terça-feira, 24 de janeiro de 2017

John Pilger / A questão não é Donald Trump – somos nós

A questão não é Donald Trump – somos nós

 John Pilger     24.Ene.17     Outros autores
Os media internacionais martelam insistentemente a imagem de um impoluto Obama contra a de um sinistro Donald Trump. Mas a verdade é que quem abriu o caminho a Trump foi o próprio Obama e a elite liberal que agora o endeusa, recusando-se a afrontar a voracidade do capital transnacional, e cujo discurso serviu para eclipsar a linguagem das classes trabalhadoras e populares… empurrando trabalhadores brancos para dentro de uma “identidade” de nacionalismo branco e ajudando os neofascistas a organizá-los.

No dia da tomada de posse de Trump como presidente milhares de escritores nos Estados Unidos manifestarão a sua indignação. “Para sanear e avançar…”, diz Writers Resist, “desejamos superar o discurso político directo, em favor de um enfoque inspirado no futuro e nós, como escritores, podemos ser uma força unificadora para a protecção da democracia”.
E acrescenta: “Instamos organizadores e oradores locais a evitarem utilizar nomes de políticos ou a adoptar linguagem “anti” como foco no evento do Writers Resist. É importante assegurar que organizações sem fins lucrativos, que estão proibidas de fazer campanhas políticas, se sentirão confiantes em participar e patrocinar estes eventos”.
Portanto, o protesto real tem de ser evitado pois não está isento do pagamento de impostos.
Compare tal disparate com as declarações do Congresso de Escritores Americanos, efectuado no Carnegie Hall, Nova Iorque, em 1935 e novamente dois anos depois. Foram eventos electrizantes, com escritores a discutirem como poderiam confrontar acontecimentos agourentos na Abissínia, China e Espanha. Telegramas de Thomas Mann, C. Day Lewis, Upton Sinclair e Albert Einstein foram lidos ali, reflectindo o temor face a enormes forças que haviam agora sido desencadeadas, e que se tornara impossível discutir arte e literatura sem política ou, na verdade, acção política directa.
“Um escritor”, afirmou a jornalista Martha Gellhorn no segundo congresso, “deve ser agora um homem de acção… Um homem que deu um ano de vida a greves siderúrgicas, ou aos desempregados, ou aos problemas do preconceito racial, não perdeu ou desperdiçou tempo. Ele é um homem que sabia a que pertencia. Se você pudesse sobreviver a tal acção, o que você teria a dizer posteriormente acerca da mesma é a verdade, necessária e real, e perdurará”.
As suas palavras ressoam no meio da excitação e violência da era Obama e do silêncio daqueles que colaboram com os seus enganos.
Que a ameaça do poder predatório – desencadeado desde muito antes da ascensão de Trump – tem sido aceite por escritores, muitos deles privilegiados e celebrados, e por aqueles que guardam os portões da crítica literária e da cultura, incluindo a cultura popular, é facto incontroverso. Não é com eles a impossibilidade de escrever e promover literatura destituída de política. Não é com eles a responsabilidade de falar alto sem se preocupar com quem ocupa a Casa Branca.
Hoje, o falso simbolismo é tudo. A “identidade” é tudo”. Em 2016, Hillary Clinton estigmatizou milhões de eleitores como “um cabaz de miseráveis, racistas, sexistas, homofóbicos, xenófobos, islamófobos – o que quiser”. Este insulto foi produzido num comício LGBT como parte da sua cínica campanha para persuadir minorias através do insulto à maioria da classe trabalhadora, principalmente branca. Divida e conquiste, chama-se a isto; ou política de identidade na qual raça e género ocultam classe e permitem que se trave a guerra de classe. Trump entendeu isto.
“Quando a verdade é substituída pelo silêncio”, disse o poeta dissidente soviético Yevtushenko, “o silêncio é uma mentira”.
Não se trata de um fenómeno americano. Há poucos anos, Terry Eagleton, então professor de literatura inglesa na Universidade de Manchester, observou que “pela primeira vez em dois séculos não há qualquer poeta, dramaturgo ou romancista britânico em condições de questionar os fundamentos do modo de vida ocidental”.
