Uma entente cordial turco-russo em formação
por M K Bhadrakumar
![]() A Casa Branca anunciou no domingo que estava a retirar-se do nordeste da Síria antes das operações militares da Turquia através da fronteira. O presidente Donald Trump aparentemente tomou a decisão no domingo após um telefonema com o presidente turco Recep Erdogan. A chicotada da decisão de Trump abalou aliados dos EUA. Houve críticas generalizadas na Beltway de que os EUA estão a por em risco no terreno seus parceiros curdos e a desencadear consequências imprevisíveis para a Síria – e, acima de tudo, a prejudicar gravemente a credibilidade dos EUA. Alguns advertem que o conflito sírio está a intensificar-se exactamente quando as brasas estavam a arrefecer. Algumas destas críticas podem ser verdadeiras. Porque a Turquia é vingativa. Há muito que ela queria transpor a fronteira no norte da Síria, onde vê as forças curdas sírias ou YPG unidas com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão ou PKK, separatistas que a Turquia considera um grupo terrorista que há décadas trava uma insurgência e coloca a Turquia sob tensão. Mas existe o fator "X": a Turquia está a empreender isto sozinha? Muito depende da resposta, a qual por sua vez se relaciona com a alquimia do entendimento estratégico geral turco-russo que transcende a questão Síria. Num desenvolvimento pouco notado na última terça-feira – precisamente, durante o intervalo de 36 horas entre o anúncio de Trump de retirada de tropas da Síria e a incursão turca no norte da Síria – o Ministério das Finanças da Rússia anunciou que Moscovo e Ancara assinaram um acordo sobre a utilização do rublo russo e da lira turca em pagamentos e acordos mútuos. A RT informou que o acordo visa "maior expansão e fortalecimento da interacção interbancária, bem como a garantia de pagamentos ininterruptos entre entidades comerciais dos dois países". Dito claramente, Moscovo e Ancara criaram uma firewall contra possíveis sanções futuras dos EUA e/ou ocidentais contra a Turquia. A RT explicou que o novo sistema de pagamento turco-russo conectará bancos e empresas turcas ao análogo russo da rede de pagamentos SWIFT, "melhorando a infraestrutura na Turquia que permitiria o uso de cartões de pagamento MIR russos, projectados por Moscovo como alternativa ao MasterCard e Visa". A reportagem sublinhou: "O novo acordo faz parte do esforço das duas nações para reduzir sua dependência do dólar americano... Erdogan anunciou no ano passado planos para acabar com o monopólio do dólar americano por meio de uma nova política que tem em vista o comércio sem dólares com os parceiros internacionais do país. " O acordo com a Turquia torna-se assim o novo modelo do ambicioso projecto do presidente Putin de se livrar do dólar americano no comércio exterior da Rússia (o volume de comércio entre a Turquia e a Rússia é substancial; cresceu 16% no ano passado, chegando aos US$25,5 mil milhões). Claramente, o sistema de pagamentos russo-turco é um importante movimento de política externa dos dois países. No dia seguinte, quarta-feira, começou a incursão militar turca na Síria. Significativamente, pouco antes da operação, o presidente turco Recep Erdogan falou com Putin por telefone. O comunicado do Kremlin dizia: "À luz dos planos anunciados pela Turquia de executar uma operação militar no nordeste da Síria, Vladimir Putin instou nossos parceiros turcos a ponderarem cuidadosamente a situação de modo a não prejudicar nossos esforços mútuos para resolver a crise síria". Acrescentou que os dois presidentes enfatizaram "a importância de garantir a unidade e a integridade territorial da Síria e o respeito à sua soberania". A reacção russa à operação militar turca é nuançada. Na quinta-feira, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergey Lavrov, disse a repórteres durante uma visita ao Turquemenistão: "Desde o início da crise síria, enfatizámos que entendemos as preocupações da Turquia em relação à segurança nas suas fronteiras". Lavrov sugeriu que essas preocupações poderiam ser atendidas no âmbito do acordo de Adana assinado entre a Turquia e a Síria em 1998 (o qual estipulava a