terça-feira, 26 de julho de 2016

Daniel Vaz de Carvalho / Crítica da crítica acrítica (I)

Crítica da crítica acrítica (I)

por Daniel Vaz de Carvalho

 
Antes que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões. Servir-vos-ão, de confusão, já que não seja de emenda.
Padre António Vieira, Sermão de Santo António aos Peixes

O diabo é menino, tem mil modos de enganar os homens; e o que é pior, todos sabemos que nos engana e deixamo-nos ir (…) certo que já estive cuidando que cobiça deve ser o nome do mais feio diabo do Inferno e do mais néscio, inda eu digo mal: que néscios são os que ele engana.
Diogo do Couto, O Soldado Prático.
Juncker.1 – Não há neoliberais 

Já diziam os antigos que a esperteza do diabo era convencer as gentes que não existia. Assim está o neoliberalismo. Exceptuando trogloditas políticos e palonços, ninguém se assume como neoliberal.

São sociais liberais, social-democratas, socialistas, democratas-cristãos, praticam o neoliberalismo, mas recusam ser considerados neoliberais. O neoliberalismo transformou-se numa espécie de sociedade secreta que todos negam, embora defendam devotamente os seus dogmas.

Adotam as regras da OMC, do FMI, dos tratados ditos de "comércio livre" e os desta inconcebível UE, enfim, defendem a "economia de mercado" que afinal é tudo isto. Curiosamente, ilibam-se mutuamente. Passos Coelho considera Francisco Assis de "esquerda", Francisco Assis acha que Passos Coelho não é um neoliberal. Juncker (CE) e Draghi (BCE) são constantemente branqueados, especulando-se sobre miríficas boas intenções e sintomas de "mudança" nas suas declarações e iniciativas.

É fácil descrever em que consiste o neoliberalismo, é difícil encontrar um "neoliberal assumido"! Já pelo contrário se é fácil encontrar sociais-democratas, é difícil dizer em que consiste a social-democracia, já que tanto traiu os seus próprios princípios. Contudo, se quisermos aprofundar a questão procurar no "Manifesto" o que e Marx e Engels disseram sobre ao assunto. Resumindo, para a social-democracia, "os burgueses são burgueses no interesse da classe operária" (Manifesto).

O neoliberalismo é o mais violento meio de promoção das desigualdades depois do fascismo. O neoliberalismo é afinal um neofascismo que tem tido como objetivo colocar os países à mercê dos interesses de "uma elite financeira criminosa" (Cris Hedges). Uma "elite" e seus sicários que sem argumentos chantageiam os povos, subvertem Constituições democráticas e culpabilizam trabalhadores pelos seus direitos.

Um simulacro de democracia é mantido por eleitos que logo abandonam programas e promessas. Para porem em prática o seu programa não lhes resta senão mentir sobre as intenções e tergiversar sobre as consequências. O que está em causa é o poder democrático ou o de tratados feitos à revelia dos povos; um poder que verdadeiramente represente as aspirações populares e interesses nacionais ou o poder das burocracias da UE e do FMI

O neoliberalismo não foi uma reação á social-democracia, pois a social-democracia continha todos os germes da sua degradação reacionária. Na fase do capitalismo monopolista de Estado, colocavam-se duas vias: uma forma de transição para o socialismo, ou o domínio do capitalismo monopolista transnacional. [1]

A social-democracia escolheu esta última hipótese, camuflada com quiméricas virtudes da sua "economia de mercado". Dizendo-se de esquerda adotou o neoliberalismo, defendendo-o como "modernidade" e procedendo como se no social a modernidade se revisse no século XIX. Também os fascismos se assumiram como "modernidade".

O neoliberalismo exprime não a força do capitalismo e a sua eficiência, mas a sua decadência, já só travada pela chantagem, a manipulação, a violência.

2 - Dizem não, mas recusam a negação 

Os críticos acríticos, criticam, mas não negam o sistema. Criticam as consequências, mas aceitam as causas. Ilibam o sistema que as produz. As dívidas são sagradas, mesmo ilegítimas, ilegais ou odiosas. [2] Os juros são de acordo com o que as agências de rating definem, a política cambial está à mercê dos interesses que o BCE e o FMI defendem; a fiscalidade aos oligarcas e os paraísos fiscais são intocáveis, a taxa Tobin só entrou na sua agenda de propostas, como forma de manipulação sobre o combate à especulação e a "regulação financeira".

Tobin propunha 0,5% sobre as transações financeiras, na UE o objetivo era 0,1% para ações e obrigações 0,01% para produtos derivados, em 2014 foi recusada porque "seria desequilibrado para a nossa (?!) praça europeia".

Os "críticos" ignoram tudo isto. Discutem longamente sobre o que existe, sem considerar a hipótese de um sistema diferente. É um fixismo escolástico em que as críticas se resumem à intensidade com que são aplicadas as mesmas medidas.

