãos executivos são o FMI, o BM, o BCE, as agências de rating órgão consultivo, Washington e Bruxelas (na UE) atuam como órgãos jurisdicionais e disciplinares.

As tendências antipopulares, totalitárias e frequentemente antinacionais, destes partidos e da internacional a que pertencem têm sido evidentes quer na Europa quer noutros continentes.

Temos assim, uma democracia controlada pelas oligarquias, em que a repressão patronal passa na prática impune, através de leis ambíguas ou claramente discriminatórias, fiscalização e tribunais de trabalho preconcebidamente mantidos com falta de recursos humanos e materiais.

Acerca desta "democracia" Paul Craig Roberts diz que os EUA se tornaram "um Estado gangster (…) um tirania exploradora sem vergonha" [2] Um estudo da universidade de Princeton diz que os EUA não estão a perder a democracia, há muito que esta se perdeu, são antes uma oligarquia. [3] Um Estado em que os trabalhadores não têm real direito a organizar um sindicato, embora enfrentem um constante decréscimo do nível de vida. Quando tentam organizar um sindicato são confrontados com repressão e ilegalmente despedidos. Há ameaças de fecho da empresa se os trabalhadores se organizarem e metade das empresas onde há sindicalizados nunca concretizam contratos com os sindicatos. É o que afirma a própria central norte-americana AFL-CIO. [4]

2 - Ser realista

Dada a imposição de não haver alternativa, em nome do "realismo" as opções políticas do eleitorado resumem-se a conformar-se com o capitalismo monopolista transnacional.

Este conformismo, intensamente propalado praticamente sem contraditório nas universidades e nos media, leva-nos ao que dizia La Boétie no século XVI, no seu Tratado sobre a servidão humana : "as Universidades educam na lógica da servidão voluntária ao sistema".

A tese é que o "mercado" – que o grande capital controla – decide sobre a vida dos países e dos povos. Os governantes fazem o papel de capatazes, cujo objetivo é manter o povo sob o jugo dos mercados, designadamente os financeiros. Quem não cumpre vai para o cepo dos "ajustamentos estruturais" ou sujeita-se a sanções.

O "jogo democrático", reduz-se então a uma encenação cuja produção está a cargo da oligarquia financeira e monopolista, com os políticos do sistema atuando nos cenários e nos enredos que o capital determina.

Como o marxismo explicitou, o capital procura contrariar a queda tendencial da taxa de lucro, com a expansão dos mercados, a evolução tecnológica, o aumento da exploração. Porém, estas medidas não fazem senão agravar as contradições de um capitalismo decadente nesta sua fase senil.

A expansão dos mercados atingiu com a globalização neoliberal um limite dificilmente ultrapassável. Os mercados reduzem-se devido às sanções e ao aumento da exploração – só se compra o que os salários podem pagar. Acrescem os impactos ambientais, as guerras, a desestabilização provocada pelas conspirações e ingerências.

O desenvolvimento tecnológico dentro da perspetiva capitalista tem levado ao desemprego, subemprego e precarização. O aumento da exploração atinge níveis que conduzem a conflitos sociais de dimensão explosiva, dado o nível de obscenas desigualdades e ataque a direitos duramente conquistados no passado. Nos países mais pobres o aumento da exploração introduz situações de quase genocídio.

Comentadores e analistas, repetem-se preparando a população para sofrer as consequências e pagar os prejuízos das crises do capitalismo. "São as leis do mercado… Temos (os outros, claro) que nos conformar com elas". O políticos do sistema dirão o mesmo e já não se percebe quem repete quem. Afirmam (não é preciso provar nada) que caso contrário haverá "risco sistémico". A população não sabe muito bem o que seja – nem eles – mas a palavra intimida, tem algo de catastrófico…

O realismo conformista tem na UE outra vertente: diz que a solução para os nossos problemas tem que vir da "Europa". Pretende-se com isto que o povo fique de joelhos como que a rezar à UE, à espera de um milagre. Realismo seria efetivamente considerar que, longe de ser solução, esta UE é causa de muitos dos problemas e o principal obstáculo à sua solução.

Com o euro veio o endividamento galopante, que em Portugal, em percentagem do PIB, praticamente duplicou em 10 anos e em 15 quase triplicou. O endividamento é um esteio do neocolonialismo, de tal forma que as mentiras acerca do euro foram idênticas às do FMI na América Latina nos anos 60 do século XX.

3 - A esquerda das causas e a esquerda ausente

A posição da social-democracia/socialismo democrático, faz lembrar um diálogo que Sartre tem na sua peça "Le Diable e Le Bon Dieu" [5] , que adaptamos:

Dirigente sindical unitário – Sois por nós ou contra nós?
Dirigente do "socialismo democrático" – Somos por vós quando sofreis, somos contra vós quando quereis perturbar o jogo democrático.
Dirigente sindical – Sois por nós quando nos exploram e nos oprimem, mas contra nós quando queremos defender-nos e libertar-nos!