Nenhum Shelley fala aos pobres, nenhum Blake de sonhos utópicos, nenhum Byron amaldiçoa a corrupção da classe dominante, nenhum Thomas Carlyle ou John Ruskin revela o desastre moral do capitalismo. William Morris, Oscar Wilde, HG Wells, George Bernard Shaw não têm hoje equivalente. Harold Pinter foi o último a levantar a sua voz. Dentre as insistentes vozes actuais do consumismo-feminismo, nenhuma ecoa Virginia Woolf, que descrevia “as artes de dominar outro povo… de controlar, de matar, de adquirir terra e capital”.
Há algo tanto de venal como de profundamente estúpido acerca de escritores famosos quando se aventuram fora do seu mundo mimado e abraçam uma “causa”. No Guardian de 10 de Dezembro havia uma foto nebulosa de Barack Obama a olhar para os céus e as palavras “Amazing Grace” [1] e “Farewell the Chief”.
A bajulação jorrava como uma torrente de tagarelice poluída página após página. “Ele foi uma figura vulnerável em muitos aspectos… Mas o encanto. O encanto amplo: na maneira e na forma, no argumento e no intelecto, com humor e frescura… [Ele] é um resplandecente tributo do que foi e do que pode ser outra vez… Parece pronto para continuar o combate e permanece um campeão formidável a ter do nosso lado… … O encanto… os quase surreais níveis de encanto…”
Misturei estas citações. Há outras ainda mais hagiográficas e sem atenuantes. O apologista chefe do Guardian, Gary Younge, sempre foi cuidadoso em atenuar, ao dizer que o seu herói “podia ter feito mais”: oh, mas houve as “soluções calmas, ponderadas e consensuais…”
Nenhum deles, contudo, pôde ultrapassar o escritor americano Ta-Nehisi Coates, o beneficiário de uma “licença de génio” no valor de US$625 mil concedida por uma fundação liberal. Num interminável ensaio para The Atlantic, intitulado “Meu Presidente era Negro”, Coates deu novo significado à prosternação. O “capítulo” final, intitulado “Quando você sai, leva tudo de mim consigo”, um verso de uma canção de Marvin Gaye, descreve a visão dos Obamas “a saírem da limusine, a elevarem-se acima do medo, a sorrirem, a acenarem, a desafiarem o desespero, a desafiarem a história, a desafiarem a gravidade”. A Ascensão, nada menos.
Um dos traços persistentes na vida política americana é um extremismo fanático que se aproxima do fascismo. Isto manifestou-se e reforçou-se durante os dois mandatos de Barack Obama. “Acredito no excepcionalismo americano com toda a fibra do meu ser”, disse Obama, que expandiu o passatempo militar favorito da América - bombardeamento e esquadrões da morte (”operações especiais”) - como nenhum outro presidente havia feito desde a Guerra Fria.
OBAMA: 71 BOMBAS POR DIA EM 2016
Segundo inquérito do Council on Foreign Relations, só em 2016 Obama despejou 26.171 bombas. Isto equivale a 71 bombas por dia. Bombardeou os povos mais pobres da terra, no Afeganistão, Líbia, Iémen, Somália, Síria, Iraque, Paquistão.
Todas as terças-feiras – como informou o New York Times – seleccionava pessoalmente aqueles que seriam assassinados por mísseis hellfire disparados de drones. Foram atacadas festas de casamento, funerais, pastores, bem como aqueles que tentavam recolher restos dos corpos classificados como “alvos terroristas”. Um importante senador republicano, Lindsey Graham, estimou, com aprovação, que os drones de Obama mataram 4.700 pessoas. “Por vezes atingem-se pessoas inocentes e odeio isso”, disse ele, “mas removemos alguns altos membros da Al Qaeda”.
Tal como no fascismo dos anos 1930, grandes mentiras são distribuídas com a precisão de um metrónomo: graças aos omnipresentes media cuja caracterização actual se ajusta à do promotor de Nuremberga. “Antes de cada grande agressão, com algumas poucas excepções de conveniência, eles iniciavam uma campanha de imprensa calculada para enfraquecer as suas vítimas e preparar psicologicamente o povo alemão… No sistema de propaganda… havia a imprensa diária e a rádio, que foram as armas mais importantes”.