No essencial, não vão além do que o fascismo salazarista dizia na promoção da caridade: "que os ricos sejam um pouco menos ricos para que os pobres sejam um pouco menos pobres". Nas teses vigentes: "que os ricos sejam mais ricos para que os pobres sejam menos pobres". A isto se resumem as dissertações sobre a "confiança" e a "credibilidade" junto dos "mercados".

Para conseguir a "credibilidade" reduzem-se impostos sobre o (grande capital), suprime-se a legislação laboral, apelidada de "rigidez", fazem-se privatizações e apetitosas PPP, impõe-se austeridade para "satisfazer os nossos compromissos" pois o Estado tem de se comportar como uma pessoa de bem, mas apenas para os credores. A confiança e credibilidade perante os cidadãos pouco conta.

Nos media proliferam "comentadores". A designação é consequente. De facto, na escolástica medieval não havia investigadores, apenas "comentadores" dos textos dos mestres, assimilados como dogmas. Fazem análises, emitem prognósticos, defendem as "medidas" autorizadas pela UE e se tudo se passa ao contrário do que dizem, a culpa é de não se terem feito "reformas estruturais", da "rigidez laboral" e da "integração europeia" não ter avançado.

As suas gongóricas elucubrações desenrolam-se à volta das "regras da UE" e da conformidade e submissão à dogmática vigente As causas que originam e agravam as crises não são averiguadas. O que sai fora do nihil obstatneoliberal é dado como blasfemo e herético. São a clerezia do neoliberalismo e suas instituições, FMI, BCE, CE, a troika dos interesses oligárquicos.

Os "críticos acríticos" têm uma estratégia: fazer boa figura nos debates, mentir o que for necessário perante a opinião pública, jogando com a sua perda de memória e a desinformação vigente. A falácia dos argumentos, o recurso à intriga e à calúnia substitui-se à verdade dos factos, para tornar legítimos interesses que socialmente não o são e que os negócios privados passem por interesse geral. Parafraseando Marx: "alcançam a sua expressão adequada senão quando (tanto o que defendem como o que atacam) se transforma em simples figura retórica".

As regras europeias permitem a corrupção financeira, a especulação e a usura exercerem-se sem entraves de maior. Mas os "críticos" o mais que fazem é encenar uma patética inquietação e desencanto "por esta Europa". Desejariam o "sonho europeu" inicial, isto é…um outro neoliberalismo! Porque é isto que está contido desde a formação da CEE/UE. [3]

Fantasiam a "responsabilidade empresarial", como medida de ética social, mostrando total ignorância ou meros preconceitos de classe quanto ao essencial de funcionamento do sistema capitalista: maximizar o lucro.

Parecendo interessados em mudar alguma coisa – para tudo ficar na mão dos mesmos – expressam uma idílica "cooperação entre Estados", talvez de raiz keynesiana – por exemplo vertida na carta de Havana (1948) – que nem nos tempos heroicos do keynesianismo foi posta em prática, pois Washington impôs que fosse deitada para o lixo apesar de assinada por 53 países. [4]

Os críticos acríticos não vão além de preces ao capitalismo "regulado" por entidades ditas independentes apenas motivadas por questões técnicas, como empresas de auditoria, agências de rating e burocracias de âmbito transnacional. Porém tanto as suas técnicas como os critérios da sua independência, só têm validade em conformidade com o modo de produção e os interesses que defendem.

3 - O confronto com o marxismo 

Não é possível compreender o que se passa no mundo sem recorrer ao marxismo. Mas sem essa compreensão, como acontece aos críticos acríticos, não é possível encontrar as soluções necessárias.

Recusam a luta de classes, que o marxismo teria inventado, substituindo-a uma hipotética colaboração entre capital e trabalho, sob a égide do grande capital, fazendo seus, talvez sem darem por isso, um desiderato do fascismo.

O valor-trabalho é negado para que o capitalista seja apresentado como o "agente principal da produção" e a "economia de mercado" seja dominante, como se a sua lei da oferta e da procura não estivesse totalmente subvertida pelos oligopólios e pela especulação.

Na sua obsessão financeira "dinheiro cria dinheiro", ignoram o que seja capital fictício. Assim, bolhas financeiras, crises, imparidades, dívidas, são tratadas como falhas de regulação.

Para os "críticos acríticos" as questões sociais, "o crescimento e o emprego", reduzem-se a questões da falta de "rigor orçamental" e "estímulos aos investidores" pelo que é necessário dar-lhes "confiança" e ter "credibilidade".

Quanto ao juro é sempre legítimo e ditado pelas regras (?) dos "mercados", ignorando que o juro, como Marx afirmou, é sempre extração de mais-valia aos povos ou repartição da mesma entre capitalistas.