O "jogo democrático" consiste numa democracia subordinada ao capital. A alternância de partidos no poder não tem por objetivo alterar os fundamentos do sistema e muito menos a sua transformação progressista. É uma forma de na prática subverter ou anular formas de participação popular organizada em função dos seus reais interesses como proletariado.

A conceção dita burguesa da democracia foi bem explicitada pelo PM de um governo de direita (PSD/CDS) ao afirmar que com a aprovação do Programa de Governo caiam as propostas eleitorais, justificando assim as mentiras pelas quais são obtidas maiorias no tal "jogo democrático". O resto compete depois à propaganda/manipulação dos media controlados.

Marx referiu-se ao "cretinismo parlamentar como a forma não de dar expressão á vontade do povo, mas de bloquear essa vontade". Trata-se de reduzir a democracia a uma retórica de que o povo é alheado por representantes que renegam tudo o que prometeram antes de eleitos. Acontece que a luta ideológica acaba por ser também vítima do "cretinismo parlamentar".

Certa esquerda substitui a luta ideológica por "causas", que acabam por constituir, mesmo que não intencionalmente, formas de alienação, quer porque partem de pressupostos errados quer porque descartam a procura de soluções para as causas mais profundas da realidade que contestam.

Por exemplo, a questão das orientações sexuais, da igualdade dos géneros, dos deveres para com os animais, das questões ambientais (que não ultrapassam o dogma do CO2) que, mesmo que socialmente importantes, têm servido em muitos caos para escamotear as desigualdades, a exploração dos trabalhadores a arbitrariedade patronal, os interesses transnacionais .E tanto assim é que a direita acaba por adotar praticamente todas estas "causas", pois no fundo não tocam no essencial: o controlo da economia e da sociedade pelo grande capital.

Outro aspeto é o de uma "esquerda ausente" e a sua incapacidade não só de organizar o descontentamento como de dotar as massas de uma visão que supere a alienação da propaganda capitalista e dos populismos reacionários. Ou seja, que não abandone ou não recue na luta ideológica.

A questão do Estado é uma questão central da democracia. As correntes ditas liberais (neoliberais) exigem a redução do poder do Estado, ficando limitado a funções sociais como saúde, educação, justiça, procurando que em maior ou menor escala sejam privatizadas.

Os políticos do liberalismo na realidade não passam de agentes e funcionários dos detentores do capital. Pretendem um Estado fraco submetido ao poder da finança, mas forte contra os que só possuem a sua força de trabalho para vender e viver.

Para Marx e Engels, embora todas as oportunidades tenham de ser aproveitadas para melhorar as condições de vida do proletariado, uma política redistributiva sem ser acompanhada da reivindicação de alterar as relações de produção não passava de "socialismo burguês". Isto é, tentar simplesmente melhorar o sistema capitalista.

Sem alteração das relações de produção as cedências obtidas ao capital acabam por ser revertidas a seu favor quer pela inflação, quer como propaganda a favor do próprio sistema que as contestava. Por exemplo, melhorias nos salários são rapidamente absorvidas por aumentos de preços dos bens de consumo por parte dos oligopólios da grande distribuição.

Sectores considerados progressistas têm menorizado ou mesmo omitido as contradições entre os interesses do capital e da força de trabalho, agudizadas com a imposição do capitalismo monopolista transnacional e as ingerências e arbitrariedades do imperialismo. Há assim uma aceitação tácita do sistema capitalista sem procurar superar as suas contradições e antagonismos por medidas de cariz socialista, devidamente explicitadas e difundidas junto de um proletariado quotidianamente intoxicado pela desinformação e processos de alienação.

4 - O necessário e o possível

O elevado nível de abstenção em eleições é um sintoma de que a luta de classes e a luta ideológica estão a ser ganhas pelo capital. O abstencionismo eleitoral expressa um abstencionismo político, terreno fértil para o neofascismo. Mas, o abstencionismo por parte do proletariado, representa também que sectores que se reclamam de esquerda cederam ou menosprezaram em vários aspetos a luta ideológica.

Uma questão fundamental se põe às forças progressistas: o que leva grandes massas a identificarem os seus interesses individuais e coletivos com os da oligarquia exploradora que predominantemente está na origem dos problemas com que se defrontam?

Para além dos mecanismos de alienação, da propaganda dos media controlados, de agentes mercenários e pretensos líderes a soldo do dólar nada de significativo poderia ocorrer sem o descontentamento de certas camadas sociais despolitizadas, que ficam passivas ou aderem à contestação movida pela direita e extrema direita, muitas vezes a soldo do imperialismo.

A extrema divisão do trabalho potenciada pelas subcontratações, a precarização, a propaganda antisindical e o divisionismo, contribui para a não socialização das massas trabalhadoras com a correspondente desintegração organizacional, campo em parte deixado aberto por certa esquerda hesitante e sem estratégia coerente com objetivos ou princípios anunciados.

São assim criadas camadas sociais, desencantadas, confusas, às quais não foi proporcionada consciência proletária, seduzidas pela exibição de riquezas da oligarquia e pela propaganda pró-imperialista que exagera e dramatiza insistentemente inevitáveis dificuldades, erros ou falhas em processos progressistas, ou simplesmente de defesa da soberania nacional. Isto para além das distorções e mentiras, pudicamente qualificadas de "fake news".

