segunda-feira, 27 de junho de 2016

Prabhat Patnaik / Taxas de juro, empreendedores e rentistas

Taxas de juro, empreendedores e rentistas


por Prabhat Patnaik [*]
Um debate absurdo tem estado a decorrer na Índia. De um lado estão aqueles que culpam Raghuram Rajan – o governador do Banco de Reserva que acaba de decidir não pedir uma extensão do seu mandato – por manter taxas de juro elevadas e dessa forma empurrar a economia para a estagnação (e eles enfeitam a sua argumentação com imagens dos sofrimentos dos desempregados). Do outro lado estão aqueles que aplaudem a sua coragem por manter taxas de juro elevadas e assim manter à distância o flagelo da inflação.

DEBATE ABSURDO 

O absurdo deste debate reside no facto de que minúsculas mudanças na taxa de juro (que é do que estão a falar os participantes deste debate) têm pouco efeito tanto sobre o crescimento como sobre a inflação. Se uma queda na taxa de juro do seu nível actual em 0,25 ou 0,5 ou mesmo 1 por cento pudesse estimular crescimento na economia, então os Estados Unidos não teriam sido assolados pela estagnação e por uma taxa de desemprego que ultrapassa os 10 por cento, mesmo em estimativas conservadoras, uma vez que a sua taxa de juro a longo prazo, que é a que importa para as decisões de investimento dos capitalistas, está próxima de zero. (Isto em linhas gerais continua a ser o caso, mesmo depois de o Fed tê-la elevado recentemente). E o facto de que a inflação no retalho ter começado outra vez a aumentar na Índia, apesar da firmeza de Rajan em manter altas as taxas de juro, sugere que outros factores além da taxa de juro estão a actuar e, por inferência, estavam a actuar quando a taxa de inflação veio abaixo anteriormente. Toda esta algaraviada acerca da taxa de juro é realmente bastante irrelevante.

Isto não significa sugerir que taxas de juros não importem de todo, mas sim que elas importam de um modo muito diferente daquele que é habitualmente imaginado. Para entender isto, devemos distinguir entre "empreendedores" e "rentistas": os primeiros fazem investimento físico e operam activos físicos, ao passo que os últimos apenas possuem direitos financeiros sobre tais activos. Entre os "rentistas" devemos mais uma vez distinguir entre aqueles que possuem direitos financeiros devido aos fluxos de rendimento que obtêm de tais direitos (dentre os quais estão "viúvas e órfãos" e aposentados) e "especuladores", os quais compram activos financeiros não para "manter" mas sim para vendê-los na primeira oportunidade para ganhos de capital. Na verdade, a distinção entre "empreendedores" e "especuladores" é invariavelmente turva com os primeiros também a empenharem-se na especulação. Mas uma distinção entre estas duas actividades é no entanto importante.

Agora, uma queda na taxa de juro supõe-se que estimule a procura e portanto a produção e o emprego, primariamente através de maior investimento, o qual se supõe que ocorra devido ao crédito mais barato. Um efeito secundário é através de despesas de bens duráveis com maior financiamento pelo crédito. Mas o investimento não depende só do custo do crédito; ele depende acima de tudo das expectativas dos "empreendedores" quanto ao crescimento do mercado, o qual por sua vez depende do desempenho do crescimento da economia. E o mesmo é verdadeiro quanto às despesas com bens duráveis, uma vez que a incerteza acerca das perspectivas de emprego e de fluxos futuros de rendimento desencoraja tais despesas, mesmo que haja crédito barato disponível.

Numa situação de expectativas negras, cortes na taxa de juro têm portanto pouco impacto sobre a actividade e o emprego – razão pela qual os EUA ainda estão a vegetar na estagnação. Com a economia mundial em calmaria e a crise global a propagar-se para países "recém-emergentes" como a Índia, actualmente as expectativas empresariais são tão negras que nenhum montante de cortes nos juros ajudaria a estimular a economia.