A forma habitual de denegrir o marxismo é deturpá-lo. Marx nunca disse que a luta de classes levaria ao socialismo e à supressão das classes, aliás como se tudo isto fosse hediondo e não um estado superior do desenvolvimento social e civilizacional.

O que Marx disse foi que a luta de classes era o motor da História. Quanto ao socialismo tal só seria possível pela Revolução, entendida como um processo democrático e popular tendo em vista a superação das contradições do capitalismo. Um processo cujas fases de transição não obedecem a modelos, mas sim aos critérios do materialismo dialético, desenvolvidos com as contribuições no âmbito do marxismo-leninismo.

No socialismo, permanecem diferentes classes sociais num processo de desenvolvimento anti-monopolista, anti-latifundiário e anti-imperialista. Eis o que os "críticos" não podem nem aceitar nem contestar, por isso deturpam, caluniam. Aliás Marx e Engels sempre distinguiram entre o pequeno proprietário e a oligarquia (a burguesia em termos marxistas).

Combatem a luta de classes como uma tenebrosa invenção do marxismo, fazendo por ignorar que é ela imposta ao proletariado contra a exploração capitalista, para lhe garantir não só a sua subsistência, mas a sua dignidade.

Totalmente escamoteada das arengas dos "críticos" é a guerra de classe – não apenas luta – movida pelas oligarquias apoiadas pelo imperialismo contra a democracia e as transformações progressistas em muitos países, como ocorreu em Portugal após o 25 de ABRIL, o Plano Condor na América Latina, golpes na Indonésia e em África, ou mais recentemente no Paraguai, nas Honduras, na Venezuela, etc. [5] Sem vislumbre de coerência ou sensibilidade humana e social os críticos acríticos acusam de totalitarismo governos democráticos e progressistas na defesa da sua soberania, sendo os seus líderes caluniados como ditadores.

Na defesa dos interesses anti-sociais da austeridade, a prosápia dos "críticos" "atinge a expressão adequada quando se converte em simples figura de retórica" (Manifesto) reconhecendo que "o reino da liberdade só começa com o fim do reino da necessidade". (Engels)

Só por ignorância ou má-fé, pode dizer-se que os marxistas rejeitam a evolução social por via parlamentar. O que o marxismo sempre combateu foram as ilusões que a social-democracia difunde aos trabalhadores com uma "visão idílica da democracia burguesa" abandonando a luta de classes e a superação do capitalismo pela via revolucionária.

As soluções que os "críticos" justificam ou apresentam estão totalmente ao invés das necessidades sociais, incapazes em absoluto de alterar as causas das crises. Não passam de meras ilusões e de voluntarismos que consistem na intensificação das mesmas politicas, mostrando a sua incapacidade e demissão na abordagem das causas materiais dos problemas.

A defesa de uma economia disfuncional drogada pela especulação está esgotada. Não é possível qualquer transformação da sociedade sem mudar a estrutura material, o modo de produção e os modos de sobrevivência das pessoas. A questão da propriedade monopolista e dos oligopólios, a questão do planeamento económico democrático não pode ser escamoteada.

"Críticos", mesmo os "radicais", alinharam arrogantemente nas teses em que defender o marxismo era ir para o "caixote do lixo da História". Porém, caiu-lhes em cima o lixo de insuperáveis crises capitalistas e a desagregação da sua UE.

Perante isto aparecem agora a retomar críticas que pela análise marxista o PCP formulara há muito. Um mínimo de honestidade intelectual obrigá-los-ia a referir quem primeiro as tinha produzido e defendido apesar de ignorado e caluniado pelos mesmos que agora as procuram repetir. Não nos enganemos, são coerentes: trata-se apenas de fingir que são sensíveis ao descontentamento com o sistema; mais uma vez, consciente ou inconscientemente, manipulação.

Em qualquer sistema científico, só estudando as causas dos problemas se encontram os métodos e fórmulas da sua resolução. Na vida social a dialética consiste em procurar a contradição na raiz das causas. (Lenine)

É nisto que a crítica marxista se distingue da crítica "acrítica", prosseguido o processo dialético da negação da negação: a superação das contradições do capitalismo tendo em vista um nível superior dos conceitos de propriedade "baseada na cooperação e na posse coletiva" (Marx, O Capital, Livro I, tomo II). A propriedade coletiva, entendida como uma forma superior da propriedade individual – um dos fundamentos da democracia socialista. 
[1] Acerca do capitalismo monopolista transnacional
[2] Le chiffres de la dette 2015 , p.16, ,
[3] Leia-se Álvaro Cunhal, Passado e futuro da revolução portuguesa, Ed. Avante
[4] Préambule à la Charte de La Havane , Jacques Nikonoff,
[5] Venezuela: os pontos chave da guerra não convencional contra a Venezuela , Gustavo Borges Revilla, Diego Sequera, 


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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