coordenação directa de segurança entre Ancara e Damasco). Lavrov atribuiu a culpa da incursão turca directamente às políticas dos EUA. Ele recordou que a Rússia advertira os EUA contra a utilização da "carta curda" e fazer com que tribos curdas e árabes ficassem frente a frente. ![]() No mesmo dia, quinta-feira, quando os países ocidentais pretenderam que o Conselho de Segurança da ONU condenasse a Turquia, a Rússia bloqueou o movimento , argumentando que pretendia que a "presença militar ilegal" de outros países (leia-se EUA, França, Alemanha, etc) também fosse tratada. A Rússia instou a um "diálogo directo" entre Ancara e Damasco. Enquanto isso, a incursão turca está a mostrar algumas características interessantes. Não está claro até que ponto isso se deve à influência russa, mas acontece que a incursão fica muito aquém de uma guerra. O principal é que a operação está focada nas regiões de maioria árabe do norte da Síria, onde há antipatia histórica em relação aos curdos e onde a YPG não está em posição de desafiar os militares turcos. O objectivo turco parece ser criar uma faixa de território, solidamente árabe, onde refugiados sírios podem ser reinstalados (rehabilitated) (há um crescente ressentimento entre os turcos com a presença indefinida de 4 milhões de refugiados sírios). ![]()
A reacção moderada da Rússia leva em conta as garantias da Turquia de que a operação não visa as tradicionais terras natais curdas e que não haverá uma guerra épica com os curdos. Contudo, as coisas podem dar errado numa operação militar. Já existem relatos em conflito quanto a baixas turcas.
Na verdade, o destino dos combatentes do ISIS detidos em áreas controladas pelos curdos é uma questão extremamente importante para a comunidade internacional. Trump coloca o ónus sobre a Turquia. A Rússia também está preocupada. Putin disse na sexta-feira que a Turquia pode não ser capaz de conter militantes do ISIS activos no norte da Síria. "As unidades curdas costumam vigiar essas áreas, mas agora que as tropas turcas estão a entrar na região, eles [militantes] podem simplesmente fugir. Não tenho certeza se o exército turco será capaz de assumir o controle da situação e rapidamente", observou Putin. A Rússia e os EUA precisam se coordenar no terreno para assegurar que o ISIS não levante a cabeça novamente. Trump está a favor disso. Contudo, o objectivo final por trás da aceitação pelo Kremlin da ofensiva turca é que Erdogan cumpra os planos de Moscovo para o futuro da Síria, de modo a que o presidente Bashar al-Assad possa reafirmar o controle por toda a Síria. Moscovo não aceitará que a operação transfronteiriça da Turquia se transforme numa violação de longo prazo da soberania territorial da Síria. Basta dizer que a Rússia está a segurar a mão da Turquia com a expectativa de que a sinergia possa ajudar a moldar a Síria do pós-guerra. Num caminho paralelo, a Rússia espera encontrar uma resposta para as preocupações curdas da Turquia, incentivando os curdos a iniciar um diálogo com Damasco a fim de garantir a segurança na fronteira turco-síria. A incursão turca é portanto, de certa forma, útil para o Kremlin ao dar-lhe força para pressionar os curdos a voltarem à Síria. Neste intrincado equilíbrio de interesses contraditórios, o resultado final é que a Rússia continua a alimentar os laços cálidos com a Turquia. O grande troféu do Kremlin é que um grande país da NATO está a sair da órbita dos EUA. A pressão europeia sobre a Turquia aumentará nos próximos dias para chegar ao "está connosco ou contra nós". A França está a tomar a dianteira . O acordo sobre o novo sistema de pagamentos na terça-feira sublinha que tanto Moscovo como Ancara estão conscientes de uma possível ruptura nas relações da Turquia com o Ocidente. A declaração de quinta-feira dos membros da UE no Conselho de Segurança da ONU tem insinuações ameaçadoras.
12/Outubro/2019
Artigo anterior de Bhadrakumar: Ver também: O original encontra-se em https://indianpunchline.com/a-turkish-russian-entente-cordiale-in-the-making/ Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ . |
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