Tome-se a catástrofe na Líbia. Em 2011, Obama disse que o presidente líbio Muammar Kadhafi estava a planear “genocídio” contra o seu próprio povo. “Nós sabemos… que se esperássemos mais um dia, Bengazi, uma cidade da dimensão de Charlotte, poderia sofrer um massacre que teria repercutido por toda a região e manchado a consciência do mundo”.
Era a conhecida mentira de milícias islamistas a enfrentarem a derrota diante das forças do governo líbio. Isto tornou-se a narrativa dos media. E a NATO – dirigida por Obama e Hillary Clinton – lançou 9.700 “incursões de ataque” contra a Líbia, das quais mais de um terço foram destinadas a alvos civis. Foram utilizadas ogivas com urânio; as cidades de Misurata e Sirte foram alvo de bombardeamentos em tapete. A Cruz Vermelha identificou sepulturas de massa e a UNICEF informou que “a maior parte [das crianças mortas] tinha menos de 10 anos de idade”.
Sob Obama, os EUA estenderam operações secretas de “forças especiais” a 138 países, ou 70 por cento da população mundial. O primeiro presidente afro-americano lançou o equivalente a uma invasão em plena escala da África. Recordando a Partilha da África (Scramble for Africa) [2] no fim do século XIX, o US African Command (Africom) construiu uma rede de vassalos entre regimes africanos colaborantes ansiosos por subornos e armamentos americanos. A doutrina “soldado para soldado” do Africom está incorporada nos oficiais estado-unidenses a todo nível de comando, desde o general até o primeiro-sargento. Só estão a faltar capacetes de cortiça.
É como se a magnífica história da libertação da África, desde Patrice Lumumba a Nelson Mandela, fosse remetida ao esquecimento por um novo mestre da elite negra colonial cuja “missão histórica”, acerca da qual Frantz Fanon advertia há meio século, fosse a promoção de “um capitalismo desenfreado embora camuflado”.
Foi Obama quem em 2011 anunciou o que se tornou conhecido como o “eixo para a Ásia” (”pivot to Asia”), pelo qual quase dois terços das forças navais dos EUA seriam transferidas para a Ásia-Pacífico para “confrontar a China”, de acordo com as palavras do seu secretário da Defesa. Não havia ameaça da China; todo o empreendimento era desnecessário. Foi uma provocação extrema para manter feliz o Pentágono e as suas altas patentes.
Em 2014 a administração de Obama supervisionou e pagou um golpe fascista na Ucrânia contra o governo democraticamente eleito, ameaçando a Rússia na fronteira ocidental através da qual Hitler invadira a União Soviética, com uma perda de 27 milhões de vidas. Foi Obama quem colocou mísseis na Europa do Leste apontados para a Rússia; e foi o vencedor do Prémio Nobel da Paz quem aumentou as despesas com ogivas nucleares a um nível mais alto do que o de qualquer outra administração desde a guerra fria – tendo prometido, num discurso emotivo em Praga, “ajudar o mundo a livrar-se de armas nucleares”.
Obama, o jurista constitucionalista, processou mais denunciantes do que qualquer outro presidente na história, muito embora a Constituição dos EUA os proteja. Declarou Chelsea Manning culpada antes da conclusão de um julgamento que foi uma farsa. Recusou-se a perdoar Manning [3] , que sofreu anos de tratamento desumano que a ONU afirma equivaler a tortura. Insistiu numa acusação inteiramente falsa contra Julian Assange. Prometeu encerrar o campo de concentração de Guantánamo e não o fez.
Depois do desastre de relações públicas de George W. Bush, Obama, o fluente operador de Chicago via Harvard, foi encarregado de restaurar o que ele chama “liderança” por todo o mundo. A decisão do comité do Prémio Nobel fazia parte disto: a espécie de enjoativo racismo ao invés que beatificou o homem por nenhuma razão senão o facto de que era atraente para sensibilidades liberais e, naturalmente, para o poder americano, ainda que não para as crianças que matava em países empobrecidos, principalmente muçulmanos.