Na verdade, uma redução da taxa de juro poderia actuar através de um caminho diferente (o qual tem sido a rota realmente mais praticada neste últimos tempos), nomeadamente, através do comportamento de especuladores e não de empresários: isso poderia provocar uma "bolha" de preços de activos os quais estimulam maiores gastos por parte dos proprietários dos mesmos por se sentirem mais ricos. Mas também aqui, no contexto da actual crise mundial, provocada originalmente por um colapso da "bolha" habitacional nos EUA e agravada a seguir por colapsos em "bolhas" de preços de activos chineses e indianos, um corte nos juros dificilmente geraria qualquer nova "bolha". Portanto, um corte assim não teria proporcionado qualquer estímulo à actividade na economia indiana através desta rota ou de outra. Culpar Rajan pela estagnação que a economia indiana está a experimentar é portanto absurdo: equivale a culpar um indivíduo pela crise do sistema.

Do mesmo modo, entretanto, louvar Rajan pelo mergulho verificado na taxa de inflação da Índia é igualmente absurdo. O modo pelo qual supostamente a taxa de juro deita abaixo a inflação é reduzindo a despesa numa situação em que a inflação é provocada pela procura excessiva. A recente inflação indiana, entretanto, não foi provocada por procura excessiva. Ao contrário, ela verificou-se em meio a uma estagnação industrial e de uma acumulação maciça de stocks de cereais. Esta inflação foi de custos (cost-push), provocada pela retirada de subsídios a um certo número de bens e o consequente aumento dos seus preços, os quais então foram "passados adiante". E a razão básica porque esta inflação se verificou em certa medida precocemente (apesar de agora estar a subir outra vez) é primariamente devido à queda nos preços do petróleo.

Rajan em suma é tão pouco responsável por controlar a inflação quanto por provocar estagnação na economia. Todo o debate em torno da política monetária e do papel de Rajan na sua formulação é portanto uma tentativa de desviar atenções (red herring). E o absurdo da actual situação jaz na intensidade com que participantes neste debate prosseguem neste desvio de atenções.

A posição de Rajan sobre as taxas de juro, se bem que tenha pouca relação com crescimento ou inflação na economia indiana, atraía fundos de especuladores que serviam para financiar o défice em conta corrente da balança de pagamentos da Índia. Apesar de em 2013, logo após a posse de Rajan no RBI, ter havido um colapso súbito da rupia devido a uma retirada de fundos por especuladores estrangeiros da economia indiana, isto foi logo ultrapassado através de uma combinação de controles directos sobre as importações de ouro que haviam disparado e de altas taxas de juro (para atrair a finança estrangeira de volta à Índia). De facto, com o défice corrente em declínio desde então, devido aos preços baixos do petróleo (apesar de uma queda nas remessas pela mesma razão), o influxo de fundos para dentro do país foi suficientemente grande para aumentar as reservas cambiais da Índia após a cobertura do défice corrente e mesmo para fazer com que a rupia valorizasse em relação a várias outras divisas do terceiro mundo. (Este é um dos factores por trás da queda contínua, em relação ao valor correspondente do ano anterior, das exportações de mercadorias da Índia durante 17 meses consecutivos, até agora). A insistência de Rajan sobre altas taxas de juro tem portanto mais a ver com a gestão da balança de pagamentos do que com o crescimento ou a inflação.

Sendo este o caso, a razão para a hesitação do governo acerca de uma extensão do seu mandato – o que levou à sua decisão de não solicitá-lo (de modo que a hesitação por parte do governo tornou-se efectivamente um despedimento implícito) – não pode ser atribuída à sua posição sobre taxas de juro. Esta razão está mais estreitamente ligada à sua atitude não simpática para com o Hindutva [NT] , de que não fazia segredo (a acusação de Subramaniam Swamy de que ele não é um "indiano de coração" refere-se precisamente a isto, uma vez que a visão de "indianidade" de Swamy é sinónima da aceitação do Hindutva).

