sábado, 16 de julho de 2016

António dos Santos / Estranhos frutos nas árvores do sul

Estranhos frutos
nas árvores do sul

 António dos Santos*     16.Jul.16     Outros autores
Ninguém pode dizer que 5 os polícias abatidos em Dallas como vingança pelo abate à queima-roupa de 2 negros pela polícia, sem qualquer razão para puxarem da arma não são «uma questão de segurança nacional», como disse o presidente dos EUA. Mas então, como devia Barack Obama, talvez o presidente maior quantidade de sangue a sujar-lhe as mãos o facto de, só este ano, a polícia já ter abatido 388 pessoas, só em Chicago?
O abate de 5 polícias por um veterano de guerra dos EUA é «uma questão de segurança nacional», seguramente, «mas quem se pode surpreender quando um veterano de guerra volta para casa e traz a política externa e o terror com ele?»

Num poema de 1936, Abel Meeropol descrevia esta paisagem americana: «As árvores do Sul dão estranhos frutos/Sangue nas folhas e sangue nas raízes/Corpos negros a balançar na brisa do Sul/estranhos frutos pendurados dos álamos». Oitenta anos volvidos sobre os anos Jim Crow, os negros linchados já não são pendurados nos ramos, como frutos, para que o mundo veja como é frutífera a árvore da «democracia ocidental». Agora tudo é diferente. Ora veja-se: Alton Sterling estava a vender CD na rua. Então, a polícia imobilizou-o no chão e executou-o à queima-roupa com seis tiros. Philando Castile, conduzia sem um dos faróis. A polícia mandou-o parar (como no passado já fizera, agora sabe-se, outras 52 vezes) e executou-o, com cinco tiros, à frente da namorada e da filha de quatro anos. A diferença é que, contrariamente a como dantes era, há hoje telemóveis, vídeos, Internet e muitas outras árvores de mais frondosos braços, para partilhar aos milhões a raiva e a revolta dos estranhos frutos do Sul.
Nesse ano de 1936, em que Meeropol escreveu o poema «Fruta amarga», calcula-se em quase 200 o número de negros assassinados como resultado do sistema racista. Só nos primeiros seis meses de 2016, 125 negros morreram às mãos da polícia, muitos deles em circunstâncias que, de Philando e Alton, diferem apenas no local, na hora ou no número de tiros. O que nos diria hoje o poeta? O mesmo que um dia adoptou os filhos do casal de comunistas Julius e Ethel Rosenberg, executados na cadeira eléctrica?

O sangue nacional e o sangue dos outros
Em Dallas, no passado dia sete, Micah Johnson, um veterano de guerra afro-americano, decidiu fazer vingança pelas próprias mãos matando cinco polícias e ferindo outros sete. O massacre, que culminou com a execução do suspeito com recurso a um robot-bomba, abateu-se sobre uma das corporações de polícia menos infestadas pelo racismo e num momento em que o movimento Black Lives Matter (literalmente «As Vidas dos Negros Importam» [n.d.t.]) exigia justiça nas ruas. Obama caracterizou o crime como uma «ameaça à segurança nacional». Contudo, os 338 homicídios a que, só este ano, a cidade de Chicago já assistiu (qualquer coisa como 13 por semana), não foram considerados uma questão de «segurança nacional». Será esta a explicação para os crimes racistas e para os já contumazes massacres? Uma cultura envenenada pelo racismo, pela violência e pela hipocrisia? Veja-se Obama, prémio Nobel da Paz, que recentemente, dizia, leviano, sobre a guerra na Líbia «Afinal sou mesmo bom a matar pessoas».
A máquina de guerra dos EUA é uma fábrica de assassinos treinados e traumatizados para resolver problemas a disparar. Quem se pode surpreender com o trágico desfecho de Dallas, quando são tantos, e sempre absolvidos, os assassinatos de afro-americanos? Quando o racismo e o ódio são tão profundos? Quando as armas de guerra são tão comuns? Quando a sociedade está tão alienada e atomizada? Quem se pode surpreender quando um veterano de guerra volta para casa e traz a política externa e o terror com ele?
«Aqui está o fruto, para os corvos debicarem/Para a chuva recolher, para o vento sugar/Para o sol apodrecer, para cair das árvores/Eis uma colheita amarga e estranha».

Este texto foi publicado no Avante nº 2.224 publicado em 14 de julho de 2016.

* Colaborador de Avante
                
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