Nacionalismo, separatismo, fascismo, extremismo religioso, tudo isto serve para o imperialismo destruir aqueles que se opõem ao domínio absoluto das suas transnacionais e da submissão ao dólar.

Os que saíram à rua em Kiev contra a corrupção e pela democracia depararam-se a seguir com um poder nazi-fascista apoiado pelos EUA e a UE. Nas "revoluções laranja" do leste europeu os protestos foram aproveitados pelo neofascismo, o crime organizado e a russofobia da NATO. No Médio Oriente e na Líbia semearam o caos e guerras para "mudanças de regime". Em Kong-Kong o objetivo é criar um Estado vassalo do imperialismo voltado contra a China.

No Brasil os protestos contra medidas que eram consequência das cedências à oligarquia por parte do PT, foram aproveitadas pela extrema-direita, sem que grande parte da população se questionasse sobre o aproveitamento que a oligarquia obtinha da corrupção e das obscenas desigualdades a seu favor.

Em qualquer dos casos podemos verificar que a luta ideológica esteve ausente, foi subvertida ou não teve capacidade de explicar e dar expressão consistentemente popular aos descontentamentos.

É necessário explicitar em que consiste o socialismo – algo que parece esquecido por certa esquerda – enquanto os media e a direita o caluniam insistentemente, aproveitando mesmo os problemas criados pelas arbitrariedades e agressões imperialistas. Mas é também necessário explicar o que não é socialismo, o que são apenas incipientes processos políticos progressistas, mas que no essencial não alteram as relações de produção do capitalismo monopolista. É o caso da Venezuela, da Bolívia de Morales, do Brasil do PT, etc em que a oligarquia continuou a controlar a esfera produtiva, a distribuição e a comunicação social.

O marxismo ensina que a prática sem a teoria é cega e a teoria sem a prática é inútil. Isto leva-nos à questão da tática e da estratégia, ou ainda à luta de massas e à luta ideológica. A luta de massas sem ser esclarecida pela luta ideológica, tal como a luta ideológica sem luta de massas, não conduzem às necessárias e possíveis transformações sociais.

Quando Marx escreveu "O Capital" tinha em mente que só se pode transformar o que previamente se compreendeu. As aspirações e vontade de mudanças que as pessoas expressam perde eficácia ou mesmo deixa de fazer sentido se as pessoas não entendem as causas, as origens do seu descontentamento, insatisfação e injustiças.

Em 1964 Álvaro Cunhal escreveu o "Rumo à Vitória" definindo a tática e a estratégia para a Revolução Democrática Nacional, baseada numa estratégia antimonopolista, antilatifundista, anticolonialista e de soberania nacional que se encaminhava para formas de transição visando o socialismo, obviamente mantendo sectores não monopolistas, como o cooperativo, micro pequenas e médias empresas privadas e produção familiar. Porém, numa leitura tática conformista/reformista, o que era dito era considerado utópico, irrealista e desajustado.

Uma estratégia antimonopolista tendo em vista a transição para o socialismo, é hoje tão necessária como então. Tal como sob o fascismo, estes objetivos não se realizarão amanhã ou depois, talvez só daqui a anos, mas o que é necessário e urgente é proporcionar ao proletariado uma visão de futuro credível, fundamentada e exequível em que seja parte ativa.

Proporcionar a tomada de consciência de que as soluções do sistema sejam da direita, extrema-direita ou da social-democracia são apenas formas de garantir lucros à oligarquia monopolista e financeira, aumentando a exploração relativa ou mesmo absoluta do proletariado, mantendo o poder efetivo nas mãos do grande capital.

Vivemos sob um capitalismo senil em crise permanente e um imperialismo decadente que espalha pelo mundo misérias, obscurantismo, morte e ruínas. Um mundo que está a ser encaminhado para o abismo sob o objetivo de destruir a China e a Rússia.

A tomada de consciência de que as soluções necessárias ao progresso individual e coletivo e em primeiro lugar à paz só serão encontradas com processos de transformação social visando o socialismo, torna-se, pois, cada vez mais necessária e urgente.
Notas
[1] O termo "spin" está associado ao momento magnético das partículas atómicas – o que tem a ver com o "magnetismo" que os interesses privados exercem sobre estes políticos.
[2] www.informationclearinghouse.info/article38426.htm .
[3] http://www.informationclearinghouse.info/52608.htm
[4] Alberto C. Ruiz, A Time for Honest Self-Reflection The US Labor Movement and China
https://www.counterpunch.org/2012/04/27/the-us-labor-movement-and-china/
[5] "Le diable et le bon Dieu", peça estreada em Paris em 1951, cuja ação se passa na Alemanha do século XVII, durante as guerras religiosas. O diálogo faz parte do 1º Ato:
   Nasty (líder popular) - És por nós ou contra nós?
   Heinrich (clérigo) - Sou por vós quando sofreis, contra vós quando quereis derramar o sangue da Igreja.
   Nasty - Tu és por nós quando nos assassinam, contra nós quando ousamos defender-nos.


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