Assim, o "despedimento" de Rajan é significativo não tanto devido à perda de "perícia económica" que supostamente implica (o neoliberalismo sob a actual administração seguiria o seu curso pouco importando quem estivesse ao leme do RBI). Ela é significativa porque mostra que as forças Hindutva não podem tolerar mesmo a mais ligeira crítica implícita de um intelectual liberal, não importando quão elevado é o seu estatuto na comunidade financeira global.

CONCESSÕES AO INVESTIMENTO DIRECTO ESTRANGEIRO 

Mas precisamente por causa do seu prestígio, o governo Modi anunciou uma enorme quantidade de concessões ao investimento directo estrangeiro quase na mesma manhã da declaração de Rajan, de modo a que a "confiança" dos especuladores na economia indiana permanecesse incólume e não houvesse fuga significativa de capital. Permitir 100 por cento de propriedade estrangeira nas indústrias de defesa, farmacêuticas e aviação civil é um importante conjunto de concessões. Embora no imediato possa ter reduzido quaisquer consequências adversas da saída de Rajan, isso equivale a um retorno aos tempos do colonialismo.

Com grande dificuldade e determinação o país pretendera livrar-se da situação em que se encontrava no momento da independência, quando várias commodities importantes eram ou importadas do exterior ou produzidas internamente pelo capital estrangeiro. A tecnologia nestes sectores em ambos os casos estivera sob o monopólio proprietário de companhias estrangeiras, as quais utilizavam este facto para espoliar o povo indiano. Construir o sector público como uma fortaleza contra o capital estrangeiro e desenvolver auto-suficiência tecnológica através de I&D financiada publicamente foi um esforço penoso. Ele foi concebido para assegurar que a independência política fosse acompanhada por um grau de liberdade em relação ao braço de ferro económico do capital estrangeiro.

Isto, não obstante as conhecidas limitações do regime dirigista sob cuja égide se verificou, trouxe benefícios palpáveis para o povo e também construiu a base produtiva e tecnológica do país. Um mundo no qual o controle sobre a tecnologia está com os países avançados enquanto os países em desenvolvimento meramente proporcionam locais para fábricas onde o seu trabalho barato pode ser explorado pelos capitalistas destes países avançados continua a ser um mundo altamente desigual, não importa quão rapidamente o PIB nos países em desenvolvimento cresça em consequência. O regime económico dirigista na Índia procurou mudar este mundo desigual. O imperialismo, por outro lado, foi sempre implacável nos seus esforços para empurrar o país para trás, para este relacionamento desigual. E a imposição de políticas neoliberais desiguais através de agências como o Banco Mundial e o FMI faz parte deste esforço. O governo liderado pelo BJP tem mostrado cumplicidade total com este projecto imperialista.

O que revela este episódio, envolvendo o despedimento de Rajan e as declarações a seguir sobre o Investimento directo estrangeiro, é que para impulsionar o Hindutva este governo está mais do que desejoso de fazer concessões ao imperialismo. Se Rajan tem de ser despedido porque as forças Hindutva não gostam dele (pois querem acólitos do Hindutva por toda a parte) então ele será despedido. E se o capital estrangeiro exige um preço ao país por tal despedimento, então as forças Hindutva farão o país pagar esse preço. É irónico que aqueles que continuam a entoar cânticos ao "orgulho nacional" estão perfeitamente dispostos a tornar o país economicamente, tecnologicamente e militarmente subserviente ao imperialismo. 
26/Junho/2016

[NT] Hindutva : Ideologia indiana de nacionalismo xenófobo que tende a um espécie de fascismo de base comunal.   O actual governo Modi perfilha essa ideologia. 

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2016/0626_pd/rajan's-exit . Tradução de JF. 


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
Anterior Proxima Inicio

0 comentários:

Postar um comentário