É este o Apelo de Obama. É o contrário de um apito de cão: inaudível para a maior parte das pessoas, mas irresistível para os embrutecidos e estúpidos, especialmente “cérebros liberais conservados no formaldeído da política de identidade”, como disse Luciana Bohne. “Quando Obama entra numa sala”, emocionou-se George Clooney, “você quer segui-lo para qualquer lugar, seja onde for”.
William I. Robinson, professor na Universidade da Califórnia, parte de um não contaminado grupo de pensadores estratégicos americanos que conservou a sua independência durante os anos do apito para cães, desde de o 11 de Setembro, escreveu na semana passada:
“O presidente Barack Obama… pode ter feito mais do que ninguém para assegurar a vitória de [Donald] Trump. Ainda que a eleição de Trump tenha disparado uma rápida expansão de correntes fascistas na sociedade civil dos EUA, uma saída fascista para o sistema político está longe de ser inevitável… Mas esse combate requer clareza de como actuar perante um precipício perigoso. As sementes do fascismo do século XXI foram plantadas, fertilizadas e regadas pela administração Obama e a elite liberal em bancarrota politica”.
Robinson destaca que “tanto nas suas variantes do século XX ou no emergente século XXI o fascismo é, acima de tudo, uma resposta à profunda crise estrutural do capitalismo, tal como na década de 1930 e naquela que começou com o colapso financeiro de 2008… Há aqui uma linha quase recta de Obama até Trump… A recusa da elite liberal a desafiar a voracidade do capital transnacional e sua marca da política de identidade serviu para eclipsar a linguagem das classes trabalhadoras e populares… empurrando trabalhadores brancos para dentro de uma “identidade” de nacionalismo branco e ajudando os neofascistas a organizá-los”.
A terra preparada para a sementeira é a República de Weimar de Obama, uma paisagem de pobreza endémica, polícia militarizada e prisões bárbaras: a consequência de um extremismo “de mercado” que, sob a sua presidência, acelerou a transferência de US$14 milhões de milhões (trillion) de dinheiro público para empresas criminosas na Wall Street.
Talvez o seu maior “legado” seja a cooptação e desorientação de qualquer oposição real. A especiosa “revolução” de Bernie Sanders não tem aplicação. A propaganda é o seu triunfo.
As mentiras acerca da Rússia – em cujas eleições os EUA intervieram abertamente – provocaram gargalhadas entre os mais importantes jornalistas do mundo. No país com a imprensa constitucionalmente a mais livre do mundo, o jornalismo livre agora só existe em honrosas excepções.
A obsessão com Trump é um encobrimento para muitos daqueles que se consideram “esquerda/liberais”, como que a pedir decência política. Eles não são “esquerda”, nem tão pouco especialmente “liberais”. A maior parte das agressões da América ao resto da humanidade vieram das chamadas administrações liberais-democráticas – tal como a de Obama.
O espectro político da América estende-se do mítico central até à direita lunar. A “esquerda” são renegados sem lar que Martha Gellhorn descreveu como “uma fraternidade rara e absolutamente admirável”. Ela excluiu aqueles que confundem política com uma fixação acerca dos seus umbigos.
Enquanto eles se “curam” e “avançam”, será que os que fazem campanhas do Writers Resist e outros anti-trumpistas reflectem acerca disto? Mais especificamente: quando será que se levanta um movimento genuíno de oposição? Revoltado, eloquente, um por todos e todos por um. Até que a política real regresse às vidas do povo, o inimigo não é Trump, somos nós próprios.
17/Janeiro/2017
[1] Amazing Grace: hino cristão publicado em 1779, com texto do poeta e clérigo inglês John Newton (1725 – 1807).
[2] The Scramble for Africa: é uma história da África escrita por Thomas Pakenham
[3] Em 19 de Janeiro, véspera do fim do seu mandato, Obama anunciou a comutação de parte da sentença de 45 anos de prisão de Chelsea Manning. No entanto, não lhe concedeu o perdão presidencial.
O original encontra-se em newmatilda.com/…
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/. Revisão de odiario.info
                
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